O pandemónio!

OPINIÃO20.11.202003:00

MUITA coisa no futebol parece ter deixado de fazer sentido, e neste terrível cenário da pandemia, muita coisa se tornou, no mínimo, difícil de explicar. A Alemanha já não se lembrava de ser goleada, e talvez apenas os avós germânicos ainda se recordem do 6-3 sofrido no Mundial de 1958, aos pés da França, já lá vão, portanto, mais de 50 anos!  

Pior do que isso, só mesmo há quase 90, imaginem, quando, em 1931, a Alemanha perdeu por 6-0 com a Áustria, em plena Berlim, talvez, quem sabe, sob o olhar de ditadores sedentos de sucessos...

O resto, é a história que se conhece, com a Alemanha a habituar-se ao longo dos tempos a humilhar desportivamente os adversários e a nunca ser desportivamente humilhada, como acabou por suceder agora, diante da Espanha, com a pesadíssima goleada sofrida por 6-0(!) que teve, para alguns, certamente o sabor a vingançazinha desportiva pela surpreendente, e difícil de explicar, goleada 8-2 imposta pela equipa alemã do Bayern de Munique à equipa espanhola (sim, espanhola, apesar de catalã…) do Barcelona, na fase final da última Liga dos Campeões, que Lisboa recebeu em agosto. Em campo, foi Sérgio Roberto, o único a esfregar, agora, as mãos, pela desforra, porque o lateral foi o único jogador do Barcelona a defender, desta vez, a seleção espanhola.

Dirão os mais simplistas que alguma vez a Alemanha tinha de passar por isto. Pois bem, se os crentes acreditam que Deus é justo, é justo, na verdade, que Deus tenha tido a oportunidade de fazer a sua justiça, pondo fim à velha expressão de no futebol jogarem 11 contra 11 e no fim ganharem… os alemães!

A partir de agora, e pelo menos por algum tempo, nem os alemães vão querer ouvir tal coisa, porque a lembrança de uma humilhaçãozinha desportiva é algo que perdura. Ainda hoje, já passados três meses, o Barcelona vive a angústia daqueles 8-2 com os bávaros em pleno Estádio da Luz… e, pelos vistos, tão depressa, como se tem visto, não se livrará desse insuportável fardo e do massacre que nós, nos países latinos de sangue quente, tão amavelmente dedicamos aos que perdem.

A propósito da inusitada goleada da Espanha à Alemanha, não devemos porém esquecer que nem esta é seguramente a melhor Espanha dos últimos anos (nem de perto, nem de longe), nem esta é a pior das seleções alemãs, longe disso, também, e bastará lembrar que no onze dos germânicos estavam, só, cinco jogadores da poderosa equipa do Bayern de Munique, tida por muitos observadores como a mais forte equipa europeia da atualidade, detentora, como se sabe, do título de campeã dos campeões, e mais uns quantos oriundos de Real Madrid, Manchester City, Chelsea...

Para nossa desgraça, que sentimos o céu quase desabar sobre a cabeça só porque perdemos com a França por 1-0!!!, o tornado que esmagou a Alemanha vitimou não apenas um Werner, um Ginter, um Koch, um Kroos, um Goretzka, ou ainda um Neuhaus ou um Heinrich, mas, para mal dos nossos pecados lusitanos, logo tinha de incluir também um Manuel (Neuer) e um Joaquim (Low), como se já não nos bastasse as enxaquecas provocadas pela derrota com os franceses e a imediata queda, por cá, do Carmo e a Trindade…

Serve a piada do Manuel e do Joaquim para reconhecermos a nossa tremenda falta de estofo, tão grande que se porventura tivéssemos levado 6 do ainda campeão do mundo, nossa senhora, onde estariam pendurados a esta hora os nossos rapazes e o selecionador?!!!

Claro que parece, evidentemente, unânime a opinião de não ter a nossa seleção estado no seu melhor no jogo decisivo com a França, sobretudo com aquela 1.ª parte tão indolente, não diria desleixada, mas descuidada, sem vigor, sem o empenho que se esperaria de um campeão da Europa, que jogava na Luz todas as fichas para chegar à final four e à defesa deste título das Nações, prova que na verdade tantas dores de cabeça terá trazido aos principais clubes europeus neste tão incontrolável contexto de pandemia.

