Oito clubes, um jogador e paixões muito distintas. Raphael Guzzo encontra-se livre de contrato, depois de terminada a quarta passagem por Chaves e conta-nos que o futuro está em aberto
Terminado o contrato com os flavienses, Raphael Guzzo é um jogador livre e confiante face ao que o futuro lhe reserva. Esta foi a quarta passagem pelo Chaves, clube pelo qual nutre muito carinho, isto porque os pais mudaram-se do Brasil para a cidade transmontana, tendo ido viver para lá pouco depois de nascer.
Ser jogador de futebol não fazia parte dos seus planos - tinha mais jeito para o ténis - mas como muitos miúdos, foi incentivado pelo pai para, pelo menos, experimentar as escolinhas do AD Flaviense em 2003. Tinha oito anos.
«No início, era apenas um hobby. Nunca tive o sonho de ser profissional de futebol, só mais tarde, quando assinei o meu primeiro contrato. Acredito que as crianças têm de se divertir a jogar futebol, sem a pressão de se tornarem profissionais, para evitar desilusões futuras. Todos os pais devem apoiar os interesses dos filhos sem impor expetativas desmedidas».
Três anos mais tarde, chegou a primeira incursão no Chaves, clube grande da cidade e que na altura disputava a Liga 2. A integração nos planteis dos iniciados serviria para ganhar mais experiência e ambientar-se a um futebol cada vez mais exigente. Tal como a vida, à medida que vamos crescendo, os desafios vão ficando mais sérios e inesperados. Por isso é que Raphael Guzzo não estava à espera de que observadores do Benfica o chamassem para jogar no Seixal, numa das academias mais conceituadas do mundo.
Balanço da época feito através de comunicado; os contratempos do início da época, a saída de Vítor Campelos, o mau arranque de campeonato e os erros de arbitragem; mesmo numa fase negativa, dirigentes dos flavienses recordam o que de bem foi feito e garantem trabalho árduo para recolocarem o clube na elite
«Fui para Lisboa sem grandes expectativas, mas o Benfica foi o clube que mais ajudou a potencializar a minha carreira. As condições oferecidas pelo clube, o acompanhamento escolar e a exigência constante foram cruciais. A adaptação não foi fácil, especialmente estando longe da família aos 13 anos. O falecido Jaime Graça foi fundamental nesse período, proporcionando-me um espaço mais confortável e ajudando-me a adaptar-me melhor. Os anos no Benfica foram de muita felicidade e construí amizades duradouras. Recordo-me da viagem de Chaves até Lisboa com os meus pais, foi um momento marcante de saudade e realização. No entanto, os momentos mais felizes superaram qualquer tristeza durante a minha formação no clube».
Em 2014 regressou a Chaves, por empréstimo do Benfica, para enfrentar «uma temporada desafiadora»: «Estivemos perto de subir de divisão, mas perdemos nos últimos segundos num jogo crucial contra o Tondela. Foi um período de grande crescimento para mim, tanto em campo quanto na capacidade de lidar com pressões e expetativas».
A estreia no campeonato principal do futebol português dar-se-ia no ano seguinte, no Tondela, novamente por empréstimo dos encarnados: «Estrear-me na Liga com 20 anos foi um sonho realizado, embora tenha enfrentado dificuldades de adaptação. O tempo no Tondela foi curto, mas marcante. Não estava feliz a fazer o que mais gostava». Regressou ao Benfica a meio da época e disputou 11 partidas.
A esta altura, Raphael Guzzo já podia riscar alguns objetivos por cumprir, mas havia mais um: jogar em campeonatos internacionais e, se possível, em Espanha, nem que fosse na segunda divisão, ao serviço do Réus.
«Sempre tive o desejo de jogar no futebol espanhol, algo que acompanhava desde pequeno com o meu pai. No entanto, a adaptação foi mais difícil do que eu esperava, agravada pelo facto de jogar fora da minha posição natural e pela lesão grave no joelho que me afastou dos relvados por quase cinco meses. Fico com pena, pois acredito que poderia ter aproveitado melhor a oportunidade. Mesmo assim, jogar contra grandes clubes como Sporting Gijón, Almería e Valladolid, e sentir a atmosfera nos seus estádios, foi especial. No entanto, esses dois anos foram desafiadores e influenciaram o rumo da minha carreira».
No regresso a Portugal, e abalado pela má experiência em Espanha, percebeu que as oportunidades de integração no futebol português eram escassas. Um período conturbado e que precisou de ajuda psicológica, mas não a pediu.
