ENTREVISTA A BOLA «Jorge Jesus seria a pessoa certa para treinar a seleção do Brasil»

FUTEBOL28.09.202419:42

Márcio Sampaio tem uma longa carreira como preparador físico e o último treinador com o qual trabalhou foi Jorge Jesus. Estiveram juntos durante 15 anos e o último projeto foi na Arábia Saudita, no Al Hilal. Recebeu A BOLA para explicar as razões por que decidiu regressar a Portugal e abandonar a equipa do técnic português

— Porque quiseste deixar de ser preparador físico do Jorge Jesus?

­— Essa é a pergunta que muitos me fazem, porque toda a gente diz que nós somos extremamente bem pagos, e todos querem trabalhar com um treinador como ele. Mas eu tinha aqui uma questão pessoal que tem a ver com a minha família, que não queria ir para a Arábia Saudita e o facto de a minha filha ter 4 anos pesou muito mais nessa decisão. Foi uma decisão que já foi tomada em novembro de 2022, quando nós estávamos no Fenerbahçe. Portanto, mais uma razão para que as pessoas percebam que isto não foi uma decisão tomada por me ter zangado ou por nos termos chateado. Foi uma decisão tomada há muito tempo, que só se prolongou mais um ano por insistência do mister, que fez de tudo para que eu continuasse e fizesse este último ano. O mister sabia que eu queria parar, para descansar, para estar mais perto da minha família e regressar a Portugal.

­— Regressaste a Portugal para poder estar mais perto da tua filha Rafaela. Esses 4 anos dela entre Portugal, Turquia e Arábia Saudita foram difíceis de gerir?

­— Sim, foram muito difíceis porque nós vínhamos poucas vezes a Portugal e quando vínhamos ficávamos só 3/4 dias. Eram poucos dias cá e partia-me o coração quando a deixava na escola e sabia que já não a ia buscar. Isso para mim era muito desolador. E ela, ao longo do tempo, foi começando a perguntar-me mais porque é que me ia embora. Chorava quando a começávamos a preparar para me ir embora. Custava-me muito estar ausente. No ano passado vim quase todos os meses a Portugal, fruto do compromisso das seleções, mas era sempre muito pouco o tempo que passava aqui. Também importa dizer que isto só se prolongou durante mais um ano porque supostamente o mister era para ir para a seleção da Arábia Saudita e eu tinha manifestado que iria com ele, porque aí poderíamos estar mais tempo em casa. Só que as coisas mudaram de rumo e ele acabou por ir para o Al Hilal, voltou a convidar-me e pronto, aceitei, mas não me arrependo em nada. O que foi, foi e agora é olhar para o futuro.

O 'mister' sabia que eu queria parar, para descansar, para estar mais perto da minha família

­— Mas, antes de olharmos para o futuro, gostaria que me falasses um bocadinho desse passado. 15 anos ao lado de Jorge Jesus é uma vida?

­— Sim, é uma vida e se olharmos para trás parece que passou imensamente rápido porque são temporadas seguidas e sinceramente só fazendo as contas é que acabamos por perceber que foram tantos anos. Mas também é verdade que quem trabalha com ele é sempre stressante, exigente. Não é que não seja com todos os outros, porque, felizmente, trabalhei com excelentes treinadores, mas com ele é efetivamente a 100 à hora. Isso desgasta e faz com que os 15 anos pareçam 30, mas no bom sentido. Devo-lhe tudo e fiz questão de lhe dizer pessoalmente, porque temos de ter gratidão por quem nos ajuda, quem nos dá a oportunidade e eu com ele aprendi imenso. Tenho de ter imensa gratidão pelo que ele fez. Ele no fundo acabou por mudar um bocadinho a minha vida no contexto financeiro, não há como negar porque trabalhar com ele permite que nós tenhamos salários que normalmente com outros treinadores não conseguimos, porque também ele goza de uma reputação diferente. Essa reputação fê-lo fazer história no Brasil, fê-lo estar no Benfica em dois momentos.

­— Tu só estiveste na equipa técnica na segunda passagem pelo Benfica, mas estiveram juntos em vários clubes. De todos os momentos em que trabalhaste com Jorge Jesus, qual foi o mais desafiante?

