«Detesto lidar com alguém individualista, egoísta, intriguista, egocêntrico»

Sérgio Vieira tem passado nas equipas técnicas de Sporting e SC Braga, mas foi no Brasil que começou a a sua caminhada como treinador principal. Nas últimas épocas, orientou várias equipas portuguesas, com Moreirense, Famalicão, Farense, Estrela da Amadora e Portimonense no currículo.

- As suas escolhas agora baseiam-se também mais na união familiar, na possibilidade de os levar consigo?
- Para um treinador é extremamente duro, e os treinadores sabem disso, e eu acho que, além dos treinadores, os dirigentes, os jogadores e os próprios adeptos, todos os agentes que envolvem o futebol deveriam ter noção disso, para respeitar muito aquilo que é a posição do líder técnico, que muitas vezes é determinante para o sucesso de uma equipa, porque realmente é um ser humano, e o ser humano tem esposa ou namorada, tem filhos, tem irmãos, tem pais, mas, muitas vezes, a parte mais próxima, dos filhos e da esposa é muito dura, porque é uma realidade que não se pode fugir a ela. Nós muitas vezes evitamos falar dessa forma, porque é algo duro, porque nunca sabemos quando a nossa vida termina, e se nós estamos numa determinada faixa de tempo, num determinado período de tempo longe das pessoas que amamos, daquelas pessoas que nos preenchem sentimentalmente, emocionalmente, por quem temos um sentimento muito forte, e muitas vezes acima de tudo, e aquele tempo que estamos longe é algo que nos marca. E nós, eu e os meus colegas, temos de refletir muitas vezes. Pessoalmente, é algo muito marcante, porque foi sendo algo que me condicionou, e neste momento é algo que me condiciona, é uma coisa estar a 2, 3, 4 horas de um voo direto ou estar...

 - Aceitaria um projeto na Ásia, por exemplo, neste momento?
-Neste momento é muito difícil, não posso dizer não, porque o não, o impossível, isso nunca podemos afirmar, mas seria muito difícil, porque, como eu estava a dizer, é diferente 10, 12, 15 horas de voos, milhares e milhares de quilómetros, de estar a 2 horas, 3 horas, numa capital europeia, por exemplo. É completamente diferente, e aquilo que eu busco neste momento é isso, é realmente aquele passo que dei em 2014, de poder criar algo novo, inovar, ir para um país diferente, na América Latina, um país irmão, o país do futebol, o Brasil, aquilo que eu procuro neste momento é isso. Ou em Portugal, ou na Europa, criar algo diferente, algo histórico, algo marcante, algo que realmente me preencha, mas também familiarmente seja compatível para que a gente possa ser feliz. A perfeição nunca vai existir e nós nunca sabemos se aquilo que é o mais certo é estarmos juntos, até por motivos escolares da minha filha. Estamos sempre em permanente reflexão, e depois só o tempo, o destino, as circunstâncias é que vão ditar se o próximo passo vai ser junto ou não. O que eu espero é que a gente continue a ser feliz.

 - O que é que aprecia mais num jogador? Eu perguntava-lhe, em contrapartida, o que é que o tira do sério?
- Aquilo que me preenche muito, aquilo que me satisfaz, quando eu conheço ou lido com um jogador, é aquela sinergia, aquele encaixe entre o lado técnico, o ser um bom jogador, um excelente jogador, e um grande homem. Isso é que me realiza, eu sentir que estou a lidar com um grande homem, uma pessoa com valores, uma pessoa determinada, competitiva, resiliente, educada, ponderada, e também os atributos técnicos, físicos, estéticos, e muitas vezes isso acontece. Houve diferentes experiências que eu tive em que uma coisa e outra encaixaram, é difícil porque nós somos seres humanos, nós, treinadores, jogadores, profissionais das diferentes áreas, nós somos seres humanos, muitas vezes não somos perfeitos, erramos, mas quando eu lido com um bom ser humano, que é inteligente, educado, mesmo que erre, ele vai que entender que erra e vai ser humilde para aceitar isso, e para evoluir. Para mim aquilo que mais me preenche é isso, é lidar, e ao contrário, aquilo que eu mais detesto e tento evitar, é precisamente a parte humana, é lidar com alguém que em termos de valores tem um conjunto de valores que eu antecipadamente, ou pelo contacto diário mais próximo sinta, que são valores individualistas, egoístas, intriguistas, egocêntricos.

 - Já sentiu isso antes com um balneário?
- Sim, sim. Infelizmente é algo que sentimos, porque um balneário é composto por inúmeros jogadores, estamos a falar de 25, 28, 30 jogadores, e como eu disse, não há seres humanos perfeitos, eu já senti isso nas estruturas, já senti isso na infância. Lembro-me do quanto individualismo existia, de quanta intriga existia, porque nós enquanto crianças muitas vezes somos isso, somos individualistas, somos egoístas, e muitas vezes nem temos noção disso. Agora, quando chegam a uma idade adulta e sentir que essa característica ainda está presente num ser humano, num jogador ou estrutura… Muitas vezes, o pior é sentir que às vezes estamos a sentir essa característica em pessoas com muita responsabilidade, no dirigismo, por exemplo, nas administrações, nas estruturas que rodeiam os jogadores. O que é muito difícil. Procuro precaver isso.

 - Alguma vez sentiu que perdeu o balneário? E perguntava-lhe especificamente se aquela história de um jogador pode fazer a folha a um treinador, isto é verdade, é real?
- As experiências que tive jamais foram assim, porque eu acredito que a maldade, o egoísmo, o individualismo, todas essas características podem ser combatidas. Nelson Mandela, um dos maiores líderes da história da humanidade, falava sobre isso. Se as pessoas podem ser educadas, estimuladas a fazer o mal, também podem ser educadas e estimuladas a fazer o bem. E digo-o publicamente, porque todos os jogadores e estruturas que trabalharam comigo, enquanto líder, sabem que eu não abandono um jogador, por mais egoísta, individualista ou maldoso que ele seja, ele sabe que vai ter de ser confrontado com isso, e ser questionado se isso vai levar a alguma coisa positiva na vida dele. Porque se ele é assim na profissão, quer dizer que ele pode ser assim com a esposa, com a namorada, com os filhos, com os pais, com os amigos. E eu acredito na transformação, acredito na mudança. Por isso é que quando me perguntam sobre perda de um grupo, jamais isso aconteceu. Um jogo, uma derrota, duas derrotas, um ciclo de dois ou três jogos, porque acho que nunca aconteceu comigo, enquanto treinador principal, mais do que isso. Esteve sempre relacionado com questões clínicas, ausências de opções, quase sempre isso. Nunca tem a ver com a questão de perder o grupo, com a questão da motivação, com a questão do grupo estar emocionalmente envolvido na tarefa de ganhar um jogo. E isso é algo que eu nunca vou permitir que aconteça, porque aquilo que eu sou enquanto homem e líder não vai permitir que a parte do jogador seja perdida. Porque eu vou incidir sobre aquilo que eles são na parte humana. E felizmente tenho muitos, muitos exemplos que ficam em privado, pelo menos da minha parte, que provam isso. Provam como nós conseguimos transformar aquele jogador, de onde ele veio. É fácil, basta fazer uma reflexão profunda dos jogadores que eu fui trabalhando, de onde eles vinham, e depois, o que eles conseguiram depois colher de positivo na carreira.