A «base legal que permite à polícia adotar as medidas anunciadas» nos duelos entre Benfica e Marselha
Adeptos do Benfica. Foto: IMAGO/Sports Press Photo

A «base legal que permite à polícia adotar as medidas anunciadas» nos duelos entre Benfica e Marselha

NACIONAL09.04.202421:41

Recusa de entrada de cidadãos e proibição de circulação pode resultar de três fatores

No âmbito da proibição de adeptos benfiquistas em Marselha e de adeptos do Marselha no Estádio da Luz, A BOLA contactou Jerry Silva, advogado e Mestre em Direito do Desporto, para entender a base legal que permite à polícia daquela zona proibir os adeptos portugueses de lá se deslocarem. Procurámos ainda tentar perceber se as autoridades portuguesas poderiam proceder da mesma forma.

Jerry Silva, advogado e Mestre em Direito do Desporto.

Leia, abaixo, a explicação que o advogado facultou ao nosso jornal:

A confirmada recusa de entrada de cidadãos para assistir ao próximo jogo da Liga Europa encontra fundamento legal em normas de direito internacional, sendo importante distinguir com clareza as proibições que resultem de três fatores: (1) a livre circulação no espaço Schengen (área sem controlo de fronteiras internas, que engloba vários países europeus); (2) as limitações que resultem do espetáculo desportivo e, desta forma, da coordenação entre promotor, organizador do evento (neste caso um jogo da Liga Europa), os OPC (órgãos de polícia criminal, como a PSP e a GNR) e a segurança privada contratada para o evento; (3) e ainda aquelas que possam resultar exclusivamente da aplicação de sanções impostas pela UEFA em razão, por exemplo, da proibição de venda de bilhetes a adeptos da equipa visitante.

Em relação ao primeiro ponto, importa assim ter presente os seguintes instrumentos neste primeiro momento de análise: o Acordo Schengen (que visou suprimir gradualmente os controlos nas fronteiras internas e instaurar um regime de livre circulação para todos os nacionais dos países signatários, dos outros Estados-Membros da União Europeia e de certos países não pertencentes à UE), a Convenção de Schengen (completa o acordo e define as condições e as garantias de criação de um espaço sem controlos das fronteiras internas) e o Tratado de Lisboa (que tornou o espaço sem fronteiras internas, onde é assegurada a livre circulação de pessoas).

Para compensar a abolição das fronteiras e, ainda assim, poder estabelecer-se controlo sobre os cidadãos que circulem no Espaço Schengen, foi criado o SIS 2 (Sistema de Informação Schengen de segunda geração), que corresponde a uma base de dados comum aos países que integram o espaço Schengen, e que possibilita às autoridades nacionais responsáveis pelo controlo de fronteiras, pela imigração, pela aplicação da lei e pela emissão de vistos desses Estados, o acesso a informações sobre pessoas (não autorizadas a entrar e/ou permanecer no espaço Schengen, a deter, desaparecidas, notificadas para comparecer perante uma autoridade judiciária ou a submeter a controlos discretos ou específicos, entre outras).

Com acesso a esta base de dados, qualquer país pode monitorizar todo o cidadão que possa, por exemplo, estar sinalizado como perturbador ou potencialmente perturbador da ordem e paz públicas. Seja por via de troca de informações entre autoridades nacionais, seja pelo acesso autónomo das autoridades policiais francesas, são estes instrumentos, conjugados com a legislação francesa sobre entrada, estada e permanência de cidadãos estrangeiros que permite a anunciada proibição de entrada em território francês de cidadãos/adeptos do Benfica, como poderia ser de qualquer outro clube.

Assente nestes instrumentos (Acordo Schengen e Convenção Schengen, com recurso a SIS 2), a legislação interna desenvolve legislação (no caso português a lei 23/07 de 4 de julho) que tipifica os fundamentos de recusa de entrada de certos cidadãos no território nacional. Esta é a base legal que, associada a fundamentada possibilidade de perturbação da ordem e paz pública, permite à polícia francesa adotar as medidas anunciadas.

Claro está que as outras hipóteses (2 e 3) resultarão também de perigosidade para a ordem e paz públicas ou do espetáculo desportivo por parte de cidadãos referenciados ou que, não sendo referenciados, depois de estarem em território nacional possam configurar tal perigo (2) ou que nem sequer acederão ao espetáculo por comportamentos anteriores que determinam sanções da UEFA (3).

Nos mesmos termos, também em Portugal poderia ser recusada a entrada no território português dos adeptos franceses que estejam nas mesmas condições e referenciados via SIS 2, atento o que dispõe art.32 n.1 e 4:

Recusa de entrada e de permanência

  Artigo 32.º
Recusa de entrada

1 - A entrada em território português é recusada aos cidadãos estrangeiros que:
a) Não reúnam cumulativamente os requisitos legais de entrada; ou
b) Estejam indicados para efeitos de recusa de entrada e de permanência no SIS; ou
c) Estejam indicados para efeitos de regresso ou recusa de entrada e de permanência no SII UCFE; ou
d) Constituam perigo ou grave ameaça para a ordem pública, a segurança nacional, a saúde pública ou para as relações internacionais de Estados membros da União Europeia, bem como de Estados onde vigore a Convenção de Aplicação.
4 - A entrada deve ainda ser recusada em caso de descoberta de indicação para efeitos de regresso existente no SIS, acompanhada de uma proibição de entrada, podendo ser autorizada, após intercâmbio de informações suplementares com o Estado membro autor da indicação e eliminação desta, quando o nacional de país terceiro demonstrar que deixou o território dos Estados membros da União Europeia e dos Estados onde vigore a Convenção de Aplicação, em cumprimento da respetiva decisão de regresso e tiver cumprido o período da proibição de entrada e de permanência.