As superstições de Sérgio Vieira e os jogos que repetia

Sérgio Vieira tem passado nas equipas técnicas de Sporting e SC Braga, mas foi no Brasil que começou a a sua caminhada como treinador principal. Nas últimas épocas, orientou várias equipas portuguesas, com Moreirense, Famalicão, Farense, Estrela da Amadora e Portimonense no currículo.

-Tem alguma superstição, ou algumas superstições, porque disseram-me que nos estágios, os jogadores nunca se sentam no mesmo lugar?...
- É uma superstição. Isso é um detalhe muito interessante. Felizmente, a minha formação académica tem várias áreas ligadas à psicologia, à filosofia, à neurologia, inteligência emocional, e são áreas que tento desenvolver constantemente, atualizar constantemente, porque o mundo está em constante mudança. O ser humano de 2024 é diferente do de 2022, 2020, 2015. As gerações vão mudando por ciclos, os jovens vão mudando, os próprios idosos vão mudando. Um idoso de 2024 é um idoso diferente de 2000 ou 2010. O idoso de 2000 não sabia mexer num tablet. O meu pai, hoje em dia, com 70 e poucos anos, sabe mexer num telemóvel. Então as pessoas vão mudando e se um líder de pessoas não se atualiza, vai colher algo negativo. Quando vamos para um meio altamente competitivo, é um pouco quando vamos para a guerra, a vida está em causa, eu nunca vivi, felizmente, isso, mas é aquilo que se vê, não existe caras, não existe cor de pele, idades, estatuto social, mais dinheiro ou menos dinheiro, existe quem vai lutar por nós. Tanto pode ser o meu colega do lado, como pode ser o outro, aquele com que eu pouco falo, pode ser esse que nos salva a vida. É a lógica desse tipo de dinâmica nas refeições: há uma rotatividade constante.

 - E a divisão dos quartos, por exemplo? Também muda?
- Também muda, é algo que respeito, eu sei o que é que se faz nos clubes grandes, já passei por essa experiência, no Atlético Paranaense, no Braga, no Sporting, respeito os treinadores. Sou e fui sempre muito respeitador em relação àquilo que os treinadores de outra geração, como o professor Jesualdo Ferreira, Carlos Queiroz, Nelo Vingada, Rinus Michels criaram. É algo a que temos de ser gratos por aquilo que eles criaram, só que eu questiono se tem sentido ou não, se tem lógica. E existem muitas coisas que eu levo e sou grato a essas pessoas, porque sem elas era impossível nós sermos competentes hoje em dia. Existem outras que eu questiono, e uma delas é essa, é que muitas vezes os próprios jogadores estão na sua zona de conforto e não pode ser. Como é que sabemos se os melhores amigos são realmente estes dois que estão próximos de mim? Se eu nunca me dei a conhecer ao outro? Hoje em dia esse tal individualismo que falava no próprio balneário é maior do que há uns anos, porque há um telefone, não faço ideia se os jogadores o podem usar no balneário ou não. Há as redes sociais onde o jogador cada vez mais passa mais tempo, como qualquer um de nós também. Eu sei que muitas vezes os jogadores de clube grande, não só em Portugal, estagiam às vezes até sozinhos, quartos individuais. O Covid veio trazer isso. E há clubes onde nem sequer há balneário. Há um centro de estágio e cada um acaba o treino, vai para o seu quarto. Eu acho que nós, a sociedade mundial, a civilização mundial, caminha para isso, para o individualismo, para o egoísmo. As tecnologias vieram trazer isso. As redes sociais mal interpretadas, a utilização mal interpretada da tecnologia veio trazer isso. A cultura da imagem, a cultura do eu, a cultura do momento, a cultura do prazer momentâneo veio trazer isso. E no futebol, se nós não refletirmos permanentemente sobre as dinâmicas que estão enraizadas, se simplesmente fizermos um copy-paste daquilo que vem do passado, vamos cometer erros e vamos perder a oportunidade de fortalecer um verdadeiro grupo. A sociologia explica isso, na parte familiar está-se a perder o hábito das famílias fazerem as refeições juntas, há a televisão, há as tecnologias.

 - E no clube potenciava isso, por exemplo, com os jantares, com as atividades de grupo?
- Sempre que foi possível, porque muitas vezes a parte financeira também condicionava. Felizmente, fomos sempre tendo os mínimos, por isso é que também tivemos bons grupos, porque as administrações deram-me sempre essa possibilidade mínima de criar as dinâmicas e foi algo que às vezes até nem estava diretamente relacionado com a parte financeira. Às vezes é mais com a criatividade, com a capacidade de inovar do próprio líder, do próprio homem que antes de ser treinador tem de pensar nessa parte, porque não adianta nada só ter treinos espetaculares, organizados, bonitos, motivadores, se depois se desliga e cada um fica no seu mundo. A convivência humana é determinante para que depois o espírito de sacrifício realmente prevaleça dentro de campo, dentro das quatro linhas.

