Por causa do Benfica (e de um avião…), Pedroto impedido de trabalhar no FC Porto
Eusébio, jogador do Benfica, sai lesionado e foi substituído por Jacinto durante o jogo FC Porto - Benfica (1-0) disputado no Estádio das Antas, a 15 de Dezembro de 1968. Foto: ASF

HISTÓRIAS DO CLÁSSICO Por causa do Benfica (e de um avião…), Pedroto impedido de trabalhar no FC Porto

NACIONAL28.09.202317:09

Tendo já José Maria Pedroto largado a carreira de jogador, derrota na Luz levou a castigo e multas – e também a um louvor por Hernâni ter voltado ao campo de mão fraturada. E aqui se desvendam também, por entre a incrível história de um italiano a passar por Rei para ir falar com Eusébio à enfermaria, imagens do que era o país com o Benfica a caminho de se tornar campeão da Europa e o FC Porto a tentar fugir das ruas da sua amargura…

Talvez só mesmo Béla Guttmann (que ano e meio antes deixara o FC Porto em abalo ao trocá-lo pelo Benfica) tivesse no sonho o que estava afinal a caminho da realidade: a conquista da Taça dos Campeões Europeus – e, nessa tarde de 11 de dezembro de 1960, dois golos de José Águas puseram a sua equipa de sinal ainda mais claro de que o seu destino seria o que foi: ir agarrar o campeonato de novo.

Treinador do FC Porto era o brasileiro Otto Vieira – e, ousado, lançou ao onze Serafim (que, com Pedroto no seu comando, haveria de fazer-se figura maior da seleção que conquistou o título europeu de juniores; e que três anos depois protagonizaria a mais cara transferência do futebol português, saltando das Antas para a Luz por 2200 contos – e 400 contos fora o que o Sporting de Lourenço Marques arrecadara pelo passe de Eusébio). Esse estatuto de mais jovem jogador do FC Porto no campeonato retirá-lo-ia Fábio Silva – e, a propósito da sua estreia, deu indício do seu espírito: «Não, não me enervei nada. É certo, perdemos, mas perdemos porque o Benfica é muito boa equipa e muito forte, física e moralmente».

Hernâni, o portista que jogou na Luz de mão partida cresceu com Manuel Alegre e está no seu livro Alma. Foto: ASF

HERNÂNI CAIU «TONTO» SEM SABER QUEM LHE PARTIU A MÃO

Não, dessa opinião não foi Hernâni (que, nos seus tempos de menino e moço, era compincha de Manuel Alegre – e, por isso, haveria de tornar-se personagem notória de Alma, o livro de memória do grande poeta) – e, com a mão direita entrapada (em consequência de acidente no jogo) e vergado às dores o picavam, murmurou: «Houve um choque casual com um adversário, nem sei qual e fiquei tonto, acabando até por cair lá no campo… O Benfica? Não posso dizer que ganhou mal, mas posso dizer que não me pareceu nada de especial… que a sua defesa, a certa altura da primeira parte, até me pareceu demasiado perturbada».

O incidente que deixou Hernâni «tonto» (e depois entrapado de mão) e o obrigara a ser retirado do campo em braços sucedeu logo após depois do «caso da tarde»: José Águas já fizera o primeiro golo (aos 15 minutos) e, pouco passando da meia-hora de jogo, abriu-se alvoroço frente à baliza de Acúrsio (que além de guarda-redes de futebol também era jogador internacional de hóquei em patins) – e Monteiro da Costa contou-o: «Fui empurrado por um avançado do Benfica e caí quando a bola ia a entrar e ela bateu-me no corpo, permitindo que um companheiro a afastasse depois. Não meti não e creio que nem no braço me tocou». 

Eusébio (que neste Benfica-FC Porto ainda não pôde jogar por não ter autorização de transferência) a ver Águas em pontapé acrobático. Foto: ASF

«A SAPATADA NA BOLA» E O FC PORTO SEM A «AGRESSIVIDADE DE OUTROS TEMPOS»

O árbitro foi pelo mesmo entendimento de Monteiro da Costa e, não assinalando penálti, agastaram-se os benfiquistas – e foi José Águas (que fechou o placard aos 59 minutos) quem deu voz à contestação: «Vencemos sem contestação e acho que os 2-0 estão certos. No entanto, houve uma grande penalidade autêntica que só o árbitro não viu. Depois de um remate do José Augusto, gerou-se confusão quase sobre a linha de baliza e, no solo, Monteiro da Costa deu uma sapatada na bola, quando eu a ia empurrar para as malhas. Eu formara o salto e a bola passou-me por baixo dos pés… Mas, enfim, já passou e acabámos por não precisar do penálti. Não desgostei do FC Porto que, no entanto, só a meio do campo está realmente bem. O ataque perdeu o sentido de agressividade de outros tempos. A nossa exibição foi apenas normal porque nunca chegámos a estar em perigo».

