Espaço Universidade Francisco Lázaro e a Fundação do Comité Olímpico de Portugal (artigo de Gustavo Pires, 112)
Quando hoje vejo as dolorosas romarias dos dirigentes desportivos a Belém e a São Bento em defesa de um futebol caduco e falido e de um Olimpismo sem memória e sem futuro, vem-me à recordação Maria Helena da Rocha Pereira (1925-2017) e tudo aquilo que aprendemos com a sua investigação acerca da antiguidade clássica em especial a grega.
Por ela ficámos a saber que as vitórias alcançadas nos Jogos Olímpicos eram “a salvação de toda a cidade”, quer dizer, uma das maiores conquistas que um qualquer cidadão da Hélade podia alcançar. O vencedor representava o símbolo máximo da excelência que se traduzia no caráter, na desenvoltura, na autodisciplina, na destreza, na coragem e na perseverança. Por isso, quando o campeão regressava à sua cidade era saudado como um herói e as suas vitórias, como refere a historiadora, glorificadas através de cantos breves e simples que ficaram registados, entre outros locais, nas odes de Píndaro (518-440 aC) a mais célebre das quais é, certamente, a primeira dedicada a Hierão de Siracusa vencedor da corrida de cavalos. Cantava Píndaro: “Tal como a água é o primeiro dos elementos, como o ouro é a mais preciosa de todas as riquezas, como os raios de sol são as mais ardentes fontes de calor, não há combate mais nobre de contar do que o dos Jogos Olímpicos”.
Quando, nos tempos que correm, estão a ser vilipendiados nos mais diversos países do mundo os valores olímpicos da cultura ocidental, é oportuno referir Philipp Melanchthon (1497-1560), teólogo, astrónomo e entusiasta da astrologia grega, professor universitário e reformador alemão colaborador de Lutero, considerava “tanto os Jogos Olímpicos como as Odes de Píndaro paradigmas da humanidade europeia”. O problema é que, na sucessão de crises que têm dominado a vida na Europa perguntamos, cada vez com mais frequência, onde é que está a humanidade europeia?
Hoje, 30 de Abril de 2020, entre um futebol que, para além do respeito que os portugueses deviam merecer, se recusa a encarar com dignidade a participação nos Jogos Olímpicos e as sucessivas missões olímpicas que, para além do gabarito de alguns atletas de excelência, à revelia do nível desportivo do País, têm primado pelo insucesso e, finalmente, numa inaceitável indiferença institucional consubstanciada numa breve página no portal da instituição e do link para um texto explicativo que ao pretender justificar os erros do passado, comete lamentáveis imprecisões e explica muito pouco ou nada, comemoram-se os 108 anos de existência do Comité Olímpico de Portugal (COP). Parabéns ao seu insigne presidente.
O que aconteceu foi que, há cento e oito anos, à margem do desinteresse pelo desporto e a participação portuguesa nos Jogos Olímpicos, por motivos epistemológicos e corporativos da Sociedade Promotora da Educação Física Nacional (SPEFN) e, por motivos políticos do Governo da República, um grupo de amantes do desporto, liderados por Jaime Mauperrin Santos (1857-1913), fundou o Comité Olímpico Português (hoje Comité Olímpico de Portugal). E a primeira direção foi constituída pelos seguintes elementos:
Presidente de honra: Conde de Penha Garcia;
Presidente: Jaime Mauperrin Santos;
Vice-presidentes: António Lancastre; Charles Bleck; Manuel Egreja;
Secretário-geral: José Pontes;
Secretários: Annibal Pinheiro; Armando Machado; Duarte Rodrigues;
Membros: Alvaro Lacerda; Antonio Osorio; Daniel Queiroz dos Santos; Fernando Correia; Guilherme Pinto Bastos; José Manuel da Cunha Menezes; Pedro Del Negro; Pinto de Miranda; Sá e Oliveira.
E assim, foi possível angariar os recursos necessários a fim de enviar uma Missão Olímpica aos Jogos da V Olimpíada que se realizavam em Estocolmo. E a Missão Olímpica foi constituída pelos seguintes elementos:
- António Stromp, estudante de medicina - Atletismo;
- Armando Cortesão, finalista do Instituto Superior de Agronomia - Atletismo;
- Fernando Correia, funcionário superior do Montepio Geral - Esgrima;
- Francisco Lázaro, operário de carpintaria - Atletismo;
- Joaquim Vital, empregado do comércio - Luta.
Fernando Correia exerceu as funções de Chefe de Missão e Joaquim Vital as de massagista.
Infelizmente a Missão ficou marcada pela morte de Francisco Lázaro que, tal como um qualquer herói da Grécia antiga, caiu em combate ao trigésimo quilómetro da corrida da Maratona. Como qualquer herói grego, morreu jovem, aos 23 anos de idade, às 6.00 horas da manhã do dia 15 de julho de 1912, no Real Hospital Serafina.
