«Se não fosse a nova Luz teríamos ido por aí abaixo»
Entrevista a Manuel Vilarinho, presidente do Benfica à data da inauguração do novo Estádio da Luz
Foi o presidente da inauguração e aquele que deu a assinatura final. Mas até começar assentar o betão foram muitos os avanços e recuos, até uma possível partilha de estádio com o Sporting esteve em cima da mesa. O dirigente que sucedeu a Vale e Azevedo diz que tem um lugar importante na história do clube e faz questão de enfatizá-lo. «Para não cair no esquecimento».
— 20 anos depois, qual o sentimento que lhe provoca passarem-se 20 anos desde a inauguração do novo estádio?
— Um sentimento de orgulho. Se o Benfica não tivesse feito o estádio tinha-se atrasado quilómetros face aos rivais porque eles já estavam com os seus estádios em andamento. E há uma coisa que posso dizer agora: nunca pensei, à data, que a Benfica Estádio viesse a ser uma empresa lucrativa, com as despesas de manutenção, etc.
— A nova Luz também marcou uma nova forma de gerir o clube?
— Nós continuámos com a mesma forma de gerir. Mas, repito, sempre achei que se conseguíssemos ter um orçamento equilibrado na Benfica Estádio já não seria mau.
Não andei com os tijolos às costas, mas fui o presidente que disse para avançarmos com o estádio
— Começaram a construção depois dos outros e mesmo assim cumpriram os prazos. Na altura falou-se em milagre.
— Por isso é que temos muitos cabelos brancos, foi o estádio que nos causou [risos]. Custou muito, mas ficou feito. O arquiteto australiano que trabalhou connosco [Damon Lavelle] era um espetáculo. Lembro-me de pedir ao Mário Dias e ao [Ricardo] Martorell para irem a Inglaterra ver estádios. Eles escolheram três e os três tinham sido projetados pela empresa dele. Mas há um detalhe importante: eu não fiz concurso. Isso ainda chegou a ser falado, mas eu escolhi a Somague. Não foi pela amizade que tenho pelos seus donos, mas porque sabia que a obra acabaria em tempo útil. E assim foi. Acho curioso, no entanto, assistir, como já assisti, a pessoas como Otávio Machado dizerem que foi Luís Filipe Vieira que construiu o estádio.
— Porque acha que se diz isso?
— Tenho a fama de que não queria o estádio. São coisas que as pessoas inventam! O que eu não aceitava era fazer um estádio sem financiamento. Porque, é preciso recordar, o Benfica estava falido nessa altura. O BES [Banco Espírito Santo] não queria emprestar-nos dinheiro, mas a certa altura um alto quadro do BCP foi falar com o BES e acordaram, juntos, emprestar-nos o dinheiro. A partir do momento em que tivemos o financiamento, aí sim, disse: ‘Vamos avançar’. Fomos dos últimos a começar e os segundos a acabar!
— Esse racionalismo contrasta com a sua imagem de presidente movido a paixão…
— Às vezes ponho-me a falar sozinho: eu não devo ter sido presidente do Benfica, de certeza! Não andei com os tijolos às costas, mas fui o presidente que disse para avançarmos com o estádio. Volto a dizer: o que eu não queria era arranjar uma caldeirada, não queria avançar sem garantias de ter dinheiro. Quem pagaria? Nem a Somague nem a empresa de arquitetura iriam aceitar. Eu não admitiria deixar um calote para outros pagarem, temos de ser sérios e eu sempre fui muito sério no que faço.
— Voltando ao facto de não ter feito concurso para apressar as obras [interrompe]…
— Foi para acelerar, mas não foi para ter comissões ou nada disso. Nunca tirei um tostão de comissões. Sempre geri o Benfica como se fosse meu, mas quando se trata de cuidar do dinheiro dos outros é preciso ter ainda mais cuidado. O Mário Dias dizia que a minha Direção foi das melhores da história do Benfica. Concordo. Talvez a de Ferreira Bogalho tenha sido igual à nossa.
O Benfica começou a recuperar aí porque nessa altura estava em falência técnica. Se fosse na Alemanha teríamos ido parar à terceira divisão
— Foi nesse período em que não tinha financiamento que Benfica e Sporting equacionaram avançar para a construção de um estádio único para os dois clubes. Até que ponto essa ideia vingou?
— A ideia partiu de Dias da Cunha [presidente do Sporting]. Ouvi e pensei: ‘Do mal o menos, mais vale meio estádio do que não ter nenhum’. Seria uma estupidez não equacionar isso se não viéssemos a ter financiamento. Sempre me dei muito bem com Dias da Cunha, mas como entretanto arranjámos financiamento foi cada um para seu lado. Ainda bem para nós. E para eles também.
— Algum pormenor que tivesse pedido ou exigido durante a construção?
— Deixei tudo para o arquiteto e para o construtor. Eles é que eram os especialistas. Era o que eu faria na minha vida pessoal. Sabe, o meu mandato foi muito marcado pelo pagamento de muitas dívidas herdadas do meu antecessor [Vale e Azevedo] enquanto ao mesmo tempo se contruía um estádio. Não havia muito dinheiro para investir na equipa de futebol. O Benfica começou a recuperar aí porque nessa altura estava em falência técnica. Se fosse na Alemanha teríamos ido parar à terceira divisão.
— Diz isso com muita convicção.
— Não tenho dúvidas! O artista que me antecedeu arranjou certidões falsas para o Benfica poder competir. Só soube isso já muito depois de ter tomado posse. Nós não podíamos ser inscritos no campeonato! Isso na Alemanha daria um castigo enorme.
— Se fosse hoje, faria tudo igual?
— Sim, mas em função das circunstâncias do momento. Sempre mantendo o rigor e o bom senso, é coisa que há pouco.
— Manuel Vilarinho assistiu ao vivo ao grande Benfica europeu no antigo Estádio da Luz, mas nem por isso se agarrou à nostalgia do anterior estádio.
— É muito bonito falar do misticismo, mas não quando se corre o risco de o clube descer abruptamente. Pode gritar-se ‘Benfica, Benfica, Benfica’, mas se não tivéssemos um novo estádio teríamos ido por aí abaixo. Ainda havia gente que não queria um novo estádio, mas, afinal, quem não gosta de ter uma casa nova? Ainda por cima está no mesmo terreno, foi construído em cima do outro.
«Há cinco anos que lá não vou»
— Qual foi a última vez que foi à Luz?
— Há mais de cinco anos que não vou lá, apesar de ter lugar cativo. Foi quando o Benfica começou a perder jogos em casa com equipas inferiores como o Moreirense e o Gil Vicente. Sentia-me mal, era uma vergonha levantar-me da cadeira e ir à casa de banho com tonturas. O futebol puxa muito por mim e pensei: ‘Não quero morrer aqui, ainda posso vir a ter um enfarte’.
— De que pormenor mais gosta do estádio?
— Gosto de tudo. Vi que agora melhoraram muito a luminosidade, está muito engraçado. Tenho de lá ir para ver aquilo, embora ainda tenha medo de lá pôr o pé.
— Qual é o seu papel na história do Benfica?
— Sei que fico na história. Acho que é importante de vez em quando recordar o passado e, no meu caso, o pesado trabalho que tive em suceder ao outro [nunca refere o nome de Vale e Azevedo]. É bom de vez em quando falarmos disso para não cair no esquecimento, vale sempre a pena lembrar. A construção do estádio foi o início da recuperação do Benfica.