«O BENFICA GANHOU MAL» (E GERMANO ACHOU QUE NÃO…

Germano afinou pelo mesmo tom: «O FC Porto continua com uma boa equipa, embora Hernâni e Carlos Duarte, sobretudo esses seus melhores homens de ataque, pareçam em forma precária mas creio que ganharíamos sempre mesmo que esses dois grandes jogadores se encontrassem no seu melhor». Ligeiramente diferente (ou talvez não) foi o tom que Acúrsio pôs na sua réplica: «Não, não acho bem o resultado. De maneira nenhuma. O Benfica ganhou mal, pois só jogou bem meia hora e nós jogámos bem hora e meia. E parece-me que não fui culpado nos golos. No primeiro, a bola tabelou em Monteiro da Costa e, por isso, não a captei. No segundo, houve um mau toque, a bola foi a Águas e, depois, já nada podia fazer. O primeiro, sim, pois: tinha defesa, se não fosse aquele desvio infeliz – e a nossa falta de sorte nem esteve só nesse lance…»

Germano na festa do Benfica campeão, campeão nesse ano dos 2-0 que levou a vários castigos a portistas. Foto: ASF

A MULTA MAIS PESADA APLICADA PELO FC PORTO AOS SEUS JOGADORES ERA MENOS DO QUE A PIDE DAVA AOS SEUS «BUFOS»

No dia seguinte, reuniu-se a Comissão Administrativa do FC Porto – e em espanto se soube que de lá saiu farândola de castigos e multas (e não só). A mão mais pesada sentiu-a o argentino Elio Montaño (que não demoraria a saltar de lá para o Peñarol) - multado em 1500 escudos «pela manifesta falta de brio e combatividade evidenciados no último encontro com o Sport Lisboa e Benfica, no que, aliás, é reincidente». (5000 escudos era o que, por vezes, a PIDE dava, em segredo, aos «bufos» que lhes levavam «boas informações» que a polícia política utilizava nas suas tropelias – ou pior – e o ordenado mensal de um fiel de armazém andava pelos 600 escudos).

A Carlos Duarte cortaram-lhe no ordenado (de três contos) 750 escudos «por atitudes inconvenientes no Estádio da Luz, durante o ultimo encontro Benfica- Porto e frases desrespeitosas no balneário do referido estádio» e em mais 500 escudos pela sua «reincidência na falta de comparência ao tratamento de duches e massagens».

Carlos Duarte não teve uma multa só, teve duas…

COM PORTISTAS SUSPENSOS E AFASTADOS DO LAR DO JOGADOR, EM LISBOA HAVIA MULTAS EM LINGUAGEM PÚDICA… 

Decidindo-se, ainda, «suspender de toda a atividade — treinos e jogos — o jogador Fernando Perdigão, até conclusão do inquérito que vai seguir-se e «afastar do Lar do Jogador, com carácter de punição, os jogadores Paula e Rico», a Paula aplicou-se igualmente multa de 750 escudos pela «falta de cumprimento dos deveres n.º 1, 2, 4, 5, 6 e 10 do regulamento denominado Código do Atleta». (Em vigor continuava, então, a Portaria 69035 da Câmara de Lisboa que começava assim: «Verificando-se o aumento de atos atentatórios à moral e aos bons costumes, nos logradouros públicos e jardins, e, em especial, nas zonas florestais, Montes Claros, Parques Silva Porto, Mata da Trafaria, Jardim Botânico, Tapada da Ajuda e outros, determina-se à Policia e Guardas Florestais uma permanente vigilância sobre as pessoas que procurem frondosas vegetações para a prática de atos que atentem contra a moral e os bons costumes» - e, para o cumprimento que se lhe deveria dar usava-se criativa e casta linguagem, assim: «Mão na mão, multa de dois escudos e 50 centavos. Mão naquilo, de 15 escudos. Aquilo na mão, de 30 escudos. Aquilo naquilo, de 50 escudos. Aquilo atrás daquilo, de 100 escudos. Com a língua naquilo, multa de 1500 escudos, preso e fotografado.»)

