Real Madrid não é brincadeira

OPINIÃO25.02.202305:30

Amancio no Bernabéu e o Real Madrid em Anfield disseram-nos a mesma coisa: essa lenda não tem fim

HÁ HISTÓRIA PORQUE HÁ MEMÓRIA

S ER uma lenda do Real Madrid é difícil porque a história pesa muito e há muita competição. Amancio, presidente honorário, morreu esta semana, quando o Real Madrid esperava o Liverpool na Liga dos Campeões. E um desfile interminável de pessoas despediu-se dele como ele merecia, no Bernabéu. A sua família, Florentino, os companheiros da sua geração, Ancelotti, alguns jogadores atuais, emblemas como Raúl, o futuro do clube representado pelas camadas jovens com Arbeloa na frente. Presente, passado e futuro estiveram na despedida unidos pela história, carinho e orgulho de algo que deixava a impressão de ser sólido e valioso como uma família. Em tempos tão urgentes, a memória continua a abrir caminho para se despedir com todas as honras de alguém que alegrou a vida de muita gente e marcou a fogo a sua passagem pelo futebol. 


COMO HOMENAGEM, UMA RESENHA GERAL

E NQUANTO o drible gritava para Amancio, um dos seus donos, Vinícius pedia passagem com a bola nos pés com o seu jeito inesgotável. Vai-se uma glória e outras aparecem. Aqueles e estes carregados a uma constante: a ferocidade competitiva e o gosto pelo impossível que o clube injeta como primeira premissa da sua identidade. Madrid não é brincadeira e esta semana voltou a demonstrá-lo em Anfield. Ao estádio mais vulcânico da Europa bastou um quarto de hora para entrar em erupção. O resfriamento exigiu um manual de soluções que culminou num novo capítulo de autoridade inesquecível. A harmonia coletiva e a qualidade individual  lembraram-nos que o Real Madrid não tem um estilo de futebol que o identifique, mas há uma mística e traços temperamentais que milagrosamente passam de geração em geração e que enchem de orgulho os adeptos na mesma medida em que assustam os rivais.


NÃO HAVERÁ ESTILO, MAS O ESPETÁCULO É ABUNDANTE

A esta altura, ser do Real Madrid é acreditar em milagres. Ultimamente, como exige o mundo do entretenimento, a equipa tem-se inscrito no mais difícil de sempre. Mas observo que a ridícula acusação de falta de estilo e o espanto provocado por respostas heroicas às adversidades põem no esquecimento uma característica que nasceu com o clube: o sentido de espetáculo de talentos superiores que sintonizam o voo. O golo  que fechou o jogo frente ao Liverpool é um bom exemplo. Modric perfurou o meio-campo com classe e tenacidade, descarregou no omnipresente Vinícius, que procurou primeiro por Benzema. Mas quando a bola chegou a Karim com a baliza na frente, ele passou de estar sozinho para o meio de uma multidão, com Alisson na primeira fila. Foi preciso uma rasteira para derrubar o guarda-redes e um camião cheio de jogadores do Liverpool. Amancio teria aplaudido. A próxima coisa foi depositar o quinto golo.


HÁ QUE CUIDAR

A S equipas são de cristal e o Liverpool é um bom exemplo. Uma equipa organizada, física, com mais entusiasmo combativo do que juízo calmo e, portanto, temível. Não bailou contigo, antes passou por cima. Como nos primeiros 15 minutos do jogo com o Madrid, mas sempre. Alguns jogadores importantes saíram, outros lesionaram-se, perderam a convicção e deixaram de ser um perigo ambulante. Mas os jogos não mudam sozinhos. Era preciso que o Real Madrid aparecesse como se os golpes em forma de golos não machucassem, como se tivesse mais tempo que os rivais para resolver o problema primeiro e exagerar depois até aos cinco golos, como se por direito histórico estivesse autorizado ao impossível. Amancio no Bernabéu e o Real Madrid em Anfield disseram-nos a mesma coisa: essa lenda não tem fim.