— Acho que o mais desafiante foi em Braga. Foi a minha primeira experiência com ele, sem praticamente o conhecer, e tive de me moldar àquilo que ele é. Eu às vezes tenho alguma dificuldade em entender pessoas que falam dele, sem nunca trabalharem com ele. Quem o acompanhou em Braga, e o acompanha agora percebe que há uma grande diferença entre esses dois momentos. Obviamente, acho que é notório que o Benfica lhe deu outra bagagem. O Benfica deu-lhe outro conhecimento também que ele provavelmente não tinha em Braga em alguns assuntos, mas que ele já era um treinador de reputação e reconhecido, que chegou a Braga com créditos firmados no futebol português. O Benfica foi muito motivante também e eu digo motivante para não dizer desafiador, porque o contexto era muito diferente e passaram-se muitas coisas, que fizeram com que nós não pudéssemos ter feito o que queríamos, igual ao Flamengo, por exemplo.

­— Que foi mais difícil de gerir nesse desafio todo que foi fazer parte da equipa técnica do Benfica em 2020/2021 e 2021/2022?

­— Eu acho que foi tudo! Foi a expectativa criada por ele chegar. O Benfica não vinha de um bom período e ele chegou com a expectativa de colocar a equipa novamente a jogar aquilo que tinha jogado na primeira passagem, até por aquilo que as pessoas identificavam que foi no Flamengo. Óbvio que não podemos dissociar essa expectativa daquilo que foi dito na conferência de imprensa da apresentação e depois foi desafiante criar uma simbiose no momento crítico que nós tivemos como foi o Covid-19. Foi muito difícil porque o Jorge Jesus é um animal de palco, que precisa de sentir o público pois também extravasa as suas emoções com o público a puxar pela equipa e foi notório essa quebra em relação a ele, por não ter o público no estádio. Foi difícil também para os próprios jogadores. Toda a conjuntura da expectativa na chegada, depois o não apuramento para a Liga dos Campeões naquele jogo com o PAOK [derrota por 1-2 a 15 de setembro de 2020], e os sucessivos problemas que aconteceram relativamente ao Covid-19 formaram uma bola de neve, que nunca mais conseguimos segurar.

­— E a forma como saíram do Benfica acabou por ser toda ela muito polémica, com alguns dos jogadores do plantel à mistura...

­— Sou um bocado suspeito porque eu fui uma das pessoas que mais insisti, e o mister sabe, para que nós viéssemos para o Benfica, mas eu tinha uma questão pessoal: a minha filha iria nascer em agosto desse ano e, portanto, queria vir para Portugal e também queria muito vir para o Benfica porque não tinha estado na primeira passagem do mister Jorge Jesus. Nós estávamos num grande clube [o Flamengo], estávamos muito felizes e tínhamos ganho tudo. Ele era verdadeiramente amado pelos jogadores, e ainda hoje ele é um ídolo lá e uma pessoa muito acarinhada, ele nunca passou isso noutro sítio. Nem nós. Eu nunca vi esta forma como os jogadores o conseguiram moldar. Estamos a falar disto e ainda ontem eu recebi uma chamada do Rafinha. O Rafinha ligou-me e dizia-me que tinha muitas saudades daquele tempo. O futebol é uma das poucas atividades no mundo em que nós nunca sabemos se estamos a dar o passo certo. A verdade é que tínhamos muita expectativa quando viemos para o Benfica e para mim foi bastante frustrante não ter conseguido fazer o mesmo que fizemos no Flamengo, ou algo parecido

Foi um conjunto de coisas que precipitou a nossa saída do Benfica

­— O Benfica não jogou o dobro, nem jogou três vezes mais. A preparação física daquele Benfica foi a que tu desejavas?

­— Eu trabalhava com o Mário Monteiro e não foi pelo nosso trabalho que as coisas correram mal. É muito interessante fazeres essa pergunta porque eu esperava que me fizessem um dia essa questão. Muitas vezes as pessoas atribuem ao preparador físico a boa ou má condição física de uma equipa, ou muitas vezes os jogadores ficam com má impressão nossa, mas as pessoas esquecem-se de uma coisa importante, e isto tem de ser dito, nós fazemos aquilo que o nosso treinador nos deixa fazer. Óbvio que há sempre uma conversa, mas a última decisão é sempre do treinador. Isto não está ao contrário. Neste caso, não era o Mário que dizia o que é que nós íamos fazer. O nosso treinador tem uma metodologia de treino, que nós já conhecemos, mas muitas das vezes era ele que definia o tipo de trabalho que nós tínhamos de fazer. Acho que tem de se desmistificar a nível global pois não são os preparadores físicos, ou os adjuntos, que dizem ao treinador o que é que vão trabalhar. Têm uma opinião, mas é o treinador que decide. Eu e o Mário tínhamos muita liberdade, mas não tínhamos poder de decisão. Não foi por questões de preparação física que as coisas não correram bem, ouve um conjunto de outras coisas.