Miguel Arcanjo foi apenas «advertido» pela «deficiente exibição» na Luz

No comunicado da direção do FC Porto, outra intenção se revelou: «Inquirir do jogador Gastão os devidos esclarecimentos acerca de uma notícia vinda nos jornais da qual se deduz que o referido jogador exerce funções no FC Tirsense, sem o devido conhecimento do diretor responsável, para seguidamente se dar a este caso a finalidade que se julgar mais conveniente» - advertido foi Miguel Arcanjo «pela sua deficiente exibição no último encontro realizado contra o Sport Lisboa e Benfica» e repreendido foi Monteiro da Costa «pela sua falta de comparência ao tratamento de duches e massagens». Por sua vez, a Hernâni atirou-se elogio (aliás, mais…): «Louvar o jogador Hernâni Ferreira da Silva pelo abnegado esforço, espírito de luta e exemplar dedicação clubista que demonstrou durante o último encontro com o Benfica, mormente depois de ter fraturado a mão direita» (não deixando de regressar a jogo, depois de «entrapado»» - e a Otto Vieira reiterou-se a «confiança na sua seriedade, no seu zelo e na competência que sempre tem demonstrado no desempenho do seu cargo de treinador…» (Sendo já março, vitória da Académica nas Antas levou-lhe a cabeça. Já com Francisco Reboredo, seu adjunto, puxado ao lugar principal chegou o FC Porto à final da Taça de Portugal que, disputada nas… Antas, foi para o Leixões – e campeão europeu já era o Benfica, graças à vitória de Berna, ante o Barcelona).

COM PEDROTO CONTRA O DESTINO CASMURRO, EUSÉBIO CASTIGADO À… PANCADA (E UM ÁRBITRO PASMADO COM AS SUAS PERNAS EM CICATRIZES)

Por mais alguns anos se foi arrastando o FC Porto em «travessia de deserto» - e ao chamar-se José Maria Pedroto para seu treinador num ápice se insinuou a ideia de que, com ele, poderia dar-se a volta ao destino casmurro em que o clube andava. Eliminando o Benfica (com 2-2 e 3-0) ganhou lugar na final da Taça de Portugal – e ganhou-a ao Vitória de Setúbal. Da Luz saíra, porém, Pedroto em polvorosa…

Antes do FC Porto, até houve árbitro pasmado com as pernas de Eusébio

A primeira página de A BOLA do dia 6 de abril de 1968 tivera como principal chamariz entrevista a Hélder Viegas, a entrevista em que o chefe do departamento de futebol do Benfica soltara (surpreendente ou talvez não) a confidência a Cruz dos Santos: «Eusébio é, com certeza, dos jogadores mais castigados pelos adversários, em todo o mundo. Chega a parecer impossível como um homem pode resistir a tanta pancada. Quando leio ou oiço dizer que Eusébio exagera nas suas reações, ao ser carregado, até já tenho pensado em fotografar as pernas do jogador e enviar essas fotografias para os jornais, a fim de que melhor se compreenda a razão de algumas das suas reações… Quando o Vasas jogou na Luz, o árbitro pediu-me para que Eusébio passasse pela sua cabina, para que lhe autografasse umas fotografias, bastante grandes, onde ele aparecia. Disse-lhe que a presença de Eusébio na sua cabina se tornaria demorada porque o jogador precisava de ser tratado e o árbitro não compreendeu bem. Como Eusébio não lhe aparecesse, acabou por ir à nossa cabina com as fotografias e ficou pasmado por ver Eusébio a receber tratamento de um quase sem número de lesões, sobretudo na perna direita, sendo quatro delas autênticas chagas, em resultado da sobreposição de diversos ferimentos que, semana a semana, os adversários lhe foram fazendo acumular…»

Nessa noite, na Luz, sob arbitragem do holandês Van Ravens, o Benfica batera o Vasas por 3-0 – sendo de Eusébio os dois primeiros golos (o outro foi de José Torres). Horas antes, nascera-lhe a filha – e, podendo, ir, enfim, noite alta, vê-la à Cruz Vermelha  levou Nuno Ferrari consigo. A foto de Eusébio com Flora e Carla apareceu em A BOLA por cima de anúncio a James Bond 007 – Casino Royale no Éden e no Alvalade, com Ursula Andress em pose tão sensual que houve quem se espantasse que a Censura não a riscasse a Lápis Azul «por excesso de erotismo» (sim, fazia-o e, às vezes, até mandava retocar as fotografias a tinta da china para que slips ou soutiens tapassem mais do que lá aparecia…)

