Tão belo e cruel

OPINIÃO16.12.202205:30

O presidente do Benfica sabe, pelo menos tão bem como os que melhor sabem, que só com união pode levar o seu ‘Titanic’ ao sucesso

FERNANDO SANTOS deixou ontem de ser, oficialmente, o selecionador nacional, concluindo um ciclo de oito anos à frente da equipa das quinas. Rui Costa está, na realidade, no primeiro ano a sério como presidente do Benfica, iniciando, assim, um ciclo que os benfiquistas esperam não apenas duradouro, como bem-sucedido.

Curioso como Rui Costa e Fernando Santos têm, afinal, muito mais em comum do que à primeira vista pode parecer. Rui Costa dirige hoje, pois, o maior clube português, e Fernando Santos dirigiu até 10 de dezembro de 2022 os melhores jogadores nacionais. Os dois com tarefas absolutamente extraordinárias, exigentes, incomparáveis, dificílimas e tantas vezes incompreendidas. Rui Costa está no início deste seu novo ciclo; Fernando Santos concluiu o mais longo dos seus ciclos de treinador.

Rui Costa é o primeiro ex-futebolista profissional a chegar ao topo da hierarquia num dos grandes clubes do País; Fernando Santos foi o primeiro treinador a injetar verdadeira ambição de levar a Seleção a conquistar títulos e o único a acabar por consegui-lo. Rui Costa é um benfiquista indefetível; e, que se saiba, também Fernando Santos guarda, e preserva, uma costela encarnada, que, na verdade, nunca verdadeiramente, fez questão de a esconder.

Onde está, porém, o lado mais curioso de toda esta história?

Fernando Santos foi apresentado como treinador do Benfica a 20 de maio de 2006, cumprindo, então, por um lado, o desígnio de conseguir ficar na história como tendo treinado os três grandes de Portugal, e, por outro, o sonho de comandar a equipa do clube do qual se tornou culturalmente adepto desde a infância. Cinco depois disse, foi apresentado na Luz o regressado ‘maestro’ Rui Costa, vindo do poderoso e histórico Milan, de Itália, para vestir de novo a camisola do clube do coração, cumprindo o sonho que nunca deixou de revelar de, um dia, após mais de dez anos a jogar futebol em Itália, voltar, pode, no caso, afirmar-se, realmente a casa.
 

CINCO dias separaram, pois, as apresentações de Fernando Santos e Rui Costa na Luz. Mas a entrada na casa da águia deu-se ao mesmo tempo, quando, no mês seguinte, ambos deram o pontapé de saída na preparação da época 2006/07. As novidades nesse Benfica não se ficaram por aí, e em setembro desse mesmo ano, o clube inaugurava o que viria a ser o mais significativo projeto deste século, a Academia do Seixal.

Fernando Santos e Rui Costa tiveram, logo, ligação muito forte. Lembro-me de Rui Costa confidenciar (o presidente do Benfica não me vai levar, certamente, a mal) a admiração pelo treinador, e de elogiar o trabalho na Luz, mesmo quando o Benfica parecia jogar tão bem e, ao mesmo tempo, parecia tão incapaz de ganhar. Difícil esquecer, por exemplo, um Benfica-Boavista, em fevereiro de 2007, na Luz, perante mais de 50 mil espectadores, com a equipa então comandada no banco por Fernando Santos, e dentro do campo pelo número 10 Rui Costa, a conseguir uma exibição de grande e entusiasmante futebol - grande no sentido da avalanche ofensiva e da quantidade de oportunidades de golo criadas -, e acabar, porém, inexplicavelmente, por não sair do 0-0, num daqueles jogos que acabam por não servir para nada do ponto de vista da história, mas servem para quem o viu e para quem gosta realmente de futebol.
 

AO contrário do que lhe sucedeu, agora, no ciclo da Seleção, o curtíssimo ciclo de Fernando Santos no Benfica não teve qualquer sucesso. Mas enquanto no ciclo da Seleção, a equipa talvez tenha jogado mais vezes um futebol pouco atrativo do que excitante, conseguindo, ainda assim, os dois únicos títulos de sempre, no Benfica jogou quase sempre um futebol mais excitante do que pouco atrativo, mas acabou por não ganhar nada.

Na Seleção, jogando a equipa mais ou jogando menos, Fernando Santos ganhou coisas importantes e durou oito anos, mais do que qualquer outro selecionador nacional. No Benfica, o resultado foi tão cruel e traiçoeiro que Fernando Santos durou apenas um ano e uns pozinhos. Foi despedido na primeira derrapagem da época seguinte e, até hoje, Luís Filipe Vieira, o então presidente das águias, não se cansa de assumir ter cometido com esse despedimento o maior erro da sua vida de dirigente. 
 

RUI MANUEL COSTA, o mágico da Luz, provavelmente o último grande número 10 do futebol português, pelo menos como a minha geração se habituou a olhar para o 10 - sem qualquer desprimor para os 10 de hoje, como Bernardo Silva, por exemplo, de estilo, creio, diferente… -, terá sentido bastante, na altura, o despedimento do treinador, chegando a desabafar (e, mais uma vez, estou certo que não me levará a mal esta espécie de ‘apropriada inconfidência’) a maldição de, com ele, Rui Costa, vários treinadores que mereciam toda a felicidade do mundo terem acabado por não a viver, como tinham sido os casos do italiano Alberto Malesani, a quem Rui Costa muito se apegou quando por ele foi treinador na Fiorentina, o turco Fathi Terim, que conduziu o ‘maestro’ português no Milan, e, por fim, Fernando Santos, no Benfica.

