Um comissário de bordo a pilotar um avião
Vejo em Rui Costa pouco do presidente que o Benfica pede neste momento. Vejo um presidente refém do passado
V I a entrevista de Rui Costa na passada quarta-feira e, não satisfeito, decidi que a devia rever. Talvez me tivesse escapado algo. Foi uma entrevista longa, com muita coisa dita nas linhas, e outras tantas nas entrelinhas. Depois li as respostas transcritas pelos desportivos. A seguir a isso, não satisfeito, resolvi testar algumas das aspirações anunciadas pelo presidente dias antes e assisti a um jogo da minha equipa contra o Moreirense. Foi um jogo deprimente - mais um - em que as camisolas encarnadas, sem alma que as vestisse, foram um dos poucos sinais visíveis de que o Benfica esteve em campo. Fala-se muito da mística benfiquista como espécie de fenómeno paranormal, mas a verdade é que toda a gente reconhece a mística quando a vê, e toda a gente reconhece um desastre quando ele se faz anunciar de forma estrondosa. Poucas horas mais tarde, vi a comunicação do meu clube reagir a um erro da arbitragem com um post fofinho nas redes sociais - para milhões de seguidores que acompanham o Benfica por todos os motivos menos este - em que o conteúdo apresentado era, no essencial, um autogolo da minha equipa. Esfreguei os olhos e coloquei os óculos para ter a certeza. Aconteceu mesmo. Foi o segundo autogolo do dia, numa época que prossegue sofrível.
A minha primeira reação à entrevista foi de benevolência para com Rui Costa. Queria muito ouvir as respostas certas ou amparar as suas imprecisões, mas a benevolência excessiva tende a fazer de nós tontos. Se não tivermos cuidado damos por nós a gostar de ser enganados. E acho que já chega de enganos. Não sei como dizer isto de outra forma. Por muito que queira acreditar nas eventuais boas intenções de Rui Costa enquanto presidente, e por muito que reconheça que o seu mandato ainda vai curto, vejo em Rui Costa pouco do presidente que o Benfica pede neste momento da sua história. Vejo um presidente refém do passado que parece querer ignorar o caminho muito complicado que aqui nos trouxe, o mesmo do qual somos relembrados diariamente nas escutas vindas a público, o mesmo do qual seremos relembrados durante muito tempo.
Ao invés de avançar já para a fase das reparações que permitiria aproximá-lo dos muitos adeptos desconfiados, Rui Costa pede-nos que olhemos para o futuro, porque aquilo que interessa é o próximo jogo, e se ganharmos esse, e o seguinte, e o seguinte, talvez os golos façam desaparecer os problemas. O problema de pedir aos sócios para esquecerem o passado e porem os olhos no futuro não é apenas a falta de razões para ansiar pelo futuro. É que, quando olhamos em frente, é Rui Costa quem lá está, com toda a bagagem emocional e reputacional de quase uma década e meia ao lado de Luís Filipe Vieira. Peço ao leitor que acredite em mim quando afirmo que o meu coração vai tentando dar uma oportunidade a tudo isto, mas a razão não lhe tem dado tréguas. E esta entrevista não ajudou nada. Valerá de pouco dizer que os sócios não dão a Rui Costa condições para liderar o Benfica com estabilidade, porque isso significaria pedir aos adeptos do Benfica que enfiassem a cabeça na areia durante os anos que serão necessários para o clube se libertar desta pesadíssima herança. A culpa não é dos adeptos. É da realidade que nos trouxe até aqui, e da incapacidade em lhe dar um novo sentido.
É certo que as condições primordiais para Rui Costa exercer o cargo de presidente são, em primeira instância, as conferidas pelo resultado do último ato eleitoral. Essa legitimidade não desapareceu ao fim de três meses, mas esta entrevista era uma oportunidade de começar a percorrer um caminho decisivo para a sua afirmação. E o que vimos afinal?
Vimos um Rui Costa que pensa que as assinaturas de um administrador no que toca a negócios de milhões não têm necessariamente de implicar o conhecimento desses mesmos negócios, sem que daí venha mal ao mundo. Ou seja, vimos um Rui Costa que, ao fim de quase década e meia no clube, tem, enquanto presidente, um entendimento francamente preocupante daquilo que é o papel de uma administração. Vimos um presidente incapaz de admitir o erro neste tipo de conduta. Perante a insuficiência desta defesa, vimos Rui Costa explicar que o seu benfiquismo não pode ser questionado, como se alguém o tivesse feito a propósito destes episódios. Ao fazê-lo, Rui Costa cria uma ficção que nos afasta do essencial: a flagrante admissão de negligência em direto na BTV, cujo impacto para as finanças e reputação do clube - por via do anterior presidente - será agora apurado em tribunal. É assim que se ganha a confiança dos sócios? Não creio. Os sócios do Benfica querem que o seu presidente não compactue com práticas negligentes, muito menos num momento como este. Se alguém admite a normalidade destas práticas em janeiro de 2022, o que nos diz que o futuro vai ser diferente, tal como o próprio Rui Costa anunciou? Quem hoje preside ao Benfica tem que perceber de uma vez por todas uma coisa. Não há guerras infinitas neste clube, mas também não se pode esperar que os sócios aceitem a incompetência ou a mediocridade como fossem inevitabilidades. Isto não é válido para o presidente. É válido para tudo, do presidente à comunicação, passando por tudo o resto. Este episódio das assinaturas de cruz não é um Benfica à Benfica. Não é uma organização uma década à frente. E não é seguramente a forma de convencer os sócios a olharem para o futuro confiantes de que o passado já passou.
Rui Costa não precisa de se preocupar com aquilo que os benfiquistas pensam acerca do seu benfiquismo. Não é disso que rezará a história. Rui Costa tem de preocupar-se com aquilo que os benfiquistas pensam acerca da sua competência e preparação para o maior desafio da sua vida. Rui Costa chegou ao Benfica miúdo, como o próprio já fez questão de dizer muitas vezes, e foi no Benfica que se fez homem, mas aquilo que os benfiquistas como eu lhe pedem agora é que se faça presidente. O Benfica não pode ter um presidente em estágio. Se lhe falta equipa, se lhe faltam condições, que tenha a humildade de as saber reunir o mais rapidamente possível sem olhar a meios. E que o faça renovando de uma vez por todas o clube. Que não seja complacente com o passado, porque os benfiquistas também não serão.
Rui Costa anunciou-se preparado para liderar o clube num período complicadíssimo e teve a confiança dos sócios. Demonstrou coragem nesse momento. Que mostre agora tudo aquilo que lhe falta para ser o presidente que o Benfica merece. E que saiba ler nas linhas e nas entrelinhas. Que defenda o clube intransigentemente. Que dê um murro na mesa, ou uma marretada se necessário. Que entre com tudo sobre os desafios que o clube tem pela frente. Que saiba que aqueles que deixar para trás nunca serão superiores a todos os sócios que caminharão com ele rumo ao futuro. Não lhe chegará ser benfiquista, nem lhe chegará ser o eterno ídolo dos relvados, pronto para distribuir autógrafos a miúdos e graúdos embevecidos. O tempo não está para fracos. O tempo urge. O tempo joga contra nós. Cada dia perdido pode equivaler a mais um ano de Benfica arredado da sua grandeza. Por muita benevolência que se tenha, ou por muita simpatia que um ídolo possa merecer, uma coisa é hoje evidente. Não podemos ter um comissário de bordo a pilotar o avião.