Eusébio uma vez mais a sofrer os… «ossos do seu ofício». Foto: ASF

Impressionante (ou talvez não) fora o que acontecera em Budapeste na primeira mão desses quartos de final da Taça dos Campeões. Chegando lá com microrrotura a atazaná-lo, ao entrar no estádio Eusébio queixou-se das dores que não se amansavam - e António Simões falou-lhe ao coração, num murmúrio: «Precisamos de ti, joga que eu não te faço correr muito». Injetaram-no (uma vez mais), jogou – e o Vasas-Benfica acabou com 0-0. 

… E PEDROTO COMEÇOU A FALAR DE ÁRBITROS (E DOS JOGADORES DO BENFICA A «INTERCETAREM» UM DELES)

Antes disso, o primeiro Benfica-FC Porto da época levara a que, na primeira página de A BOLA do dia 8 de janeiro de 1968, o título da crónica de Aurélio Márcio fosse: «Foi um jogo excelente mas com casos a mais» - e o «caso» fora o penálti com que Eusébio abriu o placard (aos 20 minutos). 

Acabando com 3-2, José Maria Pedroto, o treinador portista, saiu do campo em polvorosa: «Não pretendo afirmar que os árbitros nomeados para dirigir partidas da Luz, entram no campo com a intenção premeditada de beneficiar o Benfica. Até porque, em princípio, não duvido da honestidade de ninguém. O que acontece é que se deixam influenciar, decisiva e nocivamente, pelas reações e protestos dum público por vezes demasiado apaixonado e arrebatado. Ultimamente, tal estado de coisas vem excedendo os limites. Isto só não deflagrou, agora, em sururu porque nós, velhos conhecedores deste ambiente tradicional, vínhamos mentalizados para enfrentá-lo e aceitá-lo com todo o fair-play possível. Se perdemos, ao péssimo trabalho do árbitro o devemos. Houve penálti assinalado por pretensa mão de Rolando. O jogador salta e o esférico bate-lhe no ombro. No golo anulado ao Manuel António, o árbitro alegou ter havido mão. Nada disso. Recebeu a bola no peito, bem no peito. Aliás, o liner assinalou devidamente o tento e dirigia-se para o centro do terreno quando foi intercetado pelos jogadores do Benfica. Aí, receou as responsabilidades e tomou atitude contrária. Feitios. Eu não me insurjo contra quem não tem coragem só pelo facto de ter nascido assim. Admira-me é como gente desta pode andar no futebol. Tudo isto é lamentável. Muito lamentável. E o mal é que já começo a acreditar que não tem remédio.»

O Benfica bateu o FC Porto e Pedroto saiu em polvorosa do banco…

Insólito (naquele tempo…) foi o FC Porto permitir aos jornalistas falar apenas com Custódio Pinto, o seu capitão de equipa. Com o roupeiro a praguejar contra o árbitro, inusitado (ou talvez não) foi o que ele disse (ou não) a Carlos Sequeira, o repórter de A BOLA: «Há tanto que dizer dele, quem quiser falar do sr. Porfírio, que fale, eu é que não, eu só quero falar do jogo e o jogo foi o que se viu: o FC Porto a jogar e o Benfica a ganhar».

AO CAMPEONATO JUNTOU O BENFICA MAIS UMA FINAL DA TAÇA DOS CAMPEÕES (COM EUSÉBIO EM DOR)

Quando (com esse maio de 68 a correr para o fim), o Benfica partiu para Londres – para disputar ao Manchester United mais uma final da Taça dos Campeões, tinha já feito a festa de campeão (com mais dois pontos que o FC Porto). Em Wembley continuou Eusébio com o joelho em aleijão – e, a dois minutos dos 90 o remate (que poderia ter evitado o prolongamento) não lhe saiu à Eusébio. Entre os 92 e os 98 minutos, o United de George Best e Bobby Charlton fez três golos - e Otto, sem glória, deu dor ao desgosto: «As lesões de Coluna e Torres mataram a gente. Mesmo assim tivemos a vitória na mão. Azar foi o Eusébio em dia de não ser Eusébio, mas, coitado, o cara jogou a 40 por cento, só por isso não fez golo naquela arrancada no finzinho...» 

