«Enganei-me e fui parar quase ao centro de uma favela, senti pânico até»
Sérgio Vieira tem passado nas equipas técnicas de Sporting e SC Braga, mas foi no Brasil que começou a a sua caminhada como treinador principal. Nas últimas épocas, orientou várias equipas portuguesas, com Moreirense, Famalicão, Farense, Estrela da Amadora e Portimonense no currículo.
- Acredito que pouca gente saiba que foi um dos primeiros treinadores portugueses a ir para o futebol brasileiro, bem antes desta vaga. Quais foram as principais dificuldades que encontrou? Quais as principais diferenças para o futebol português?
- Quando fui para o Brasil tinha esse pensamento, essa ambição de ser o primeiro treinador português a trabalhar no Brasileirão, no futebol brasileiro e isso foi conseguido. Lembro-me de me ter estreado no Morumbi, o estádio do São Paulo. Algo que levo também para a vida toda, porque realmente a dimensão do futebol brasileiro é completamente diferente da nossa, a todos os níveis. Foi muito enriquecedor, trabalhar no Brasil foi algo marcante e que foi muito importante para todas as etapas que se seguiram na minha carreira. E essa decisão teve a ver precisamente com aquilo que sou como homem e líder. Está diretamente ligado ao treinador, à característica do treinador, que é a capacidade criativa, de inovar, de fazer coisas diferentes daquelas que estão a ser feitas até ao momento na profissão.
- Sentiu essa abertura do outro lado?
- Senti. Ser contratado pelo Atlético Paranaense, da Série A do Brasil, foi algo que surgiu com todo o mérito, num processo de visita ao clube e entrevista. Na altura trabalhava com o professor Jesualdo Ferreira, estávamos de malas feitas para ir para o Egito, numa etapa também que seria muito interessante. E foi difícil porque tenho uma amizade muito profunda com o professor, respeito muito toda a história que ele tem, mantemos a amizade até hoje, mas para mim essa etapa de seguir sozinho e ir à descoberta de um país que até então, para os portugueses, não era um país...
- É apetecível, não é?
- É apetecível e não era um país normal, não tínhamos noção da dimensão nem da complexidade que era o futebol brasileiro.
- Nem a figura do treinador português também era tão respeitada como é hoje…
- Exatamente. Conquistei com muito mérito, de forma muito meticulosa, muito detalhada, a minha posição. Fui promovido três vezes dentro da estrutura do Atlético Paranaense, sem ter essa valorização mediática do meio que é o Brasil. Naturalmente, o Jorge Jesus, o Abel... Nesse mesmo ano, penso que também o Paulo Bento, no Cruzeiro. Entraram com outro estatuto, com outra dimensão, com outro currículo, com todo o mérito também, claro, que o conseguiram. Mas quando olho para mim, sei aquilo que tive de trabalhar, de provar, de convencer para que me fosse atribuído o cargo, para que me fosse reconhecida a competência. Isso também é aquilo que busco. Porque muitas vezes esse mediatismo, os títulos, são fruto não só da nossa competência, da estrutura que estamos, da dimensão financeira do clube, de outras estruturas à volta. Sei o que vivi, conquistei, sei que foi com muito mérito meu e também das pessoas à volta, mas em função do momento, da valorização que existia no meio do futebol brasileiro, foi diferente daquilo que veio a acontecer depois com os treinadores portugueses que foram para o Brasil.
- Como é o jogador brasileiro em termos de mentalidade? É diferente do português?
-É diferente, é diferente. Tem coisas fantásticas, tem alegria. Muito criativo, tem o sonho, como muitas crianças na Europa ou noutras partes do planeta, de ser jogador, mas vê isso como um objetivo muito sério de vida, porque sonha, necessita, é um meio para ser feliz. Muitas vezes, se não é o futebol, poderá ir por caminhos extremamente duros.
-Teve contacto com alguma realidade dessas?
Tive, tive. Foi algo que tive e continuei a ter. Tive várias e mesmo cá em Portugal, com jogadores que acabam por não ser só os brasileiros. Nós temos jogadores que vêm de África, em que as realidades sociais são muito idênticas ou às vezes piores, mas no Brasil foi realmente o primeiro impacto que levou mesmo a uma transformação humana muito grande, porque, por exemplo, saber que um jogador meu com 15 anos não estava bem porque a mãe, no Rio de Janeiro, estava a dormir na rua há 4 ou 5 dias, na favela, foi duro. E o miúdo ter de trabalhar, ter de treinar, lá no CT, na Academia do Atl. Paranaense, foi muito impactante.
-E o treinador deixa de ser só treinador?
- É algo que menciono sempre, nunca fui, nunca serei só treinador. Serei líder e serei homem, porque isso vem muito antes do treinador de futebol. Quem só se foca em ser treinador acho que é uma visão muito precária, é muito pouco significante. Acho que nós lidamos com seres humanos e essa experiência que eu tive no Brasil foi marcante, foi transformadora até, porque a cultura brasileira como um todo, o país como um todo, é diferente do nosso. E aquele que eu vivi é diferente de viver... De eu ir já com o estatuto para um clube grande, blindado muitas vezes por outras estruturas de comunicação, pela segurança, até onde se vive. Eu não, eu vivi o Brasil real!
