7-2 do Benfica pôs Cândido no Sporting (de graça)

A BOLA DO DIA 7-2 do Benfica pôs Cândido no Sporting (de graça)

NACIONAL10.11.202309:51

O primeiro jogo entre benfiquistas e sportinguistas que A BOLA tratou (para o campeonato) foi um espanto. O primeiro jogador a fazer ‘hat trick’ vinha no barco da madrugada para o treino e depois ia trabalhar como serralheiro.

A primeira vez que A BOLA tratou de um Benfica-Sporting para o campeonato foi no dia 29 de abril de 1946 — e a manchete fez-se em (surpreendente) exclamação: «Benfica derrotou Sporting por 7-2!». Cabendo a crónica a Cândido de Oliveira, titulou-a assim: «O vencedor só teve dificuldade em marcar a primeira bola». Fechando-se, pois, essa primeira parte com 0-0, ao primeiro minuto do segundo tempo Arsénio bateu, enfim, Azevedo (que, antes, realizara «três ou quatro defesas cintilantes») e mais dois golos haveria de fazer (o 4-1 aos 71 minutos e o 6-1 aos 78).

Arsénio Duarte nascera no Barreiro, a 16 de outubro de 1925. Atrevendo-se a teste no Barreirense, à sua equipa de honra subiu num abrir e fechar de olhos: «Ainda não tinha 16 anos, chamaram-me para jogar contra o Sporting na festa de despedida de Francisco Câmara. Quem me marcou foi Aníbal Paciência. Ao princípio estava um pouco enervado, mas, depois, serenei, perdi o respeito ao grande jogador que ele era.» (Talvez não se imaginasse como, depois, contra o Sporting, parecesse sempre melhor avançado do que era — e como ele havia poucos…)

Arsénio, o goleador que era serralheiro

No cacilheiro pela madrugada

Disputando-se, por maio de 1943, nas Amoreiras a final do Campeonato da II divisão, o Barreirense bateu a Sanjoanense por 6-1 — e Ribeiro dos Reis pôs, então, Arsénio no seu desejo. Com os presos políticos (como Cândido de Oliveira) sujeitos a «multas» de 20 contos (para além das prisões e dos desterros), seis contos de luvas recebeu Arsénio pela assinatura de contrato com o Benfica — e promessa de mais 750 escudos por mês (que era o ganho normal entre os «craques da equipa»). Para ir ao treino, no Campo Grande, tinha de apanhar o barco das 5.45 da manhã. No cacilheiro vinham outros benfiquistas — Moreira e Félix — e, a seu lado, os sportinguistas Azevedo, Armando Ferreira e Soeiro e os belenenses Quaresma e Rafael (cada qual para seu estádio). Arsénio treinava-se, tornava a correr para o elétrico e para o barco, e, ao chegar ao Barreiro, entregava-se a oito horas de trabalho, como serralheiro na CUF.

Carro com dinheiro do Brasil

Ao ataque do Benfica, nesse jogo com o Sporting, faltou uma estrela: Guilherme Espírito Santo. Lesionado, Janos Biri colocou Mário Rui no seu lugar — e, tal como Arsénio, também ele saiu do encontro com hat-trick, cabendo-lhe o 2-0 aos 52 minutos, o 5-1 aos 75 e o 7-1 aos 81. O outro golo da sua equipa apontou-o Rogério, o Pipi. (Meses depois, o Botafogo tentá-lo-ia. Não se aguentando, porém, muito tempo satisfeito por lá, Rogério acordaria regresso ao Benfica, revelando-o: «Em meio ano, ganhei mais do que ganhara em toda a minha vida. A aventura no Rio de Janeiro deu para comprar um automóvel, que era, então, o sonho de qualquer jogador de futebol. Com o dinheiro do Benfica antes comprara uma bicicleta.»)

Os 7-2 que podiam ser 10-2

Correndo por vários jornais que um boletineiro da Marconi se queixou de lhe terem roubado a bicicleta no valor de 2500 escudos num breve instante em que a deixara estacionada na rua para fazer uma entrega, os golos que Martins sofreu do Sporting, sofreu-os de Albano (aos 67 minutos) e de Peyroteo (aos 85) e, na sua crónica, em A BOLA, Cândido de Oliveira sublinhou-o: «O resultado, ainda que faça franzir a testa, não é suficientemente claro — para quem não viu o jogo… Porque estes 7-2 podiam, muito normalmente, ter sido substituídos por 10-2 — e tudo estaria certo.» 

Igual espanto pelo desfecho se insinuava na primeira página do Diário de Lisboa, à beira de notícia assim — «O ministro do Interior de Itália declarou que a polícia está prestes a descobrir o cadáver de Mussolini, roubado do cemitério de Milão, na noite de segunda-feira» — e, com esses desconcertantes 7-2 a embrulharem António Abrantes Mendes em maus lençóis, António Ribeiro Ferreira (que a 19 de janeiro de 1946 fora eleito presidente do Sporting) dirigiu carta para a redação de A BOLA a desafiar Cândido de Oliveira para seu treinador. Cândido aceitou-o com duas condições: que Abrantes Mendes continuasse a arrecadar os 1000 escudos que lhe davam mensalmente (para si não queria um tostão que fosse) e que o mantivessem, a seu lado, na equipa técnica. Assim foi — e assim se abriu caminho para o que haveria de ser a fascinante história dos Cinco Violinos.

Campeão, loucura e morte

Esses 7-2 ainda são a maior goleada do Benfica ao Sporting _ e, nesse campeonato de 1945/1946, se na última jornada o Belenenses não vencesse o Sport Elvas e Benfica, campeão seria o Benfica. Graças a golo que saltitou (perto do fim) de um pontapé «admirável» de Rafael Correia, foi para Belém. 

Na época seguinte, através do génio de Cândido de Oliveira, regressaria o Sporting a campeão — e Rafael abandonaria o futebol. Pela sua Trafaria continuou Rafael Correia a tratar de negócio que tinha no comércio — e, nas eleições de 1958, mostrou a sua aversão ao salazarismo, embrenhando-se na candidatura de Humberto Delgado contra Américo Tomás, que era o presidente do Belenenses no arranque da época que lhe rendera o título. 

Antes sequer de se consumar a farsa que pôs Tomás na presidência da República, da PIDE soltou-se o boato que levaria a que, a 13 de outubro de 1958, Rafael Correia voltasse a ser notícia de jornal. Por exemplo, no DL escreveu-se: «A tragédia foi motivada pelo facto de as vítimas terem posto a correr factos íntimos que só ao agressor diziam respeito. Ele já em tempos atentara contra a sua existência, dizendo-se que, ultimamente, dava indícios de loucura». 

Não, não era verdade e era da sua torpe praxe: sorrateira, a Censura só permitia que, nos jornais, se falasse de suicídios se fossem cometidos por «inimigos do Estado Novo» — e raro era também não lhe pregarem pitadas de «loucura». E, após ter morto a tiro três homens — entre eles quem, na PIDE, pusera a correr em mistério os «factos íntimos que só ao agressor diziam respeito»… —, matou-se o Rafael.