‘Old Firm’: a história só os distingue, não os separa
IMAGO

‘Old Firm’: a história só os distingue, não os separa

INTERNACIONAL06.04.202410:00

Rangers e Celtic protagonizam mais um duelo de uma rivalidade complexa, e desta vez com um português de cada lado. Designação vem de 1904, como explica o historiador do Rangers

Rangers e Celtic escrevem, este domingo, mais uma página, a 439.ª, de uma rivalidade centenária, das mais intensas do futebol europeu. Em jogo está a liderança da Liga escocesa, mas muito mais do que isso, por força de uma história que mistura política, religião e não só, ainda que os clubes tenham procurado, nos últimos anos, e em sintonia, passar a mensagem de que essa rivalidade pode viver sem as diferenças que vincaram o passado.

Os dois emblemas não são rivais de sempre, até porque nasceram com 16 anos de diferença. O Rangers apareceu primeiro, em 1872, fundado pelos irmãos Moses e Peter McNeil e pelos amigos Peter Campbell e William McBeath, que foram buscar a ideia do nome a uma equipa de râguebi inglesa, de Swindon. O Celtic surgiu em 1888, por iniciativa do irlandês Andrew Kerins, o Irmão Walfrid, membro da ordem Marista, que viu no clube uma forma de combater a pobreza na região leste de Glasgow, em particular junto da comunidade católica irlandesa.

O primeiro duelo entre as duas equipas foi disputado a 28 de maio de 1888, mas a rivalidade só ganhou força já em pleno século XX, por força da influência dos acontecimentos que levaram à Guerra da Independência da Irlanda (1919-1921).

«No início os clubes davam-se bem, não havia qualquer questão. Os rivais do Rangers eram o Queen’s Park ou o Vale of Leven. Nos primeiros anos não era o Celtic, seguramente. Isso vem na sequência dos problemas na Irlanda, quando se dá a independência e as questões entre católicos e protestantes irlandeses. Muitas pessoas mudaram-se para a Escócia e importaram as crenças para essa rivalidade sectária. Isso intensificou-se a partir dos anos 1920, até aos anos 70, e ainda existe por aí», explica David Mason, historiador oficial do Rangers, em conversa com A BOLA por ocasião do recente jogo com o Benfica, para a Liga Europa.

Transferência abalou tradição

O contexto social acentuou diferenças: tendo em conta aquilo que já estava na base da sua fundação, o Celtic reforçou o estatuto de clube da comunidade irlandesa, católica, republicana e socialista. O Rangers era o emblema dos escoceses, protestantes e conservadores, assim como da comunidade da Irlanda do Norte. Daí que, nas bancadas azuis, seja habitual ver a Union Jack, a bandeira do Reino Unido, e a condizer com as bancadas verdes aparece a bandeira da República da Irlanda.

«A questão não era tão política, era mais religiosa: se crescias numa família católica, a tendência era que fosses adepto do Celtic. Se fosse uma família protestante, serias adepto do Rangers», resume David Mason.

Estes rótulos entranharam-se na identidade dos clubes, e o Rangers chegou a ter a regra oficiosa de acolher apenas protestantes no plantel. Um princípio contrariado por Graeme Souness — mais tarde treinador do Benfica —, que em 1989 decidiu contratar o católico Mo Johnston, antigo avançado do Celtic. Em Ibrox houve cachecóis do Rangers queimados em protesto por adeptos mais radicais, entre os rivais gerou-se um sentimento de traição, até porque o jogador, semanas antes, tinha dito que não queria jogar noutro clube que não fosse o Celtic. Ironicamente, Mo Johnston, que posteriormente foi viver para os Estados Unidos, é pai de gémeos separados pela preferência clubística relativamente aos rivais de Glasgow.

Cuidar da rivalidade registada

A polémica transferência forçou a mensagem de que a rivalidade, por mais camadas que tenha, deve manter-se saudável. Algo que os clubes souberam entender, em vários momentos da história. Basta pensar no termo Old Firm, designação dada aos dérbis desde 1904. «Nesse ano saiu um cartoon, num jornal. As duas equipas defrontavam-se tantas vezes, em jogos de caridade, do campeonato e da taça, com grandes assistências, que isso gerou a crença de que estavam quase a orquestrar a situação para fazer dinheiro com os adeptos. Por isso um dos jornais sugeriu que os dois clubes funcionavam como uma grande companhia, como uma grande firma», explica David Mason, historiador do Rangers. Em 2001 os dois emblemas juntaram-se para registar comercialmente a designação e salvaguardar direitos de utilização.

Rangers e Celtic também deram as mãos no luto, quando 66 adeptos morreram e mais de 200 ficaram feridos na sequência de uma tragédia registada numa das escadarias do estádio Ibrox, nos minutos finais do dérbi de 2 de janeiro de 1971. Poucas semanas depois uma equipa formada por elementos dos dois emblemas defrontou uma seleção escocesa composta por jogadores de outros clubes, com o objetivo de recolher fundos para apoiar as famílias das vítimas.

A rivalidade também é feita de caprichos, claro, como aquele que leva alguns adeptos do Celtic a argumentar que a Old Firm teve um fim, uma vez que um processo de falência levou à refundação do Rangers, em 2012. «Hoje em dia alguns adeptos do Celtic não gostam do termo Old Firm porque dizem que o Rangers acabou aí», explica Mason.

Os Gers caíram para a terceira divisão e estiveram quatro épocas afastados da elite do futebol escocês. Entretanto já voltaram a festejar um título, o 55.º, em 2021, mas o rival aproveitou para passar de 43 para 53 campeonatos neste período.

Na classificação atual a diferença também é mínima, e com um português de cada lado: Fábio Silva defende as cores do Rangers, que vai a jogo com um ponto a menos, mas também com um jogo em atraso para o Celtic, de Paulo Bernardo.

A rivalidade está ao rubro, mas deseja-se que seja pacífica, até porque os clubes «têm protagonizado iniciativas positivas para remover esses estigmas que estão associado a ambos», conforme explica David Mason. «Temos o Benfica e o Sporting em Lisboa, Liverpool e Manchester United, os dois clubes de Milão… sempre houve rivalidade no futebol. Rangers e Celtic são os dois principais emblemas do país, e assim é há muitos anos, e nem sempre tem a ver com questões religiosas ou políticas. Na Escócia não podes ficar em segundo lugar. É o mesmo que ficares em último», acrescenta o historiador do Rangers.