­— A verdade é que a recuperação do jogador começa a ser cada vez mais falada e o preparador físico acaba por estar muito mais no centro das atenções.

­— Hoje em dia os jogadores têm uma densidade competitiva muito grande, mas também torna-se importante dizer que hoje em dia os jogadores procuram fora os personal trainers. Eu não tenho nada contra os personal trainers mas acho que os jogadores hoje em dia não precisam de um personal trainer, precisam de um recuperador físico. Alguém que os ajude a recuperar do jogo porque cada vez há mais jogos e os jogadores têm pouco tempo para recuperar para o jogo seguinte.

­— A saída do Benfica foi traumatizante?

­— Para mim foi porque queria muito estar no Benfica e não é normal com ele sairmos a meio da temporada. Acho que nos deixou lições para o futuro, ideias boas e não ideias más. Ao contrário daquilo que as pessoas pensam não foi exclusivamente um problema com um ou dois jogadores. Sim, houve a reunião que toda a gente sabe, mas o mister já falou disso, e o próprio Pizzi também, mas não foi como se divulgou e as coisas não se partiram ali. Foi um conjunto de coisas que precipitaram a nossa saída e no fundo o Benfica vive de resultados, as coisas não estavam bem, nós tínhamos acabado de perder no Porto. Mas,não saímos porque um jogador ou dois jogadores fizeram para que saíssemos.

­— Pelo meio, até chegarem à Arábia Saudita, muito se falou da possibilidade de irem treinar a seleção brasileira. Triste por não se ter concretizado?

­— Claro, quem não queria treinar aquela que é a melhor seleção do mundo? Permitia-nos treinar os melhores jogadores do mundo e para mim era estar numa outra competição, em que ainda não estive. Um dos desejos que tenho é poder trabalhar numa seleção porque permite-nos ir a um Campeonato do Mundo. Já disputei quase todas as competições. Sem ser arrogante, e sem estar aqui a puxar o lustro, atrevo-me a dizer que Jorge Jesus seria a pessoa certa para treinar a seleção do Brasil. Ele tem um nível de conhecimento do jogador brasileiro e do campeonato brasileiro muito grande. Eu nem sequer estou na equipa técnica, e se acontecesse provavelmente nem iria, mas a verdade é que o mister Jorge Jesus seria a escolha certa no momento certo, e o momento certo já deveria ter sido e continuo a achar que terá de ser. Ele tem estatuto, tem uma liderança forte, um grande conhecimento do futebol brasileiro e a seleção precisa disso. Não quer dizer que outros não tenham, não quer dizer que o Abel Ferreira não pudesse ser um bom selecionador, eu acho que o mister Jorge Jesus tem o perfil para ser o selecionador do Brasil e iria ter sucesso. Ainda hoje ele continua a acompanhar o futebol brasileiro, continua a ser um apaixonado pelo Brasil e um apaixonado pelo jogo do jogador brasileiro. Podem dizer-me que quem lá está também tem esse conhecimento, e é verdade, mas acho que eles precisam de outro perfil de treinador. Costuma dizer que santos da casa não fazem milagres… É cultural que não levam um treinador estrangeiro, mas se calhar pode estar aí agora a chave possam modificar alguma coisa. O futebol brasileiro também precisa de uma nova cara.

Jorge Jesus era verdadeiramente amado pelos jogadores do Flamengo

­— Qual a principal diferença que notaste nesta nova realidade árabe de agora, uma vez que já tinhas estado lá anteriormente, antes de irem para o Brasil?

­— O clube evoluiu muito. Investiu em recursos humanos, em infraestruturas, o clube dotou-se de todas as condições para ser um dos maiores clubes do mundo. Contrataram jogadores de qualidade, todo um staff de estrutura que lida diariamente com os jogadores, que são pessoas que têm provas dadas no futebol mundial. Foram buscar um CEO ao Manchester City e um treinador com títulos. Foram buscar jogadores com currículo, um médico ao Sevilha que tinha ganho Ligas Europas, portanto, tentaram ir buscar pessoas com provas dadas.

