A BOLA FORA Quando um ex-PSG e Liverpool fingiu uma lesão para Pedro Mendes entrar

Neste novo episódio de A Bola Fora, o convidado é Pedro Mendes, 33 anos, defesa central que após muito tempo no estrangeiro regressou a Portugal, pelo Estrela da Amadora, e continua sem clube. Ao seu lado, a companheira Joana, também ela interveniente nesta entrevista.

É em França que atingiste o auge da tua carreira. Com chamada à seleção.
Foi mais um dos sonhos que foi concretizado. Chega uma altura da tua carreira, acho que foi com 27 ou 28, que nesse processo, nessa caminhada, vai-se apagando um pouco o sonho de ser internacional.

 Já estavas naquela fase de já não vai dar?
Não é já não vai dar, mas fica ali um bocado adormecido e depois volta-se a reavivar com os resultados. Ou seja, não vivia todos os dias a pensar nesse sonho. Era um sonho que tinha, como ter outros sonhos. Até é uma história engraçada, porque sempre que eu era pré-convocado, ficava à frente da televisão e tinha de ir para casa a correr, que era sempre às nossas 13 horas de lá. Ficávamos os dois à frente da televisão. Nós não sabíamos que, ao seres convocado já sabes antes de sair na televisão. Como já estava há alguns anos, há uns dois anos a ser pré-convocado, chegou a uma altura, vou fazer a minha vida e depois também se for convocado também hão de ligar. Bem dito e bem feito, fui buscar umas saladas, já tinha pago, estava a entrar no carro, liga-me o meu treinador. “Pedro, tudo bem?” Eu pensei que ia dizer alguma coisa do jogo ou do próximo fim de semana, alguma coisa assim. Ele: “É para dizer que foste convocado.” E eu, hei não acredito. Deixei as saladas no chão, meti-me de joelhos, as lágrimas a escorrer e as pessoas que deviam estar à janela deviam dizer este só pode ser maluco. Ou ganhou ou Euromilhões, ou qualquer coisa assim. Nem quis acreditar. É óbvio que depois o jogo seguinte, estás a jogar, mas já estás a pensar na seleção e não te queres lesionar e queres só fazer os mínimos para não te lesionares.

 Foste praxado?
Fui praxado. Tive de cantar uma música. Qual é que foi a música? Era a única que eu sabia de cor. Era do Guto, era “Debaixo dos Lençóis”. Mas era engraçado porque é uma música romântica, slow. Lembro-me de ter feito uma introdução. O truque para tu te libertares é que tu consigas interagir com eles ou com o staff. E lembro-me que o Fernando Santos tinha feito uma analogia que agora não posso dizer, mas do fazer golo com o fazer amor, coisas assim. Também era a única música que eu sabia de cor, que nem precisava de letra. E eu disse, olhe, vou fazer uma analogia àquilo que o Mister disse. Vou cantar aqui esta música do Guto. O pior é quando tu acabas a música e eles mandam os guardanapos, aí quer dizer que foste muito mal. Mas teres uma mesa, ou seja, a mesa dos jogadores era de 26, do staff era ainda mais. No clube é diferente. Ou seja, é menos monstruoso, digamos assim. Passa mais despercebido.

 Essa fase ótima no Montpellier acaba por coincidir também com a tua primeira lesão grave. Fica alguma raiva nesse sentido?
Fica. Fica raiva no sentido em que, lá está, o facto de não ser tão exigente, tão rigoroso, poder-me-ia ter ajudado numa recuperação mais sã a nível mental, que iria ajudar-me a recuperar melhor fisicamente. Para dar um exemplo, nós tínhamos uma máquina que, os mais especialistas devem saber, que se chama Biodex. E aquilo tem lá uns valores e um objetivo. Apontava no telemóvel, já conseguia fazer de potência X. E amanhã, quando vier outra vez à máquina, eu quero superar. Até podia estar a doer, mas eu queria superar. Não estava a ouvir esses sinais do corpo. Em vez de estar a fazer melhor, estava a fazer pior. Às vezes o ser exigente demais também leva à obsessão e a transbordar o copo.

