Rapinoe até à vitória, sempre
Craque norte-americana despede-se na madrugada deste domingo dos relvados. Mas o legado vai muito além do futebol
Já se despediu da seleção e já foi homenageada em casa pelos adeptos, mas quis o destino que Megan Rapinoe tivesse mais uma oportunidade de dizer adeus – e em grande. O OL Reign, a sua equipa, conseguiu chegar à final da NWSL, a liga de futebol feminino dos EUA, e vai defrontar, na madrugada deste domingo (1:00 em Portugal continental), o Gotham FC.
As adversárias têm nome de cidade de super-herói, mas Rapinoe não precisará de disfarce para tentar a vitória que lhe falta: em 11 anos no OL Reign, os mesmos da competição, nunca venceu este troféu. O último jogo da carreira poderá, então, acrescentar algo a dois Mundiais (2015 e 2019), duas medalhas Olímpicas (um ouro, em 2012) e uma Bola de Ouro. Coisa pouca, até agora.
E tudo começou em Redding, Califórnia, num pequeno clube onde era a única rapariga da equipa. Já depois de ter atingido o auge, Rapinoe escreveu sobre isso no seu livro de memórias: «Provavelmente, nunca dominei uma equipa como aquela de rapazes no início dos anos 90». Sempre competitiva, mas com sentido de humor, Megan ainda estava a descobrir-se naquela altura.
No livro «One Life», a infância e adolescência são relatadas sempre à volta do futebol, paixão partilhada com a irmã gémea Rachael. Até foi num treino, relata Rapinoe, que se apercebeu da sua orientação sexual: «Não foi, oh, de repente sou homossexual. Demorei um segundo a perceber o que se estava a passar. Mas, enquanto acontecia, não senti como algo mau. Foi só… normal». Megan começou a interessar-se por temas sociais, pela igualdade de direitos, mas só a maturidade a levou a outro patamar.
Já tinha passado por várias equipas, incluindo uma experiência europeia de 2 anos no Lyon, e conquistado o primeiro Mundial, quando se ajoelhou durante o hino dos EUA. Estávamos em 2016 e Megan Rapinoe era a primeira grande atleta branca a juntar-se ao quarterback da NFL Colin Kaepernick em protesto contra o racismo e a violência policial.
Foi o princípio de um posicionamento que fez com que Rapinoe deixasse de ser ‘só’ uma das melhores jogadoras do mundo, mas uma ativista que conquistaria o espaço mediático à escala mundial. A partir daqui, se a carreira de futebolista já era marcante, Megan foi construindo um legado.
Um sorriso para Trump
Antes da final do Mundial de 2019, com os EUA a regredirem nos direitos sociais, Rapinoe foi o mais alto que poderia. «Eu não vou à m**** da Casa Branca!», disse, em caso de vitória na final, e como é tradição na relação com os presidentes norte-americanos. «A razão é simples: ele [Donald Trump] e nós não lutamos pelas mesmas coisas».
Trump respondeu-lhe, ao seu nível, no Twitter, mas foi em campo que a avançada respondeu melhor: marcou o primeiro dos golos da vitória dos EUA sobre os Países Baixos (2-0), abriu os braços para o mundo, numa pose superior, e sorriu. A afronta trouxe-lhe muitas críticas e até ameaças, mas Megan Rapinoe sabia de que lado queria estar.
«Temos cabelo cor-de-rosa e roxo. Temos tatuagens e rastas. Temos mulheres brancas, negras e tudo mais. Hetero e homossexuais», sublinhou, enquanto discursava para os adeptos que saudavam as campeãs mundiais (fora da Casa Branca, claro). Numa altura em que a corrida presidencial começava a aquecer na América, Rapinoe apelava a Trump que «fizesse melhor» e que os EUA voltassem a «amar mais e odiar menos».
«Estar numa estranha batalha contra o ex-presidente trouxe uma explosão de interesse do mundo fora do futebol feminino», constatou à NPR Meg Linehan, que escreve sobre futebol feminino para o The Athletic.
Das palavras aos atos, Megan esteve na linha da frente da luta pela igualdade salarial no futebol feminino, com queixas apresentadas contra a discriminação. Em 2021, chegou a testemunhar no Congresso: «Nós enchemos estádios, quebramos recordes de audiência, esgotamos camisolas, todas as métricas populares pelas quais somos julgadas. E, mesmo assim, apesar de tudo isto, continuamos a ganhar menos do que os nossos colegas homens.»
A batalha foi ganha e a seleção feminina dos EUA conseguiu mesmo começar a ganhar o mesmo do que a masculina. Com outro presidente na Casa Branca, Rapinoe desta vez foi mesmo lá para receber a Medalha da Liberdade das mãos de Joe Biden.
«Ela trouxe-nos para o seu lado, encorajou-nos, educou-nos e disse-nos para sermos corajosas. Para mim, esse é o legado dela», afirmou a colega de seleção Becky Sauerbrunn. Mas não esqueçamos o futebol: só com a camisola dos EUA, foram 203 internacionalizações, 63 golos e 73 assistências para Megan Rapinoe.
Num país em que agora este é o desporto mais praticado por meninas (que já não precisam de jogar em equipas só com rapazes - e dominá-los), não deverá ser difícil a Megan Rapinoe encontrar o que fazer a seguir para continuar a fazer o futebol feminino crescer.
Para já, resta-lhe apenas o último jogo: OL Reign e Gotham FC defrontam-se no estádio Snapdragon, em San Diego, e a NWSL vai ter um campeão inédito este ano. Curiosamente, além de Megan Rapinoe, também será a despedida de Ali Krieger, defesa e também internacional norte-americana, de 39 anos.
Pendurar as chuteiras vai ser difícil para aquela menina ultra-competitiva de Redding, que só via futebol à frente. Mas para Megan, a mulher adulta, desportista consagrada e ativista, a tranquilidade de saber que mudou o futebol feminino deve chegar para sentir eternamente o sabor da vitória.