A BOLA FORA Da formação do Sporting ao balneário do Real Madrid: «És ‘tuga’ e não falas?»

Neste novo episódio de A Bola Fora, o convidado é Pedro Mendes, 33 anos, defesa central que após muito tempo no estrangeiro regressou a Portugal, pelo Estrela da Amadora, e continua sem clube. Ao seu lado, a companheira Joana, também ela interveniente nesta entrevista.

Começamos sempre da mesma forma. Antes de chegar, o que estavas a fazer?
Estava ali no terraço a apanhar um bocadinho de sol e à espera que vocês chegassem. Já tinha feito o meu lanchezinho, proteico, sempre importante. Nada mais, fazer uns telefonemas também, tentar resolver o meu futuro profissional.

 És muito rigoroso na comida, falaste desse lanche...
Não só na comida, mas em tudo na minha vida. E às vezes tenho dificuldade em desligar mesmo na vida normal, ou seja, fora do futebol. Ou seja, parece que é intrínseco este profissionalismo que tenho. Inclusive tenho amigos e familiares que me dizem pá, “desliga um bocadinho, bebe lá aqui um copinho de sangria e tal”, mas nem sempre me deixo levar. Outras vezes deixo, é verdade. Mas não é fácil, não é fácil. Só nas férias. Sou muito rigoroso, porque sempre me regi por esses fatores de exigência e foi isso que me levou a ter algum sucesso na minha carreira. E agora não sei viver sem isso.

 Já falei exatamente sobre isso com alguns colegas teus. Acredito que mesmo depois de acabarem a carreira seja difícil voltarem a ser uma “pessoa normal”. Refiro-me aos hábitos, até à parte da alimentação, do descanso. Sentes que vais ter essa dificuldade?
Claramente. Sei que vou ter. Estou consciente disso, mas também não vai ser um problema para mim, porque quando passa a ser um modo de vida, encaras isso naturalmente. Então não é uma obrigação. Nem tenho a obrigação porque terminei a carreira, acredito que vou descuidar um bocadinho mais. Mas gosto de me ver ao espelho e dizer que estou em forma. E se me descuidar há de ser uma vez ou outra durante a semana. E no dia a seguir vou acabar por compensar.

 Podemos começar pelo teu início de carreira. E pelo teu início até de vida. Tu nasceste na Suíça. Vais ainda bebé para Espanha, chegas a Portugal com sete anos. É isto mesmo, não é? Fiz o meu trabalho de casa.
Seis anos. Mas comecei a jogar aos sete.

 É cá em Portugal que tu inicias a tua experiência no futebol. Qual era o teu contexto familiar?
O meu pai é angolano, a minha mãe portuguesa. Como todas as famílias, sempre buscam o melhor, seja financeiramente, para os filhos e para a sua qualidade de vida. Acredito que tenham emigrado para encontrar essas melhorias financeiras. Acho que o conseguiram fazer, porque ficaram lá ainda alguns anos. Depois acabo por nascer. O meu pai também recebe um projeto, ou tenta dar um outro salto, tentando então ir para a Espanha para dar outro salto no nível financeiro. Aí acho que as coisas não correram tão bem. Eu não tenho muita noção, mas a verdade é que ao fim de seis anos em Espanha, e por não estar a correr como tinham pretendido, acabamos por regressar a Portugal e tivemos a ajuda dos meus avós maternos, que nos acolheram durante algum tempo, até voltarem a conseguir arranjar trabalho.

 Completas a formação no Sporting e depois és emprestado, já numa fase de sénior, ao Real Massamá, depois ao Servette, na Suíça, e surge a oportunidade de representar o Real Madrid B. Como é que surgiu essa fase na tua carreira?
Aquilo que estávamos a falar na introdução me levou a isso. Sei que tive uma grande oportunidade, através de um dos melhores agentes do mundo, de me levar, não, de mencionar o meu nome ao Mourinho, na altura era treinador, e de certeza que viram os meus jogos e optaram por me acolher. A empresa do Jorge Mendes tem outros tantos jogadores, outros tantos defesas centrais. Porquê eu e não outro? Acredito que tenha sido por esse profissionalismo, por essa exigência, esse rigor que tinha no meu quotidiano, e que sabiam que eu não os iria deixar ficar mal vistos, por isso daí suponho que o meu nome tenha vindo ao de cima, e agarrei essa oportunidade. Era um sonho de criança, e graças a Deus, olhando para trás, acho que concretizei todos os meus sonhos de criança.