­— E o futebol é cada vez mais competitivo?

­— Ao trazer jogadores de grande qualidade o futebol torna-se muito mais competitivo. O Al Hilal ter ganho o que ganhou esta época é muito valorizado pelo facto de ter havido um investimento muito forte da parte dos outros clubes. O Al Hilal jogou melhor porque tinha as melhores ideias de equipa e reforçou-se muito melhor.

­— E o treinador tem um peso nas escolhas dos reforços ou não tem opinião sobre isso?

­— Na Arábia Saudita as coisas modificaram um bocadinho. Os principais clubes foram comprados por um fundo, o treinador tem uma palavra a dizer naquilo que são os reforços, mas depois há o fundo que decide aceitar ou não os nomes que os clubes possam dar. Muitas vezes são eles próprios a sugerir tendo em conta aquilo que é a imagem do país também. Mas o mister tem alguma margem de manobra porque é um treinador vencedor e eles querem dar todas as condições para vencer.

­— Agora, estás oficialmente desempregado. Como é que te sentes nessa condição?

­— O primeiro mês foi muito difícil para mim. Ouvia os jogadores a falar quando terminavam a carreira, e eu não terminando a carreira, estou desempregado à espera que apareça alguma oportunidade, mas no início foi muito difícil. Eu pensava que era mais fácil. Foi o criar uma rotina, habituar-me a não dar treino. Até deve ter sido mais difícil para a minha família aturar as minhas más disposições diárias, porque sentia falta de alguma coisa. Hoje já me sinto mais tranquilo. Já consegui criar uma rotina e agora estou à espera que apareça algum convite de trabalho para quebrar aqui este momento de pausa.

­— Imaginas-te mais a ser preparador físico em Portugal ou numa nova experiência no estrangeiro, não tão longe como a Arábia?

— Vejo nas duas situações. Estou disponível para aceitar um convite de um clube para trabalhar num departamento de performance, ou para integrar uma equipa técnica, fora na Europa ou em Portugal, ou numa seleção que me permita vir mais vezes a casa. Neste momento não me vejo a regressar a países onde ultimamente até tive convites como a Arábia ou Brasil. Continente europeu ou Portugal seria o ideal.

­— Tens medo de ficar muito tempo no desemprego? Tens medo de que se esqueçam de ti?

­— Acho que esse receio aparece sempre. É preciso dizer que eu tomei esta decisão olhando para a minha carreira e tendo percebido que já tinha ganho quase tudo o que ambicionava ganhar, representando clubes sonhava representar. Quando tomei esta decisão de parar, tenho de estar preparado pois o momento passe, as pessoas esquecem quem não aparece e o que eu tenho de fazer é aparecer. No fundo, estive 25 anos a trabalhar e agora parei. Foi um risco calculado e só o futuro dirá se foi boa ou má decisão, mas foi uma decisão consciente e vivo bem com ela.

O futebol é uma das poucas atividades no mundo em que nós nunca sabemos se estamos a dar o passo certo

­— Que é um bom preparador físico?

­— Acima de tudo tem de ser leal à equipa técnica onde está e depois tem de ser uma pessoa atenta e perceber onde é que pode ajudar os jogadores. Eu nos últimos anos foquei-me muito nisso e às vezes digo que na minha vida tive, em determinada altura, um editor da linha do tempo que cortou uma parte da minha vida e jogou fora. Há um hiato de tempo da minha vida pessoal que não me lembro, porque eu foquei muito nisto. Foquei-me muito no querer trabalhar, no querer ajudar os jogadores a serem melhores. Durante muitos anos só li coisas da minha área, só fiz coisas da minha área, só convivi com gente da minha área, e por isso perdi muita coisa. Eu não estava no aniversário da minha mãe há 10 anos, porque é a 30 de junho e nós estamos sempre a trabalhar nessa altura.

­— Vais ser sempre preparador físico ou a possibilidade de seres treinador principal paira na tua cabeça?

­— Acho que devemos ser bons na área que escolhemos. Quero continuar a ser preparador físico, mas não coloco de parte a possibilidade de, daqui a um tempo, até poder enveredar pela carreira de treinador ou algo parecido. Não me vejo neste momento a ser treinador de uma equipa principal sénior, mas provavelmente nuns sub-23 até poderia fazê-lo dependente do clube, mas quero focar-me naquilo que é a minha área, que eu sei que posso ajudar suportado na experiência que adquiri ao longo destes últimos anos.