 Tentaste acelerar os prazos para voltar mais rápido à competição?
Não, nunca. Sempre respeitei aquilo que me disseram. Vamos para a esquerda, que é o caminho, eu vou seguir. Se me disseres que se comes 200 gramas de brócolos e vai-te ajudar a recuperar do joelho, eu vou fazer isso. Eu sou essa pessoa. Segui sempre as minhas ordens. E a minha frustração foi que, aos sete meses e meio, eu iria estar pronto para jogar. Deram-me alta médica e fiz tudo aquilo que me mandaram. Eu não me sentia apto para jogar ainda. Tive de atrasar um pouco mais, voltei ao campo, senti que não dava, voltei para trás, fiz mais um mês. Daí ter durado mais do que estava previsto. Quando um jogador se lesiona, é normal, até nas redes sociais, dizerem que vais voltar mais forte. É uma frase comum no futebol.

É isso que tenho de perguntar. Sentias isso ou o corpo dizia-te exatamente o contrário?
Eu mentalmente sentia isso, mas o corpo dizia-me o contrário. A minha mente até queria desvalorizar o que o corpo dizia. Portanto, também havia outras pessoas que me diziam “Ah, isso vai passar, não te preocupes.” “Não sei quantos também passou por isso e passou, hoje em dia está aí a jogar”. Só que os sinais estavam lá e eu fingia que não. Até que chegou a um ponto que olhei para mim e disse: “Não, isto assim não está certo.” Fui pedir outras opiniões e realmente não estava certo.

Os jogadores de futebol são solidários nestes casos de lesões graves. Ou seja, mesmo às vezes quando não se conhecem trocam experiências.
Acho que não é os jogadores de futebol. Acho que tem a ver muito com o ser humano. Depende do carácter da pessoa, da personalidade, daquilo que tu és. Não é por ser jogador ou não. Pode haver um jogador que seja mais sensível a isso e vai dar-te conselhos. Pode ser um que até é da tua posição e está mortinho para que tu continues no estaleiro, entre aspas, para que continuar a jogar. Não estou a dizer mentira nenhuma. O futebol é o desporto coletivo mais egoísta. Os grupos que triunfam mais são aqueles que têm o mesmo objetivo. Agora, aqueles que são mais egoístas e egocêntricos são aqueles que estão a lutar para, se calhar, se salvarem. Posso-te contar aqui um episódio que me tocou imenso, que foi do Mamadou Sakho. Ou seja, vou-te dar um exemplo contrário àquilo que eu estou a dizer. Internacional francês, lenda do Paris Saint-Germain, jogou no Liverpool e joga na minha posição. E ele diz-me assim durante a semana. “Tu este fim de semana vais ser titular.” E eu disse: “Achas? Ainda não fiz um minuto esta época.” “Não, não, mas estás a trabalhar bem. Eu não vou estar cá porque vou fazer uma ação de beneficência e só vou regressar quinta-feira. Portanto, só vou treinar sexta, e não acredito que vá jogar no sábado ou no domingo. Portanto, o outro está lesionado. Só temos um. Um, que é o titular, e se calhar vais ser tu. Vai ser a tua oportunidade, vais ver.” Fomos para o treino. O treinador distribuiu os coletes na sexta-feira. Confirma-se a minha teoria. Não vou jogar. Vai jogar o Mamadou Sakho, que faltou a três treinos, ou quatro, e foi titular. E no final do treino ele disse-me, “Pedro, eu acho que é injusto, acho que tu é que deverias ser o titular”. E eu pensei assim, isto é conversa da tanga. E ele disse-me, “acho que isto não é justo, prepara-te porque aos 80 minutos, 75, 80, vais entrar”. Disse-lhe: “Mamadou, não quero favores, se tiver de jogar, vou jogar por mérito próprio, ou porque o treinador assim entendeu que vou substituir-te ou vamos mudar de tática, ou o treinador precisa das minhas competências. “Não, não gosto de injustiças, vais jogar.” Bem dito e bem certo. Aos 75 minutos vejo-o a alongar o gémeo, a pedir assistência.