 - Quais são as suas referências enquanto treinador?
- Existem treinadores atuais e do passado que realmente foram marcantes, porque enquanto treinador a parte tática, do método, e há pessoas com que trabalhei que foram muito marcantes. O caso do Domingos Paciência, o caso do professor Manuel Machado, do Mariano Barreto, do professor Jesualdo, para mim foi muito marcante porque é uma pessoa com conhecimento científico fora do normal. Eu arrisco-me aqui dizer que talvez tenha sido a pessoa que mais marcou a cultura dos treinadores em Portugal. Penso que desde a década de 70 esteve ligado à universidade, às federações. Nunca procurou esse mediatismo, por isso não se fala tanto dele, mas quem o conhece sabe. Isto em conjunto com Carlos Queiroz, Vítor Fade, o professor Jorge Castelo, também na teorização daquilo que é o fenómeno do futebol. São pessoas que foram grandes exemplos. Depois de todos os outros, o Mourinho, por exemplo. Para mim foi uma pessoa que marcou muito na decisão, logo quando ele entra na União de Leiria. Eu era um jovem a entrar na idade adulta que decidiu ir buscar o conhecimento científico à universidade. Ainda jogava no nível amador e naquele momento foi realmente uma decisão muito importante e o Mourinho contribuiu muito para isso. Mas existem mais referências. O Pep Guardiola é um dos maiores exemplos como treinador, o Simeone, o Klopp, todos eles se calhar com características diferentes em termos de modelo de jogo, de ideias, de formas de jogar, chamem o que entenderem, mas existem. O Rinus Michel, o Cruyff. Todos os treinadores com que trabalhei me marcaram, por determinadas características enquanto homens ou líderes. Caso do Ricardo Sá Pinto, um treinador algo fora do normal pela entrega ao trabalho, pela sua competência também. Depois, enquanto líder, é difícil. Vemos grandes exemplos do Guardiola publicamente. É uma pessoa que nos marca pela forma como conduz os seus grupos, mas nós nunca sabemos verdadeiramente no dia-a-dia aquilo que são os valores das pessoas, por isso a parte humana do líder e do homem é algo que eu levo mais daquilo que é a minha família, o meu avô, os meus pais, as pessoas que me marcaram.

 - E já lhe aconteceu estar a treinar, ou até num jogo, olhar para um jogador e dizer este tem muitas qualidades de treinador? Já lhe aconteceu isso? Se sim, perguntava-lhe quem?
- Há um jogador que ainda joga, acho que não tem mal, que poderia ter feito uma carreira maior. Está constantemente a falar, destacou-se muito, o João Reis, que esteve ali dois anos connosco na Estrela da Amadora. Dentro de campo, o Miguel Lopes também é um jogador que é um exemplo na forma como lidera. O Bruno Brígido também, o António Filipe. Todos os capitães que tivemos, aliás, o grupo de capitães que constituímos tem de ter sempre essas características que se complementem. E depois há alguns que têm um conjunto de características mais abrangentes. E neste caso, o João Reis foi um jogador que me marcou, porque dentro do campo, fora do campo quis ser sempre um exemplo para ele e para os outros. Em relação a isto lembro-me do Famalicão, do Ricardo Silva, o xerife. Jogou no Vitória de Guimarães, no Paços  de Ferreira. Foi um jogador também que foi um exemplo. Entre outros que levo, peço desculpa a todos eles porque eu levo-os dentro do meu coração e dentro da minha mente e eles sabem isso. Mas são jogadores que realmente manifestam isso diariamente. Nós vemos isso em cada comportamento. E que acredito que também o tempo, a vida, veio trazer-lhes isso. O próprio Daniel Fernandes, que foi guarda-redes da seleção portuguesa, que esteve no Mundial da África do Sul, que esteve no PAOK, que esteve na Alemanha. Foi um jogador com o estatuto que tinha e mesmo sem jogar que era um exemplo. São exemplos enquanto homens. Mas é aquilo que eu também tento incutir até nos mais jovens. Nós tivemos o exemplo, infelizmente, do Diogo Fonseca que acabou por fraturar tíbia e perónio na última temporada no jogo com o Rio Ave. Apesar de ser um jovem de 20 e poucos anos, de estar a chegar ao clube, a característica dele é de líder. Tanto dentro como fora, tenta ser um exemplo. Então isso às vezes é uma questão até de sorte. Porque nós, enquanto crianças, enquanto jovens, muitas vezes podemos ter a sorte de crescer num ambiente familiar e numa sociedade que nos estimule a ser líderes, a ser confiantes, a interagir sobre os outros de forma positiva. E há alguns que só vão descobrindo se calhar com o tempo. Neste caso, agora recentemente, o Diogo Fonseca é um jovem dos quadros do SC Braga. Foi-nos emprestado em janeiro, um jogador com uma qualidade enorme. Mas no que diz respeito a essa característica, eu senti isso. Eu senti que era um jogador que tinha muito isso. Talvez um dia possam vir a ser treinadores. Como o caso do Ricardo Silva, que penso que ainda está como adjunto no Famalicão.

 -Terminamos sempre da mesma forma. Se tivesse a oportunidade de voltar a jogar um jogo, qual é que seria?
-Tenho alguns jogos marcantes. O primeiro jogo no Brasil, na Série A, foi marcante pela dimensão do estádio. O Morumbi é um estádio impactante. Depois, o jogo do Caldeirão, a subida do play-off, a eliminatória, foi algo muito, muito marcante porque, infelizmente, para o Marítimo, que é um grande clube, um clube representativo de uma região, com uma massa adepta fantástica e com uma história fantástica, nós conseguimos fazer essa história. Muitas décadas depois, o Marítimo foi rebaixado para a Liga 2. O Estrela subiu quando não era o favorito, de forma alguma. Sendo o último jogo no Estádio dos Barreiros, sendo um dos últimos jogos até da época desportiva, esse foi um jogo muito impactante enquanto líder. Acho que, tanto um como o outro, foram jogos que ficam marcados para sempre.