 Imagino que tivesses vivido um sonho, porque estavas a ser treinado e a colaborar também com o José Mourinho, um balneário cheio de portugueses, Cristiano Ronaldo, Pepe, Ricardo Carvalho, acho que ainda estava o Fábio para entrar também. Perguntava-te isso, como é que foi essa experiência, eles terem-te ali, porque li numa entrevista que eles nem sequer sabiam que tu eras português.
É uma história gira nesse sentido. Entro ali, venho de um contexto de Servette, ou seja, a 2ª Liga Suíça, que é um excelente clube numa excelente cidade, tenho boas recordações de lá, mas passo de um contexto de 2ª Divisão Suíça para uma 1ª Divisão, e no melhor clube do mundo, a meu entender, cheio de estrelas. Entras ali num bocado tímido, na verdade, mas ia atrás dos meus colegas, dos outros colegas da equipa B, e seguia o tradicional cumprimento em espanhol, eu ouvia eles a dizer, olá, como estás? Eu também já sabia falar espanhol, sem sotaque nenhum. Olá, como estás? Que tal? Tudo bem? Cheguei ao pé do Cristiano, então, mano, como é que estás? Pronto, toda a gente sabe que é assim que funciona, mas não tinha essa vontade, porque, apesar de os conhecer na televisão, e aquilo que eles representam, não os conhecia pessoalmente, então não tinha esse à vontade, essa abertura para os cumprimentar dessa forma. Então, segui o mesmo trajeto que seguia com todos. Se estou em Espanha, tenho de falar a língua onde estou. Foi assim na minha carreira, em Itália, sempre me adaptei à cultura onde estava a jogar. E assim foi, cumprimentei toda a gente, eles inclusive, e não disse mais nada, sentei-me no meu canto. E aí sim, vejo o Fábio assim, de esguelha, a comentar com o Pepe, “acho que aquele miúdo ali é português, vamos lá apertar com ele”, não sei o quê. “´És tuga e não falas? Está a cumprimentar em espanhol, porquê?” Eu disse que não tinha muita confiança, não vos conheço, não tinha essa confiança para vos cumprimentar dessa forma. Pronto, e depois lá me deixaram à vontade, e foi assim.

 No pouco tempo que trabalhaste com o Mourinho, o que é que recordas dele?
Muito exigente e rigoroso, é uma pessoa que dá tudo em troca de tudo. Se tu lhe dás compromisso, ele é capaz de estar ao teu lado. Lembro-me também de ver um ou outro jogador que não estava bem psicologicamente, e ele dar-lhe dois ou três dias de folga para resolver os seus problemas, ou seja, para além daquilo que ele representa como o futebol, não é só aquele treinador que a gente vê na televisão, também tem aquele lado humano que tenta preocupar-se com o bem-estar do jogador. E foi isso que, na primeira reunião que tive com ele, deixou-me super à vontade. Ou seja, é o teu chefe, tu já te sentes um pouco intimidade, mas com ele... “Miúdo, entra, senta aí”. Os pés em cima da mesa, assim cruzados. “Senta aí, vamos conversar um bocadinho. Fica à vontade.” Ou seja, deixou-me super à vontade, e pronto, é isso que eu também, e os aprendizados que eu levei.

SPORTING E PARMA

No ano seguinte, regressas ao Sporting. Era aquilo que querias ou pretendias ter ficado no estrangeiro? Pergunto porque no ano seguinte assinas pelo Parma e acabas por ficar 11 épocas seguidas fora de Portugal.
É assim, quando estás no expoente máximo, o Real Madrid é o topo da montanha, queres lá ficar por muitos mais anos, mas eu estava lá por empréstimo, havia uma cláusula de transferência caso quisessem acionar. Sei que o treinador gostava de mim, o Alberto Torilo. Por duas vezes conversamos a sós e ele disse que me queria para o projeto da segunda liga, porque nesse ano tínhamos subido da segunda B na altura para a segunda divisão, e queria que eu fizesse parte do projeto. Mas que havia esta cláusula e que se queria removê-la ou estender o empréstimo, mas no final não se chegou a acordo. Voltar para o Sporting também foi positivo no sentido em que foi nesse ano que criaram equipas B e acabou por dar mais visibilidade aos jogadores que saiam dos juniores ou aos emprestados, como no meu caso, e acabávamos por jogar logo numa segunda divisão. O que no meu primeiro ano de sénior não existia, ou seja, passas de júnior logo para sénior, para equipar. Ou és um fora de série, ou tens um talento fora do normal, ou então vais ter de ir rodar, foi o meu caso. Foi uma passagem e faz parte do meu percurso.