Agora, enquanto Santos acaba de cortar o ‘cordão umbilical’ com a Seleção Nacional que abraçou, pela primeira vez, em setembro de 2014, Rui Costa desfruta, hoje como presidente, da relação umbilical criada desde que nasceu com o Benfica. As vidas de um e outro cruzaram-se, um dia, na Luz, numa história que dirá sempre muito mais a cada um deles do que propriamente à história do futebol. É a vida. 
 

MERECE, naturalmente, Fernando Santos o reconhecimento institucional, mas também dos adeptos. Merece Rui Costa o apoio dos benfiquistas, não apenas por ter dado o ‘peito às balas’ num dos momentos mais difíceis da história do clube, mas também por estar, até agora, a dar talvez uma ‘bofetada de luva branca’ a muitos, como eu (não me fica mal assumi-lo), que tinham dúvidas sobre a capacidade mais ampla de Rui Costa tomar as decisões certas que pudessem, de algum modo, começar a regenerar o futebol encarnado, após três anos de solavancos, insucessos, trovoada e forte agitação marítima.

Sabe, evidentemente, Rui Costa que a equipa ainda não ganhou nada, não precisa que passem a vida a recordá-lo. O presidente do Benfica sabe, pelo menos tão bem como os que melhor o sabem, que o sucesso no futebol vive exclusivamente do resultado. E sabe igualmente Rui Costa que há, pelo menos, de entre tudo o que é indispensável para se ganhar, um dado absolutamente essencial, sem o qual pouquíssimas (para não dizer… nenhumas) são as possibilidades de chegar ao sucesso: a união e coesão de todos os que, sobretudo, mexem com o futebol de um grande clube, como é o caso do ‘Titanic’ da Luz, mas também daqueles que, menos diretamente, acabam também por influenciá-lo. 
 

SEM essa unidade impossível criar a estabilidade. E sem estabilidade, nenhum grupo ganha coesão. Basta uma fenda, uma brecha, uma racha no edifício estrutural de uma qualquer equipa, para as infiltrações tratarem de a fazer ruir. Muito mais ainda numa equipa grande de um grande clube, onde tantas vezes um vento ligeiro soprado do lado errado pode, subitamente, transformar-se na ‘tempestade perfeita’ e demolidora.

Fernando Santos, e os jogadores da Seleção, talvez tenham sido, no Catar, vítimas, afinal, apenas deeles próprios, no sentido de não terem sido capazes, um e outros, de evitar que uma certa instabilidade, mais ou menos visível, mais ou menos consequente, mais ou menos perigosa, mais ou menos provocada, mais ou menos conjuntural, acabasse por conseguir sobrepor-se ao excecional talento deste grupo de jogadores e à rara expectativa e ilusão criada entre todos os adeptos de que desta, sim, Portugal estaria, como nunca, a desafiar autêntica oportunidade de ser campeão do Mundo.

Pelo contrário, Rui Costa está a fazer tudo para que não se sinta sequer leve brisa inesperada pelos lados da Luz, e quando sublinhou, no discurso de Natal para toda a estrutura do clube, a necessidade de todos, mas todos, estarem unidos, o presidente do Benfica (todos o sabem, mas ele sabe-o tão bem como bem sabem todos os que o julgam saber) sabe exatamente do que fala e do que o leva a dizê-lo.
 

Énormal: líder da Primeira Liga com tão excecional primeiro terço de temporada, digamos (apesar de já ter jogado, sensivelmente, juntando todas as competições, quase metade dos jogos que virá a jogar na época), com 28 encontros oficiais sem conhecer a derrota, 13 dos quais no campeonato, o Benfica sabe que se tornou o alvo a abater pelos principais adversários, como alvo seria, naturalmente, qualquer outro que fosse o emblema comandante da principal competição nacional.

Sendo o alvo a abater, sabe igualmente o Benfica - e sabe-o, muito bem, Rui Costa - que a expectativa entre os principais competidores é que a equipa de Roger Schmidt comece já a tropeçar no regresso do campeonato, quando, no penúltimo dia deste ano, jogar em Braga, e começar 2023 recebendo Portimonense e, logo a seguir, Sporting. Cabe ao Benfica, ao presidente, e sobretudo a todos os que terão entendido o apelo de unidade lançado por Rui Costa, mostrar como foi o campeonato que teve de ser interrompido, mas não a alma, o espírito, a fé e o jogo alegre e ofensivo com que a equipa do alemão Roger Schmidt foi capaz de surpreender o País do futebol, mas também a Europa dos mais ricos.
 

JÁ Fernando Santos, infelizmente para ele, não vai poder continuar a surpreender na Seleção, fosse por nem sempre se mostrar capaz de pôr a equipa a jogar de acordo com o que julgamos ser o talento individual dos jogadores, fosse por acabar por conquistar inesperados e valentes títulos, acredito, graças, sobretudo, a ter então conseguido, sobretudo em 2016, em França, a unidade difícil, sempre tão difícil, numa Seleção de jogadores cada vez com mais estatuto, que, pese embora nobremente, se encontram à esquina uma meia dúzia, apenas, de vezes por ano, com o melhor dos princípios, mas nem sempre, seremos forçados a admitir, com a mais indispensável das harmonias.

É exigente o jogo, dentro e fora do campo, é belo e cruel, doce e amargo, tão agradavelmente vivido e, por vezes, tão dolorosamente sentido.

É o futebol!