Uma história

Uma história

OPINIÃO10.03.202305:30

O desaparecimento de José António Pinto de Sousa leva-me a outros tempos

MORREU ontem José António Pinto de Sousa, um homem muito afável e gentil nas relações pessoais, uma personalidade da classe alta do norte do País, empresário de sucesso, dirigente desportivo com muito protagonismo em várias áreas, funções e entidades, formado num futebol que desaparecerá quando, por fim, desaparecerem todos os dirigentes dessa geração, formados no mesmo contexto, que aprenderam a mexer no mesmo tipo de massa, que se fizeram notados pelo mesmo estilo e forma de estar, que foram crescendo na tão conhecida e hoje, felizmente, cada vez mais inaceitável, cultura de poder, tráfico de influências, abuso de posição, de que José António Pinto de Sousa, digo-o, naturalmente, pela minha experiência e testemunho, nem era, sequer, um dos principais promotores ou protagonistas. 

José António Pinto de Sousa foi um dirigente desportivo do antigamente, de um antigamente, porém, que ainda perdura nalgumas mentes e nalgumas práticas, de um antigamente que não tinha, evidentemente, apenas práticas indesejáveis, mas contemplava muito, sobretudo a norte, a ideia de ‘aqui, menino não entra’, só uma certa elite e, sobretudo, personalidades disponíveis para aceitar, então, algumas ‘regras do jogo’.

José António Pinto de Sousa (tratado, entre essa mesma elite, simplesmente por José António, porque é assim, pelos nomes próprios, que as personalidades são tratadas, sobretudo, na sociedade portuense) viu-se, infelizmente para ele, apanhado nas teias do famigerado Apito Dourado, envolvendo práticas enquanto esteve à frente do Conselho de Arbitragem da Federação Portuguesa de Futebol, tendo visto o Tribunal da Relação do Porto confirmar, em março de 2010 (faz agora precisamente 13 anos) a condenação de dois anos e três meses de prisão com pena suspensa, por abuso de poder, sendo absolvido, meses depois, pelo Tribunal da Relação de Lisboa das acusações de viciação das classificações dos árbitros, resultantes do mesmo processo Apito Dourado.

Numa entrevista ao Diário de Notícias, em 2006, José António Pinto de Sousa afirmou não ser «ingénuo» ao ponto de «dizer que não existe corrupção» no futebol português, garantindo, evidentemente, nunca ter pactuado com semelhantes situações. «Durante os 12 anos (1983 a 1989 e 1998 a 2004) em que exerci as funções de presidente do Conselho de Arbitragem da Federação Portuguesa de Futebol sempre incentivei os árbitros, sem exceção, a realizarem no campo trabalho isento e digno e, como tal, invoco todos os árbitros que comigo trabalharam como os meus melhores testemunhos», disse, ainda, nessa entrevista, conduzida pela jornalista Sílvia Freches.

Odesaparecimento de José António Pinto de Sousa leva-me a recordar um surrealista episódio de entre muitos que vivi neste bastante atribulado futebol português nas décadas de 80 e 90, um episódio que vivi, aliás, com o próprio José António Pinto de Sousa, numa noite de sábado de abril de 1991, quando acompanhei, em serviço de reportagem para A BOLA, o árbitro Carlos Valente na viagem para o Porto, onde apitaria, no dia seguinte, o FC Porto-Benfica decisivo para esse campeonato.

José António Pinto de Sousa, então ex-presidente dos árbitros, tinha prometido convidar Carlos Valente para jantar quando Valente voltasse a dirigir jogos no Porto (de que esteve afastado durante três anos). Valente, que tinha sido o representante da arbitragem portuguesa no Mundial do ano anterior (Itália-90), prometera, por seu lado, aceitar o convite de Pinto de Sousa.

Esse dia chegou com a nomeação (decidida pelo Conselho de Arbitragem à época presidido por Fernando Marques) de Carlos Valente para dirigir esse FC Porto-Benfica, que o Benfica veio a vencer por 2-0 (os célebres dois golos de César Brito) e, com isso, a dar passo decisivo para se tornar, como se tornou, campeão nacional.

Na véspera do jogo, recordo, viajei com Carlos Valente e seus auxiliares para o Porto, no comboio Alfa que saiu de Santa Apolónia às 17h, mais minuto menos minuto. A equipa do Benfica, que nessa altura também tinha o hábito de viajar para o Porto em comboio, deixara Lisboa no Alfa das 14h40, creio que era esse o exato horário.

Ora eu e a equipa de Carlos Valente (formada apenas por mais dois auxiliares, não era como é hoje…) chegámos ao Porto, estação de Campanhã, pelas 20h e à nossa espera estava, como era esperado, José António Pinto de Sousa, para o jantar prometido, e para o qual Pinto de Sousa aceitara a presença deste jornalista.

QUANDO chegámos ao restaurante marcado, na fantástica zona da Foz, na belíssima cidade do Porto (pela qual me apaixonei quando lá vivi, alguns anos, na década de 80, como bem sabem os grandes amigos que lá mantenho), fomos de imediato confrontados com a surreal história de Carlos Valente ter feito a viagem para o norte no mesmo comboio do Benfica e de, inclusivamente, ter tido o desplante de sair na estação das Devesas, em Vila Nova de Gaia, abraçado ao então homem forte do futebol do Benfica, na altura o vice-presidente Jorge de Brito (eleito, mais tarde, número da Direção da Luz).