A data da fundação do COP foi respeitada até 1978 e honrada sobretudo a morte de Francisco Lázaro ao serviço de Portugal, bem como de todos aqueles que estiveram na origem da fundação do COP. E de tal maneira que, em 1962, sob a presidência de Nobre Guedes, foi comemorado o quinquagésimo aniversário da instituição. Da efeméride existem diversos documentos oficiais e uma placa alusiva, devidamente datada, que foi profusamente distribuída por várias entidades públicas e privadas, nacionais e internacionais e está depositada no Museu Olímpico do Comité Olímpico Internacional (COI).
Então, o que é que aconteceu?
O que aconteceu foi que, em 1978, a pedido do COI, foi enviado para Lausana dirigido a Monique Berlioux diretora-geral da instituição, um relatório sobre a situação do Olimpismo em Portugal (Portugal et l’Olympisme) a fim de, como já tinha acontecido com outros países, ser publicado na Revista Olímpica do COI. Mas, por incrível que possa parecer, o autor do relatório que havia até tido responsabilidades nas comemorações do cinquentenário do COP em 1962, de modo próprio e sem perguntar nada a ninguém, resolveu alterar a data da fundação do COP de 30 de Abril de 1912 para 26 de Outubro de 1909, atribuindo a data da fundação do COP àquela que era tida como a da fundação da SPEFN!!! Ora, nem a SPEFN tinha nada a ver com o desporto como se pode verificar pelos seus estatutos, nem os seus membros estavam minimamente interessados no desporto e nos Jogos Olímpicos pois eram sobretudo amantes das escolas de ginástica principalmente da de Pehr Henrik Ling (1766-1839).
A primeira pessoa a alertar para o que se estava a passar foi um antigo atleta Olímpico de seu nome Fernando Azinhais, funcionário superior da Direção Geral dos Desportos que, em 1979, imediatamente depois da edição da Revista Olímpica onde constava o relatório sobre Portugal, denunciou ao próprio COP a situação. No entanto, a inteligência olímpica fez ouvidos de mercador sobre a opinião de alguém que, ao tempo, era, com toda a certeza, quem mais sabia sobre o Movimento Olímpico em Portugal. Desde então, diversos investigadores, através de artigos e de livros, acrescentaram novos dados que reforçaram a situação originalmente denunciada por Orlando Azinhais. Apesar disso, o 75º aniversário e o 100º aniversário do COP foram comemorados nas datas erradas. E hoje, a confusão relativamente à data da fundação da instituição expressa nos próprios estatutos é, simplesmente, lamentável.
Os atuais estatutos do COP (edição de 27 de Setembro de 2016) no seu preâmbulo dizem o seguinte: “As ligações de Portugal ao Movimento Olímpico remontam a 1906 com a nomeação de um português, António Lancastre, para o Comité Olímpico Internacional, e continuaram com a Sociedade Promotora de Educação Física Nacional, criada em 1909. Em 1912 foi criado o Comité Olímpico Português o qual a partir de 1993 passou a ter a atual designação de Comité Olímpico de Portugal”.
Ora bem, (1º) o português António Lancastre (1857-1944) não foi nomeado para o COI onde não existem nem nunca existiam nomeações. Os membros do COI sempre foram e continuam a ser cooptados pelas Sessões (plenários) sob proposta da Comissão Executiva. António Lancastre foi o 47º membro do COI e foi cooptado por voto postal entre os membros do COI a 30 de junho de 1906. (2º) A SPEFN, já o referimos, como se pode verificar pelos seus estatutos dos quais se conhecem, pelo menos, duas versões, nunca teve qualquer acção no domínio do desporto antes pelo contrário.
Albano Estrela de quem fui aluno na disciplina de História do Desporto quando, em 1968, ingressei no primeiro ano do curso de professores do Instituto Nacional de Educação Física (INEF) dizia, cito de cor, a história, para além da datação, é uma questão epistemológica inultrapassável. Embora Albano Estrela, tenha sido um dos professores mais importantes para a evolução científica do INEF nos finais dos anos sessenta e princípios dos anos setenta, acabou saneado pelos estudantes estalinistas e maoistas, apoiados pelos eternos idiotas úteis que no Verão Quente de 1975, dominavam a instituição. O respeito pela história não se fica só pela datação. A datação tem um enquadramento epistemológico que deve ser estudado, compreendido e respeitado sob pena de a história passar a ter pouca ou nenhuma utilidade.
Repor a verdade histórica é uma questão de justiça relativamente a Francisco Lázaro e aos seus companheiros olímpicos bem como a todos aqueles que a 30 de Abril de 1912, ousaram fundar o Comité Olímpico Português.
Para além do “dress code”, das pompas e circunstâncias, quem não conhece nem compreende o passado de uma instituição como a de um comité olímpico nacional jamais será capaz de organizar o futuro.
Gustavo Pires é professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana