Pontas soltas e a exigência de sempre
Só muito dificilmente se pode esperar que a época passada seja superada sem a correção de alguns dos desequilíbrios dos últimos dias
JÁ muito se escreveu sobre a exigência dos benfiquistas. Esta pode parecer igual à dos adeptos de outros clubes, mas não é. Não sou eu que o digo. Os adeptos de outros clubes concordam. Há poucos dias lia uma entrevista de um ex-atleta do Sporting, o lateral Antunes, em que este explicava aquilo que torna o Sporting e os seus adeptos diferenciados. Antunes explica que é fácil ser-se do Benfica ou do FC Porto ou do Real Madrid, porque tendem a ganhar mais vezes, argumentando que a capacidade sportinguista de perdurar ao longo de sucessivos desaires é o verdadeiro teste de amor a um clube. Isto é uma conversa comum quando se fala com ou de sportinguistas. Até eu lhe reconheço um certo fundo de verdade, e não há chacota nenhuma nisso.
A capacidade de todos os sportinguistas da minha geração se terem iludido com a possibilidade de um título nacional, cenário esse que só se viria a concretizar algumas décadas depois, e não terem desarmado completamente, é uma forma respeitável de viver o clubismo, desde que se perceba que não existe nada de concretamente singular nisso - é só mesmo uma vontade enorme de voltar a vencer que, repetidamente, falhou em encontrar correspondência na realidade. Mas a vida continua. Nem os sportinguistas são únicos nem eu serei capaz de convencer o leitor que sofre pelo FC Porto da qualidade única e incomparável do Sport Lisboa e Benfica. Adversários como dantes, ou inimigos, como preferem alguns.
Desengane-se no entanto quem acha que é mais fácil ser do Benfica. A ideia de que quem ganha mais vezes se sente saciado está muito longe de ser verdadeira. Só mesmo quem ganha muito poucas vezes pode pensar assim. É exatamente o oposto. O regresso do Benfica ao título na liga, não décadas depois, mas após 3 épocas sem títulos, não fez mais senão abrir o apetite dos adeptos. Ninguém está satisfeito. Arrisco dizer que é mais o contrário. A exigência aumentou ainda mais. O benfiquista pede sempre reparações pelos danos materiais e emocionais que as épocas de insucesso lhe causaram.
Se perdemos o título nacional três vezes consecutivas, o mínimo que se espera agora é a conquista de seis títulos, para pelo menos equilibrar a balança e restaurar totalmente o nosso ânimo. E a única forma de eventualmente atalhar esse caminho passará por uns quantos anos de pleno ou por uma proeza na liga dos campeões que vingue a eliminação da época passada, desaire tão grande como alguns dos maiores que vivi enquanto benfiquista. De facto, isto só parecerá fácil para quem não é benfiquista, para quem não acorda todos os dias benfiquista e sabe que não há nem pode haver outra ambição que não esta. Quem ganha mais vezes não se cansa de ganhar. Desenvolve um apetite, educa o seu gosto, e deixa de querer outra coisa.
Vem esta reflexão sobre exigência a propósito dos últimos dias da pré-época, em que o ânimo pouco moderado dos benfiquistas face ao plantel disponível só teria encontrado a devida correspondência em goleadas sucessivas que nos catapultassem para o mais que óbvio sucesso, de preferência consagrando a nossa equipa matematicamente campeã já em dezembro, para depois se concentrar no percurso europeu. Só que, em vez disso, tivemos duas derrotas e um futebol com pouco de memorável e algumas pontas soltas a poucos dias de um jogo tradicionalmente difícil.
A primeira pré-época de Roger Schmidt teve o condão de nos fazer sentir desde o primeiro minuto uma transformação que era tão necessária quanto urgente. Sendo verdade que uma pré-época é isso mesmo, a antecâmara dos jogos a doer, a sensação neste momento é a de que há mais trabalho pela frente do que havia quando começámos há um ano - isso e permanecem algumas perguntas sem resposta.