Essa versão foi transmitida aos presentes (Pinto de Sousa, os árbitros e eu) por Pôncio Monteiro, dirigente do FC Porto e também uma elegantíssima figura, entretanto já desaparecida, e deixou-nos absolutamente perplexos. Como podia correr essa versão na cidade se Carlos Valente jamais poderia ter viajado no mesmo comboio do Benfica (que seria coisa, na verdade, que não passaria pela cabeça, saudável, de ninguém)?

Pinto de Sousa tratou de esclarecer Pôncio Monteiro, manifestou-lhe, à minha frente, profundo desagrado pela maldosa insinuação que alguém pusera a correr, mas antes de entrarmos, por fim, no restaurante, Pôncio Monteiro ainda avisou que o ambiente na comitiva do FC Porto, que estagiava para o jogo com os encarnados num dos principais hotéis da cidade, estava escaldante e muito perturbado com a ‘veracidade’ dessa versão, posta a correr pela rádio, durante a transmissão de um jogo de uma modalidade (creio que andebol…) que se jogara na tarde desse sábado no pavilhão portista.

Carlos Valente ficou visível e compreensivelmente incomodado com a história. Ele ainda está, felizmente, de boa saúde para o confirmar e não me levará a mal que eu conte que ele quase não comeu. Após o jantar, Pinto de Sousa levou-nos ao hotel (eu dormiria num quarto perto do de Carlos Valente), onde ficou a equipa de arbitragem, e, ao chegarmos, foi-lhe pedido, pelo rececionista, que ligasse a Fernando Marques, que o leitor já sabe quem é.

Pelo que pude saber, Fernando Marques queria transmitir a Carlos Valente que ficasse tranquilo, que se focasse no jogo, que a sua nomeação não seria alterada e que, obviamente, o Conselho de Arbitragem sabia que era mentira a versão posta (propositadamente?) a correr na cidade.

Pinto de Sousa também tranquilizou Carlos Valente como pôde e tratou de me convencer a acompanhá-lo ao hotel onde estava a comitiva do FC Porto, que Pinto de Sousa queria esclarecer, para afastar de vez aquele terrível, inqualificável e inaceitável ‘fantasma’ que passou a pairar sobre o FC Porto-Benfica, tão importante, do dia seguinte.

Sem grande vontade, confesso, aceitei acompanhar Pinto de Sousa, na condição de não entrar no hotel, não com receio de ser visto (longe disso), mas sem estômago para conviver com ambiente tão negativo.

Mesmo sem sair do carro de José António Pinto de Sousa, porém, à entrada do hotel e pelo resto da noite, pude acabar por testemunhar e perceber muito do que já se ouvia mas que eu não tinha ainda visto nem plenamente compreendido até àquela noite. No lado esquerdo do chamado ‘lobby’ do hotel, no bar, lá estavam, às claras, vários árbitros no ativo, com jogos marcados também para o dia seguinte, e ainda um árbitro que já tinha deixado de o ser por irradiação (o também já desaparecido Francisco Silva); vivia-se, era perceptível mesmo do lado de fora, uma agitação indescritível entre os responsáveis portistas, que, na sequência da falsa versão relatada sobre a viagem de Valente, procuravam convencer os homens da arbitragem a trocar a nomeação do árbitro do FC Porto-Benfica. O surreal (ou nem tanto) convencimento de que Valente viajara para o Porto com a comitiva do Benfica e que deixara o comboio de braço dado com Jorge de Brito, estaria a levar os responsáveis do FC Porto ao extremo de exigirem a troca de Carlos Valente alegadamente por um dos árbitros presentes naquela noite no ‘lobby’ do hotel onde se encontrava a equipa portista. Uma confusão.

ACREDITO que os esforços de José António Pinto de Sousa tenham, pelo menos, esclarecido todos os que estavam (ou se faziam estar)‘enganados’, e demovido os responsáveis do FC Porto de mexer mais uma palha que fosse para alterar o que estava designado. Pinto de Sousa terá desfeito a tão bem elaborada mentira e garantido, nomeadamente ao presidente do FC Porto, que Carlos Valente seria mesmo o árbitro do jogo e que não haveria qualquer razão para que deixasse de o ser.

O que José António Pinto de Sousa não conseguiu (porque isso seria impossível) foi alterar todo o ambiente que passou a rodear aquele FC Porto-Benfica (nem vale a pena recordá-lo hoje, de tão tumultuoso e tormentoso se tornou) a partir do momento em que, no passa palavra, a cidade passou a acreditar que Carlos Valente tinha viajado com a equipa do Benfica, como, aliás, acabou escrito e publicado, na edição daquele domingo (dia do encontro), num dos mais importantes e influentes diários da cidade Invicta.

Ou seja: para os portistas e sobretudo para os adeptos portistas, a mentira tornou-se verdade e nem José António Pinto de Sousa podia eliminá-la, nem eu, apesar de tudo o que escrevi nas edições de A BOLA do dia do jogo e, sobretudo, do dia seguinte ao jogo.

O resto da história, é, apenas, história.

Por mim, deixo a minha mais simples homenagem ao homem que morreu ontem, sempre muito afável e gentil, com quem vivi esta triste história, num antigo futebol português de práticas tão indesejáveis, que ainda hoje perduram, porém e infelizmente, nalgumas mentes mais refinadas, mas em vias de extinção. Valha-nos isso!

PS: Brilhante o Benfica, intenso (e, de certo modo, infeliz) o Sporting e a aguardar-se vitorioso o FC Porto, que entra em ação na próxima semana. A Europa do futebol tem de contar com os portugueses!