«Quando decidi voltar para Portugal, percebi que as oportunidades eram poucas, especialmente na Liga, e foi então que surgiu a oportunidade de ir para o Famalicão. Os dois anos na Espanha quase custaram caro à minha carreira, mas consegui superar os desafios e retornar à Liga em Portugal. Atualmente, reconheço a importância de falar acerca da saúde mental. Passei por momentos de grande desconfiança e frustração, mas a minha família esteve sempre ao meu lado. Acredito que procurar ajuda não é motivo de vergonha. Se hoje voltasse a passar pelo mesmo, certamente procuraria ajuda profissional. A estabilidade emocional e familiar que encontrei foi crucial para revitalizar a minha carreira».
O médio de 29 anos – cumpre 30 em janeiro – vive atualmente em Vila Nova de Famalicão e o clube da cidade abriu-lhe as portas em 2018, por empréstimo dos espanhóis, numa época que o ajudou a ganhar mais visibilidade.coroado com uma subida à Liga.
«Senti-me verdadeiramente valorizado e que fazia parte de um grupo unido e competente. O clube cresceu imensamente desde a minha primeira passagem, tanto em infraestruturas quanto em ambições. As amizades que fiz e a experiência de ver o clube crescer tornaram essa passagem muito especial para mim».
Seguiu-se mais uma passagem pelo Chaves, que continuava na Liga 2 e com fortes ambições de subir de patamar. Não o conseguiu em 2019/20 e a meio da época seguinte foi contratado pelo Vizela. E aqui sim, subiu de divisão.
«Cheguei num momento de baixa confiança pessoal e vi ali uma oportunidade de reverter, novamente, a minha trajetória. O projeto apresentado pelo clube, combinado com a liderança de Álvaro Pacheco, foram determinantes. Foi um treinador que me ajudou a melhorar minha intensidade de jogo e a confiança, o que foi essencial para voltar a jogar na Liga. A mudança-chave da minha carreira, sem dúvida, foi a ida para o Vizela, numa altura que já ninguém acreditava que fosse capaz de poder jogar na Liga. No futebol é tudo o que tu fazes no passado recente. Aqui a confiança do treinador Tulipa também foi muito importante».
Duas temporadas e meia depois, Guzzo voltou a viajar para fora de Portugal. O projeto apresentado pelo Goiás, aliada à vontade de jogar no Brasil, país onde nasceu, fizeram-no arriscar por meia-época. À sua espera, estava Armando Evangelista, a orientar a equipa canarinha.
«Foi uma experiência inigualável para mim, considerando as minhas raízes brasileiras. Sempre sonhei em sentir de perto a atmosfera e a intensidade do futebol brasileiro. Quando surgiu a oportunidade, graças ao que vinha alcançando em Portugal, agarrei-a. A vivência de estar imerso num dos campeonatos mais competitivos do mundo, e compreender o futebol brasileiro por dentro, superou todas as minhas expectativas. A atmosfera nos estádios brasileiros é algo único. Em Portugal, há três ou cinco estádios onde a atmosfera pode intimidar, mas no Brasil, isso acontece em quase todos os estádios. O futebol lá é mais técnico e cheio de jogadores habilidosos, mas também se torna mais fragmentado durante as partidas, com transições constantes que testam a resistência e a tática dos jogadores. Aqui em Portugal, as equipas são mais equilibradas e não permitem tantos contra-ataques, o que foi uma das maiores dificuldades que senti no Brasil. O jogo lá é muito ‘lá e cá’, o que exige ainda mais esforço físico, especialmente para jogadores do meio-campo como eu».
Depois da sua segunda experiência no estrangeiro, o médio ainda teve forças para voltar ao Chaves pela terceira vez, até porque era a primeira vez que ia representar o clube na Liga. Um feito que terminou amargamente, com a descida de divisão.
«Apesar de ter outras propostas, decidi voltar a Chaves, mesmo sabendo que seria uma tarefa difícil, tentei redimir-me de uma passagem anterior em que não alcancei meu potencial. Queria mostrar minha capacidade e ajudar o clube a sair da situação em que se encontrava. Embora não tenhamos alcançado o objetivo, não me arrependo, pois realizei o sonho de jogar pelo Chaves na primeira divisão. Reconheço que, como jogadores, falhamos em responsabilidade, qualidade e competitividade».
Quanto ao futuro, tudo está em aberto: «Sinceramente, hoje estou mais tranquilo porque já sei lidar melhor com a situação do impasse do mercado. O que eu preciso é de férias, porque o desgaste emocional foi grande nestes últimos seis meses. Abdiquei de muito tempo com a família para me dedicar à causa de salvar o clube da minha terra da descida de divisão. Agora, é óbvio, tenho objetivos bem claros na minha cabeça. Se puder voltar a ir para fora do país, para um campeonato que considero competitivo e que eu queira, terei todo o gosto em ir. Se ficar em Portugal, ficarei feliz na mesma. O mais importante para mim é fazer o que mais gosto, me esforçar no que mais gosto de fazer e estar perto da minha família».