Admito que algumas dúvidas sejam alimentadas parcialmente pela indústria dos rumores, mas, até desmentido oficial, só posso ser levado a crer que algum interesse existirá em contratar um novo guarda-redes que seja mais competente na capacidade de sair dos postes e de participar na primeira fase da construção de jogo. O processo parece estar a levar bastante mais tempo do que devia, e a situação torna-se delicada para um guarda-redes como Vlachodimos, que tem os seus defeitos, mas também não parece ter impedido estruturalmente o Benfica de voos mais altos. Digo não parece, porque efetivamente nunca lhe vimos uma alternativa. Por um lado, apetece perguntar até que ponto a ideia de jogo de Schmidt beneficia assim tanto de um guarda-redes mais competente com os pés, isto tendo em conta que já levamos mais de uma época deste treinador e nada foi feito. Por outro lado, questiono-me se será mesmo assim tão complicado fechar a contratação de um guarda-redes mais adequado ao estilo de jogo preconizado.
Na defesa, a principal mudança é a falta de Grimaldo, que teve uma relação por vezes tempestuosa com os benfiquistas, mas de quem, receio, podemos vir a sentir muitas saudades esta época. A profundidade das alas do Benfica de Schmidt depende muito da participação dos laterais, e, se é verdade que Bah tem pulmão, ou ainda que o Benfica 23/24 pode depender mais dos seus extremos, não será de esperar que Bah forneça à equipa a gama de soluções ofensivas e argumentos individuais que Grimaldo apresentava em momentos muito diferentes dos jogos. Excluo desta análise Jurásek e Ristic, porque ainda não é evidente o que podemos esperar deles. O primeiro ainda pouco se mostrou e parece-me que vai precisar de algum tempo, enquanto o segundo vai mostrando a espaços que quer fazer-nos esquecer o seu ex-colega espanhol, mas ainda peca bastante na decisão. No capítulo defensivo, percebe-se que a ideia de Schmidt encontrou em Grimaldo um intérprete essencial para sair a jogar com qualidade, maximizar a transição ofensiva e/ou aproveitar da melhor forma na reação à perda. Neste momento é difícil encontrar as soluções numa saída a jogar que aparenta estar mais dependente dos centrais do que seria desejável, e encontra alguns pontos de interrogação à sua frente. Esta debilidade sentiu-se bastante em alguns jogos na época passada, os jogos contra Burnley e Feyenoord expuseram novamente esta dificuldade.
Mas talvez a maior dúvida esteja mesmo no meio-campo, já que ainda não parece ser evidente para Schmidt qual a combinação de ingredientes que garante uma complementaridade efetiva entre agressividade com e sem bola, mas também a capacidade de construção que permita sair a jogar e, finalmente, um jogo fértil em ocasiões de perigo quando a equipa se instala em ataque posicional. É certo que nem tudo tem que estar cristalizado no final de julho, mas era de esperar um duplo pivot mais oleado nestes dois últimos jogos (ou um meio campo a três que melhor potencie o talento disponível?). Aursnes e Kokçu pareceram revelar pouca familiaridade um com o outro nestes dois encontros, em particular no equilíbrio que é pedido. Fica no ar a ideia de que uma dupla composta por Florentino e João Neves talvez ofereça mais garantias naquela zona do campo, favorecendo a capacidade já demonstrada por Aursnes para atuar mais encostado à linha, com uma participação mais efetiva no ataque da equipa e capacidade para aparecer mais vezes perto da área.
Não é que tudo esteja resolvido a partir daqui, mas tenho dificuldade em imaginar que uma equipa capaz de conduzir o jogo de forma eficaz até Di María, Neres, Gonçalo Ramos, ou Rafa, não consiga sentenciar a esmagadora maioria dos jogos no calendário. Ainda assim, mesmo aceitando como facto que as individualidades do Benfica são capazes de resolver qualquer jogo, só muito dificilmente se pode esperar que a época passada seja superada - é este o objetivo - sem a correção de alguns dos desequilíbrios evidenciados nos últimos dias. Isso e talvez a introdução de novos elementos ao jogo do Benfica permitisse desarmar alguns adversários, hoje muito mais conhecedores da forma de jogar deste Benfica, tanto em Portugal como na Europa. Fazer repetidamente as mesmas coisas e esperar resultados diferentes quase nunca resulta, mas fazer a mesma coisa e esperar resultados exatamente iguais também é uma receita falível. Terminada uma pré-época que surpreendeu pelos resultados e exibições menos positivas, é importante inverter já essa marcha. Não há campeões nem derrotados na pré-época, e também não há duas épocas iguais, mas a ambição e a atitude não podem mudar. Essas passam pela procura ativa e imediata de respostas melhores, já na Supertaça. Há trabalho pela frente e, como Roger Schmidt e a sua equipa técnica já terão percebido, a exigência dos benfiquistas nunca irá diminuir.