A tua estadia no Parma coincide com um período complicado de clube, que entra em falência. Como é que foi?  
O primeiro ano, inclusive, fizemos uma boa temporada a nível global. Fiquei com aquele sabor agridoce porque tinha 8 jogos até dezembro, queria fazer mais. Também a nível contratual, se atingisse o número de jogos, passava para outro patamar. Sentia que queria outras oportunidades e queria dar continuidade a esse desenvolvimento. apareceu o Sassuolo, que também estava na Série A, mas vinha de um momento desportivo complicado. Tinha 17 jogos sem pontuar, sem ganhar. Sabia para o contexto que ia, mas também no final dessa experiência percebi-me que queriam mudar-me de posição para defesa de direito. Decidi regressar à base ao Parma. Eles nesse ano qualificaram-se para a Liga Europa, mas já aí se sentia que as coisas não iam correr bem porque não se inscreveram na Europa por falta de alguns pagamentos a fornecedores ou algumas licenças que não pagaram. Desportivamente estava a correr bem, mas a nível da secretaria já se sentia. Ainda assim decidi ficar porque me sentia bem na cidade, sentia-me bem com o treinador, já me conhecia, sentia-me bem com os meus colegas de equipa. E esta mudança para o Sassuolo, como foi no mês de janeiro, sentia-me um pouco peixe fora d'água. Quando voltei a Parma, senti-me de volta em casa. A partir de outubro, novembro, o presidente Benogliani a dizer que tinha interesse em vender o clube e que não tinha mais capacidade financeira para nos pagar os salários. E aí foi uma explosão, houve muita confusão, principalmente com o António Cassano. Não posso dar mais detalhes, mas é uma pessoa muito explosiva e efusiva. Aliás, vemos os comentários que ele tem por aí. Mas não foi fácil, também graças ao meu rigor, à minha exigência, aos meus pés bem metidos na terra, os salários todos que eu tinha ganho ao longo da minha carreira, poucos anos de carreira que tinha, fui amealhando, fui sempre amealhando e aquilo deu-me uma boa almofada para conseguirmos sobreviver, ou mantermos, sobreviver é uma palavra muito forte, mas mantermos financeiramente. Pagar aluguer de casa, água, luz, gás, internet, as coisas básicas, compras, carro, ou seja, o que eu tinha ganho chegava para esse momento de escassez. Depois foi arriscado, jogar gratuitamente, digamos assim, pondo em risco um futuro, uma carreira, porque não estás a receber salário, não sabes qual é o futuro do clube. Vamos supor que te lesionas gravemente e que para o ano não há continuidade do clube, és um jogador livre e lesionado. Então para onde é que vais? Quem é que te vai continuar a remunerar? Ninguém. Foi um risco que muitos jogadores correram, houve outros que não e decidiram a rescisão do contrato e essas rescisões abriram portas para outros como eu, que deram continuidade à titularidade. Eram os que ficaram, acabaram por dar alguma continuidade e ainda assim perdíamos pontos na secretaria, mas conseguíamos ganhar pontos ao Inter. Podem ir ver o histórico, ao Milan, ao Inter, Juventus em casa ganhámos, a Roma empatámos fora, Nápoles em casa empatámos. Apesar de sermos uma equipa que toda a gente via como abatida e terminada, a verdade é que no campo isso não transparecia e criámos um laço entre nós ainda mais forte e ainda maior. Portanto, são sempre histórias que são boas, fazem-nos evoluir e amadurecer.

 Dali vais para França, assinas como jogador livre pelo Rennes, onde és quase sempre titular.

No Rennes foi um pouco mais intermitente. Chego realmente para ser titular, depois houve ali alguns problemas, umas lesões normais que te deixam um, dois jogos fora e depois tens de voltar a lutar para agarrar a titularidade e depois jogas mais três ou quatro e depois uma suspensão e estás fora outra vez. Quando a competitividade interna é boa e tens muitas soluções, ao mínimo descuido perdes a titularidade e há outro que agarra. Foram dois anos assim intermitentes, mas eu fiquei essencialmente estupefacto com as condições que encontrei em Rennes. Não tinha conhecimento algum do que era e do que ia apanhar. Não desgostei da cidade, ao contrário da minha esposa, porque é uma cidade que é muito chuvosa. Ou seja, faz as quatro estações do ano num dia. De manhã está sol, à tarde já está com nuvens e ao fim do dia já está a chover torrencialmente. É muito inconstante. Mas também faz parte do processo e foi isso que me levou aí sim ao Montpellier, em que tive mais consistência.

Aí fixaram-se sete anos e deu para uma adaptação muito boa e acredito que gostassem de lá viver se não teriam sido embora mais cedo. Como é que foi essa fase também? Refiro mesmo a nível social, portanto da vida no sul de França. Foi mais apelativa.
JOANA: Foi muito boa. Quando cheguei, detestei. Já vinha com uma depressão pós-parto em cima de mim. Tudo o que via parecia que era horrível. Não gostava da cidade, não gostava das pessoas, não gostava dos franceses. Para mim estava a ver aquilo tudo muito negro. Mas depois a vida compõe-se. Graças a Deus fiquei bem. E costumo dizer ao Pedro que foram dos sete anos melhores da minha vida porque adorei a vida no sul de França. Sentia-me francesa. A minha filha foi com 15 dias para lá, portanto a nossa filha já se sentia francesa. E foi duro ter de voltar, mas a vida é assim. Mas foram anos muito bons. Fizemos amizades muito boas. Foram anos muito bem passados.