Mas foi propositado?
Foi propositado. Posso garantir-te, foi o meu pior jogo da vida, os meus piores 13 minutos. Contra o Toulouse. Empatámos em casa, tive uma grande ovação dos adeptos, também me marcou bastante. Mas já não jogava há quase um ano e meio. E senti-me nervoso, parecia que era a primeira vez que estava a jogar, parecia um sub-16 a jogar pela equipa principal. Completamente nervoso, ansioso, se calhar não era o meu momento de entrar. Mas não é isso que eu retiro disso tudo, porque no fundo é só um jogo e é só um resultado. Mas foi aquela atitude que aquele colega teve para comigo. Até então, não tinha ligação nenhuma com ele. Era só profissional, era respeito pelo colega, pela carreira que teve. Acabei o jogo muito triste, muito desiludido pela minha performance , mas a primeira coisa que fiz foi agradecer. Mandei-lhe uma mensagem, agradecer o gesto. Tento ser eu próprio e praticar o bem, fazer o bem. Também são lições que levamos para a vida.

 Nesses últimos anos de clube, tens essa sequência que falavas relativa a lesões. Alguma vez precisaste de ajuda psicológica?
Sim, ali por volta dos cinco meses de lesão. Estávamos aqui em Portugal. Fazia uma parte da recuperação e começo a chorar porque, lá está, a tal frase clichê do vais voltar mais forte. Não sentia que estava mais forte, sentia que estava a regredir. As pessoas que estão à tua volta são amigos e são suspeitos. Querem sempre o teu bem. Por exemplo, esse jogo, o tal jogo que eu te falei que foi o meu pior jogo. “Estás a chorar porquê? Estás a enervar-te porquê?” Não é dar parte fraca, mas decidi que não estava bem. E se calhar precisava de falar com alguém neutro. Encontrei, já não me lembro através de quem, a Nádia Tavares. É uma história parecida à minha, mas no basquete feminino. Li o livro dela. E eu identificava-me tal e qual a história do livro dela. Fui ao Instagram, vi-a e disse-te vou contactar. Fomos traçando vários objetivos, micro-objetivos, diários, de horas. E foi assim, passo a passo. Por isso é que agora não faço tantos planos a médio e longo prazo. Começou a temporada. Quero fazer X jogos. Não. Segunda, terça, quarta, quinta, sexta, sábado. Um jogo, ok. Top. Agora como é que vamos recuperar? Nova semana, novos desafios. Cuidados a ter para não voltar a lesionar. Para dar continuidade. Depois, lá está, chegas ao alto nível, um mínimo descuido, lesionaste-te porque, sei lá, comeste batatas fritas e um hambúrguer e estás cheio de gordura no corpo e rasgaste-te no dia a seguir porque não dormiste bem.

Mas às vezes não dá raiva que tu vejas colegas teus que não têm os mesmos cuidados.
Se calhar meto-me um stress de ter de fazer as coisas bem e essas pessoas que eu não critico mas estão tão libertas de estado de espírito e de cabeça que podem comer o que quiserem, podem fazer noitadas, podem não treinar a semana toda que a seguir vão jogar ou até vão fazer um bom jogo ou vão marcar. Agora, se é a longo prazo, se vão continuar com esse estilo de vida e vão durar a longo prazo, não acredito muito. Porque mais tarde ou mais cedo, o teu corpo vai pagar.

Isso alguma vez interferiu com a tua vida pessoal, por exemplo, com a tua relação com a Joana até com a tua relação com a tua filha?
Na relação, não. Mas eu sei que era uma pessoa difícil durante estes dois anos. Um período difícil. Por exemplo, nós lá em França antes de ir para a cama tínhamos um ritual, por exemplo, com a Leonor fazíamos um ritual que era, tínhamos um corredor e no final do corredor tínhamos os quartos o dela e o nosso. E eu dizia, o último a chegar é um ovo podre. Brincadeira de crianças. E eu transformava-me em criança também. E uma das maiores tristezas que tive foi durante dois ou três meses não poder fazer isso.