- Como por exemplo…
- Vivi muitas histórias. Por exemplo, enganar-me na condução e ir quase ao centro de uma favela em São Paulo e sentir pânico até, porque sabemos que há muitos casos de pessoas que morrem assassinadas, por serem, como eles dizem no Brasil, metralhadas no meio da favela, porque não sabem que um estranho numa favela é um inimigo. Foi muito dura essa história. Essa e muitas outras, como a do caso da mãe. Lembro-me também de outro jogador que parte da família tinha sido morta pelo tráfico. Os primos, os tios, penso que um irmão também. E isso levou-me a refletir sobre o valor da vida, porque não podemos jamais focarmo-nos só naquilo que é a parte técnica do futebol. Acho que, no fundo, todos nós, todo o ser humano, mesmo aqui em Portugal, na Europa, não somos só isso. Às vezes, não vamos só a um jogo de futebol, não somos só as pessoas que pagamos para assistir a um espetáculo ou ver um jogo de futebol de alto nível, da Liga dos Campeões, ou vamos ao Estádio da Luz ver o show das luzes e do som, como o Benfica inovou nesse aspeto. Nós, no fundo, somos seres humanos que ficamos profundamente abalados quando uma equipa como a Chapecoense desaparece. Estava lá nessa altura também. Foi outro acontecimento que levo para toda a vida. O futebol tem muitos exemplos que, no momento em que as coisas acontecem, as pessoas valorizam, choram, são solidárias, mas depois passa e voltam ao conflito, voltam às guerrilhas, voltam aos maus exemplos, até para as gerações seguintes, e não deveria ser assim, porque nós ainda agora vimos o que aconteceu em Portugal aos bombeiros. Já tinha acontecido, e por momentos deixámos de ser solidários, esquecemos. Devíamos ser sempre solidários com quem precisa, com quem luta por nós, lembrar os momentos como o da Chapecoense, como o aconteceu ao Emiliano Sala, o jogador do Nantes, como aconteceu com muitas pessoas, não só dentro do futebol. E isso acho que fazia de nós melhores seres humanos, a mim fez melhor treinador, melhor homem, melhor líder, porque foi algo mesmo muito impactante. Acredito que, passem os anos que passarem, essa parte humana sempre vai ser algo prioritário para mim, para a minha liderança.
- Perguntava-lhe também como é que foi a sua relação com os media brasileiros, porque eles têm um forte peso e fazem uma comunicação, não sei se posso usar o termo, mais agressiva.
- Sim, mais agressiva às vezes é um pouco simpático, porque realmente a imprensa no Brasil… Para mim foi também enriquecedor ter vivido as primeiras etapas como treinador principal num país em que o número de órgãos sociais são às dezenas.
- Antes de chegar a uma conferência de imprensa quantas pessoas é que tinha na sala?
- Lembro-me da primeira, quando assumi o Atl. Paranenense, estavam 10, 15, 20 pessoas, a sala estava preenchida. Nós temos exemplos aqui de jogos da Liga aos quais não vai ninguém, que muitas vezes é o profissional da comunicação desse clube que faz a cobertura e que depois publica nas redes sociais. Por acaso, no Estrela tínhamos sempre a presença dos jornalistas, mas, lá está, porque tem a ver também com a localização: é Lisboa. Eu não estou aqui a falar nisso com uma crítica, porque é a constatação de uma realidade social. Também tem a ver com a dimensão da população, com a parte financeira, com o poder dos próprios grupos de comunicação social, mas é algo que para o treinador é enriquecedor lidar com isso.
- Os clubes também se fecham mais aqui, há mais dificuldade até para falar com um jogador…
-Sim. Quando estive no Brasil já começava a haver uma preocupação em blindar, em proteger o treinador, a equipa, os jogadores em alguns momentos. É o que sentimos aqui em Portugal, o que eu já tinha vivido nos anos anteriores, no Sporting, no Braga, na Académica. É algo muito mais privado, acho que a própria pressão do futebol também levou a que isso, a exigência que o futebol tem levou a que semanalmente existam momentos de maior privacidade, maior foco. E também vejo isso com um lado positivo.
- E os jogadores entendiam-no sempre nas palestras, nas reuniões? É a mesma língua, mas há uma série de expressões que são diferentes e, às vezes, é engraçado ver essa dificuldade linguística…
-Eu preparei-me bem, apesar de ser um país irmão, ser um país em que se fala o mesmo idioma, com muitas diferenças, mas eu preparei-me e fiz questão também de estar sempre focado em que a minha mensagem passasse e eu sei que a minha forma de comunicar em Portugal era diferente ou foi diferente. Tentei agarrar expressões, tentei agarrar palavras que eram próprias da cultura local e nós temos isso, os jogadores que vêm do Brasil, muitas vezes têm expressões, têm nomes de objetos, que têm outro significado e é preciso ter muito cuidado com isso, porque se não a mensagem não é passada da mesma forma, mas é um aspeto que também foi sendo moldado à medida que eu sentia que havia diferenças, porque mesmo dentro do próprio Brasil… O Brasil não é um país, na realidade aquilo é um continente, que tem diferentes formas também de se expressarem com diferentes palavras e é preciso realmente ter muito cuidado.
- A sua esposa acompanhou-o nessa aventura?
- Inicialmente não foi, estava grávida, da minha filha, a Madalena. Foi um momento muito duro, muito difícil para ela, para nós, mas com apoio... Na altura vivíamos em Braga, com o apoio dos meus pais e dos pais dela também, acabámos por ultrapassar. Mais ela, com todo o mérito, ultrapassámos essa fase, foram de momentos aprendizagem. Depois acabou por ir mais tarde para São Paulo. Foi quando eu estava na Ferroviária, no Campeonato Paulista, em 2016, e foi aí que viveu um pouco também da cultura do Brasil, depois voltou em 2017, vivia de forma intermitente. Essa é a maior dificuldade para um treinador de futebol, porque há bocadinho falávamos em off, precisamente sobre isso, porque um treinador ora está aqui, ora está ali, e com uma filha em idade escolar complica ainda mais um bocadinho a situação.