«O Samuel pode fazer marca de sonho»
António Sousa com Samuel Barata (DR)

«O Samuel pode fazer marca de sonho»

ATLETISMO23.11.202308:30

António Sousa é o treinador de Samuel Barata e esteve no Quénia a acompanhar os treinos do maratonista; acredita que o recorde de António Pinto pode cair em Valência, se tudo correr bem até lá

A BOLA falou igualmente com António Sousa, atual técnico do maratonista do Benfica. Está confiante num muito bom resultado em Valência, mas adverte que tudo tem de continuar a correr bem nas próximas duas semanas.

- O Samuel fala em chegar perto das 2.08 horas na maratona de Valência. E o seu treinador que meta coloca? 

- A minha abordagem, relativamente aquela que o Samuel tinha com o professor Pedro Rocha (seu anterior treinador), não é tão conservadora, até porque o Samuel já se encontra noutra fase da sua carreira. Estamos em ano olímpico, garantir a qualificação é, para já, o grande objetivo. É um facto que estamos perto, mas ainda nada está garantido, e o Samuel não pode perder esse foco! Se treinamos bem, se estamos em forma, se as condições da competição são boas, temos de aproveitar as oportunidades quando elas surgem para realizar resultados de excelência, nunca sabemos se ou quando vai surgir uma nova oportunidade. A análise do treino e dos resultados indicam que ele pode fazer uma marca de sonho. Como o recorde nacional nos 10 km em Brasov seria um resultado de sonho, como o recorde nacional da meia-maratona foi um resultado de sonho. Agora, o recorde nacional da maratona é um sonho ainda maior, um sonho grande, um sonho verdadeiramente a sério.

- O recorde nacional da maratona do António Pinto é de 2.06.36 horas e foi alcançado em 2000. Se Samuel Barata o conseguir, será histórico.

 -Sim, mas temos de ter a noção de que o Fernando Mamede, por exemplo, quando bateu o recorde nacional dos 10 km em estrada, fê-lo numa prova muito pouco corrida, poderia, por isso, ter feito muito melhor. Por outro lado, a marca da meia-maratona do Luís Jesus teve uma relevância diferente relativamente àquela que o Samuel obteve agora. O Luís Jesus, com essa marca, foi sétimo no Campeonato do Mundo de 1997 e o Samuel foi agora 14.º numa meia-maratona “comercial”. Há que ter noção do valor absoluto tremendo da marca do Samuel, mas o valor relativo é diferente daquele que obtiveram os outros atletas portugueses. Está muito mais longe do recorde do mundo e não é tão competitivo como os portugueses eram há 30/40 anos. Mesmo que o Samuel bata o recorde nacional da maratona, as coisas são diferentes. Quando o António Pinto bateu o recorde nacional da maratona ficou a 54 segundos do recorde do mundo. Agora, se o Samuel bater o recorde nacional, ficará, seguramente, muito mais distante desse mesmo recorde. De qualquer forma, bater o recorde nacional do António Pinto na maratona, seja em que ano for, seja como for, fará do Samuel um dos melhores atletas portugueses de todos os tempos! O Carlos Lopes foi um atleta verdadeiramente extraordinário e a melhor marca que fez foi 2.07.12 horas, que foi recorde do mundo! O António Pinto tem 2.06.36 horas, que foi recorde da europa.

- Acredita que o recorde cairá em Valência? 

- Sinto que o Samuel tem o recorde nacional nas pernas. Sei o que treinavam os melhores atletas portugueses dos anos 90, por exemplo, e sinto que o Samuel tem todas as condições para bater o recorde nacional. Se vai sair em Valência ou não, tudo dependerá do que se passar até lá em termos de treino, do que acontecer no dia da prova e no que o Samuel quiser arriscar para alcançar um sonho muito superior ao da qualificação olímpica.

- Que antevisão faz para as marcas que ele poderá alcançar nas distâncias clássicas de pista? 

- Não extrapolando demasiado, ele tem obrigação de correr abaixo de 27.30 nos 10 000 metros e dos 13.15 nos 5000 metros. Poderá não o fazer, pois hoje está bem e amanhã pode não estar. Mas tem essas marcas nas pernas. Nos últimos tempos tudo tem corrido muito bem ao Samuel, o que não é normal na alta competição. Mas é claro que temos de ter presente que, mais dia menos dia, haverá uma fase mais difícil. Trabalhar a este nível é como trabalhar no fio de uma navalha. Não é só treino, é tudo o que está à volta dele. Basta, por vezes um pequeno problema, para tudo falhar.

- Que importância tem este estágio de altitude antes da maratona de Valência? 

- A lógica dos treinos em altitude está totalmente alterada em relação ao que se pensava há uns anos. Antes via-se a altitude como um período de preparação final de uma determinada competição. Agora o que interessa é a exposição total anual à altitude. Não podemos ter um atleta na sua zona de conforto na maior parte do ano e depois atirá-lo para uma zona totalmente desconfortável numa altura em que devia estar a ter boas sensações. Psicologicamente, pode não chegar bem à grande competição. Na abordagem atual, como já referi, o relevante é mesmo a exposição total anual à altitude. O Samuel, no último ano, teve cerca de 170 dias em altitude. Quase seis meses. Os períodos são escolhidos em função daquilo que nos interessa desenvolver, que capacidade(s) pretendemos trabalhar. Pode ser no período preparatório geral ou no específico, alternados com períodos na sua base natural. Alguns dos melhores atletas europeus e mundiais vivem permanentemente em altitude sem lá terem nascido, mas isso exige imensas coisas.

- Como assim? 

- Alguns dos melhores atletas portugueses não iam para a altitude, ou iam durante pouco tempo, porque eram incapazes de sair do “colo da mãe”, da sua zona de conforto. O atleta é muito mais do que apenas um atleta. É um ser humano com vida para além do atletismo. E ele prescinde de muitas coisas pelo atletismo. Não é fácil estar um mês fora de casa quando se tem uma família. Seis estágios são seis meses fora de casa.

-Os treinadores portugueses estão abertos a treinar em altitude?

- Alguns treinadores, por falta de conhecimentos e disponibilidade para acompanharem os atletas e por terem muito receio de os perderem, desincentivavam e continuam a desincentivar os atletas a ir para a altitude, justificando essa postura com os resultados obtidos no passado, mas o atletismo evoluiu muito, é muito diferente do dos anos 80 e 90.