Era já junho, 2 de junho de 1968, quando, o FC Porto voltou à Luz para as meias-finais da Taça de Portugal – e, dessa vez não perdeu, empatou: 2-2. Eusébio voltou a marcar golo a Américo – e, já não podendo jogar nas Antas, o Benfica perdeu por 3-0 (e a Taça ganhá-la-ia ao Vitória de Setúbal graças a golos de Nóbrega e Pavão – a estrela que tinha a nascer para súbito fim trágico). 

Operado (outra vez) ao joelho pelo Professor Azevedo Gomes - para furar a limitação à entrada no quarto nº 1 da Clínica de Santa Lucas, jornalista italiano telefonou para a receção como se fosse o... Rei Humberto, a telefonista acreditou, Eusébio falou e a reportagem saiu em Milão – em mais um sinal do impacto que ele causava pelos quatro cantos do mundo… 

Eusébio a sair da clínica depois de mais uma operação ao joelho. Foto: ASF

COM O FC PORTO A CORRER PARA O TÍTULO, DA LUZ SAIU A CONFUSÃO QUE PÔS BOMBA A ESTOIRAR NAS ANTAS

O que não tardou foi que polémica e desalinho voltasse a tocar Pedroto – com o Benfica pelo meio. Num fogacho se percebeu que, sob efeito de Pedroto, o FC Porto poderia mesmo ganhar o campeonato de 1968/1969 ao Benfica. Por entre a luta taco-a-taco em que se ambos se espicaçavam, coube aos portistas vir à Luz defrontar os benfiquistas, na segunda na segunda eliminatória da Taça de Portugal. 

Aos seis minutos, Atraca fez golo na própria baliza, aos nove Eusébio pôs o placard em 2-0 – fechando-o, aos 81, de penálti – e em A BOLA do dia seguinte (do dia 10 de março de 1969) nem por isso se notou caramunha a soltar-se do treinador portista: «O marcador com que terminou a partida é exagerado, grande penalidade que ditou o 3-0 não existiu mas o Benfica justificou plenamente o triunfo. A minha equipa teve tarde de pouca inspiração, jogando muito abaixo do seu normal, em demasiada lentidão. Não, não acredito que esta eliminação nos vá afetar o futuro – este desaire até pode ser muito benéfico na luta pelo título. Para o campeonato não viremos, decerto, à Luz, atuar outra vez au ralenti.» 

Nesse «jogo do título» já o FC Porto não teria, contudo, Pedroto no banco. A razão disso talvez ainda não se percebesse na nota levada à primeira página de A BOLA do dia 13 de março de 1969: Crise no FC Porto – quatro jogadores afastados da primeira categoria.

O que se passou, contou-o Álvaro Braga, num texto que arrancava assim: «Uma bomba que houvesse estourado no Estádio das Antas não teria causado tantos efeitos como o que se vivem no clube.»

No Benfica, 0 – FC Porto, 0 que pôs o título nas mãos da equipa de Otto Glória (com dois pontos de avanço), Pedroto já não esteve no banco

Embalado na fé da conquista do título, José Maria Pedroto submetera à Direção, presidida por Afonso Pinto de Magalhães, «plano de ataque» que, num dos seus pontos solicitava que «todas as deslocações para os jogos no Sul passassem efetuar-se de avião, a fim de poupar os jogadores à fadiga das deslocações em comboio». 

Aceite aos bocadinhos, fora o que se fizera já para o jogo da Taça (contra o Benfica) e se ensaiara na viagem para a final do Jamor (contra o V. Setúbal) - mandando-se fazer seguro de vida a 1000 contos por cada futebolista e cada elemento da equipa técnica e a 500 contos pelo massagista e o roupeiro. Nesse «plano de ataque», outra «novidade» era que os jogadores teriam de entrar em estágio à terça-feira – e foi o que pôs o rastilho em fogacho…

A REBELIÃO DOS COMERCIANTES E O «JANTAR ÍNTIMO» DO PRESIDENTE 

Após o primeiro treino a seguir à derrota na Luz, levaram-se os jogadores ao balneário do Hospital de Santo António para banhos de imersão – e antes do arranque para o Hotel Suave Mar (onde  fariam o previsto estágio), Eduardo Gomes, o capitão de equipa, abriu o «movimento de desobediência», informando o treinador de que não seguiria por não querer deixar tanto tempo ao abandono o negócio que mantinha como proprietário de um café nos arredores da cidade. Américo, o guarda-redes que, no regresso do Mundial abrira loja de artigos desportivos a que chamou… Magriço, concordou, através de chamada telefónica, seguir pelo mesmo caminho – e igual justificação. Custódio Pinto (outro dos comerciantes da equipa) também – e, ouvindo-os, Alberto (o António Alberto Teixeira que era o universitário do plantel) mostrou-se, ousado, em solidariedade com os companheiros. Aturdido, Pedroto ainda tentou demovê-los – e, não o conseguindo, atirou-os, de castigo, para treinos nas reservas (Américo só depois de ter passado pelo posto médico, a queixar-se de gripe). 

Américo, o guarda-redes do FC Porto, foi um dos «comerciantes» que se recusaram a ir para estágio. Foto: ASF

José Maria Pedroto haveria de denunciá-lo: «Telefonou-me o presidente a dizer que a viagem de avião ficava mais cara 7000 escudos e não compreendia a razão por que queríamos utilizar o avião. Não podia, disse eu, fazer a guerra e poupar balas e gasolina. Fomos de avião para o jogo com o Benfica, mas regressámos de comboio, em virtude de não se ter marcações de regresso ao Porto!» (Coristas do Parque Mayer surgiram, em reportagem, no Século Ilustrado a queixarem-se de que era pouco os 2000 ou 3000 escudos que ganhavam por mês – pois que do seu bolso tinham de pagar as maquilhagens e as cabeleireiras - e até as «meias de cena, que têm duração curta e não ficam a menos de 300 escudos o par».)

Ainda assim, de avião voltou o FC Porto a viajar para Lisboa – para partida com a CUF. Com Rui em vez de Américo, Bernardo da Velha em vez de Custódio Pinto e Rolando em vez de Eduardo Gomes, venceu por 1-0 (com golo de Djalma) – e só na semana seguinte é que o chão começou a fugir-lhe dos pés (apesar de o sonho ainda não): graças a golo de Manuel António (que após passagem pelo FC Porto regressara a Coimbra para terminar o curso de Medicina – e haveria de ser o último médico de Miguel Torga…) a Académica ganhou nas Antas. 

Pior ainda sucedeu na semana seguinte (a 30 de março de 1969). Na véspera, Afonso Pinto de Magalhães convidara para «jantar íntimo», pondo em lugar de destaque os jogadores que Pedroto suspendera (considerando-os «cabecilhas de uma rebelião»). 

No regresso tardio ao Lar, Atraca não acatara a ordem de António Morais, o treinador-adjunto, para recolher de imediato ao quarto – provocando-o em remoque até: «Ainda não fiz a digestão, se quiser vá fazer queixa ao presidente». 

Indo ele e Pedroto, em vez do presidente aceitar a «expulsão imediata» do jogador que lhe propunham, Pinto de Magalhães desculpou-o: «O rapaz não teve culpa de ter jantado tarde.» O treinador atirou-lhe, brusco, pedido de demissão, o presidente não lhe aceitou a renúncia – e, como das Antas saiu o União de Tomar com 2-2, aí sim: rolou a cabeça de José Maria Pedroto. 

PEDROTO FOI A TRIBUNAL (POR QUATRO AUTOMÓVEIS…) E ASSEMBLEIA IMPEDIU-O DE VOLTAR A ENTRAR NO FC PORTO

Mesmo com esses três pontos surpreendentemente desperdiçados, o FC Porto ainda seria campeão se vencesse na Luz. Já com António Morais no banco, empatou – e assim bastaria ao Benfica vencer em Tomar para de lá sair com o título - venceu por 4-0. 

Pedroto colocou ação por despedimento sem justa causa a correr no Tribunal do Trabalho exigindo 452 contos ao FC Porto: 52 de ordenados de quatro meses ainda por saldar, 300 por danos morais e 100 pela conquista do Campeonato que garantia que não se teria perdido se tivesse continuado no comando da equipa. 112 992 escudos era o que custava, então, o Morris 850 – e, em resposta, Afonso Pinto de Magalhães levou a Assembleia Geral proposta que impedia Pedroto de voltar a entrar no FC Porto como treinador. Aprovada por larga maioria, durou até 1975 – e esfrangalhada, com a ajuda de Pinto da Costa e deu no que se sabe…