NÃO custará ainda admitir que o próprio selecionador tenha sentido necessidade de dar um puxãozinho de orelhas à equipa no seu todo, sobretudo para fazer valer o princípio de a Seleção Nacional ser um fim e não um meio, no sentido em que os jogadores têm de sentir a responsabilidade de dar sempre tudo o que podem, mesmo que esse tudo o que podem não seja suficiente nalguns jogos para se ser melhor.

No fundo, a velha questão da consciência tranquila e da compreensão de que o problema nunca está na derrota, mas na maneira como se perde. E não se pode dizer, para sermos inteiramente justos, que Portugal tenha, na primeira parte do jogo com os franceses, parecido dar realmente tudo o que podia, e Fernando Santos fez questão, numa atitude absolutamente compreensível, de deixar claro que não tinha sido ele o responsável por qualquer estratégia de contenção ou por mandar jogar na chamada expectativa… não fossem os analistas desatar a criticar a alegada estratégia do treinador!, ainda que já me tenha parecido um pouco exageradas as declarações de Fernando Santos após a vitória, a meio gás, na Croácia...

A verdade, porém, com as dificuldades que os jogadores sentem e no cenário que se vai, infelizmente, vivendo, é que Portugal acabou derrotado por 1-0 não por uma qualquer seleção de valor teoricamente inferior (e mesmo que o fosse...), mas pela seleção que muitos consideram, e talvez bem, a melhor seleção do  mundo do momento, detentora ainda, nem de propósito, do máximo título mundial de seleções. E esse campeão do mundo foi, frente a Portugal, claramente a melhor equipa.
Talvez o problema seja estarmos a ficar tão mal-habituados que já nos custa tolerar uma derrota por 1-0 com a campeã do mundo!!!, imaginem agora se nos soprasse o vento que acaba de varrer a Alemanha, naturalmente sem as consequências que resultariam de imediato num país como o nosso… com as habituais cabeças a rolar e respetivos despedimentos com a justa causa da pressão popular.

Na Alemanha não é assim, felizmente para os profissionais alemães. E mesmo numa Alemanha habituada ao luxo de vencer com enorme regularidade, capaz de dar 7 ao Brasil ou 5 a meia dúzia de outros adversários por mais fortes que sejam, compreende-se que um jogo é um jogo e uma derrota, por mais pesada que ela seja, não pode significar o fim de nada, sobretudo no tão particular, delicado, sensível e imprevisível cenário que vive, hoje, o mundo, e naturalmente, o mundo do desporto e, neste caso particular, o mundo do futebol de alta competição.

Será que nos temos interrogado o suficiente sobre a invulgar quantidade de resultados absolutamente disparatados que o futebol tem vindo, nos últimos meses, a registar nas mais diferentes competições? Talvez não. E todos eles têm, pelo menos, um denominador comum: o demónio da pandemia, ou, se preferiram, este tempo de pandemónio. Não podemos, nem devemos, creio, ignorá-lo, por mais difícil que seja aceitar a derrota num jogo de futebol!

O meu querido e estimado amigo Vítor Manuel, o histórico treinador de futebol que o futebol se dá ao luxo de dispensar de qualquer atividade e quis o destino que se transformasse, em boa hora, num comentador televisivo de excelência, hoje, na equipa da BOLA TV, mas também na equipa deste jornal, chamou-lhe, um destes dias, autêntico relógio suíço, e creio que não podia ter sido mais feliz o modo como definiu o momento e a expressão do jogo do veterano João Moutinho, por junto e atacado, talvez o melhor jogador da seleção nacional nos curtos 20 minutos com a França e nos sábios 90 minutos com a Croácia.

Não posso, com franqueza, deixar de me incluir no lote dos que chegaram a dar João Moutinho acabado para estas andanças. Com a nossa fantástica mentalidade, talvez, em boa verdade, o tivéssemos dado como reformado logo assim que decidiu trocar o FC Porto pelo Mónaco, já lá vão mais de sete anos...

Mas agora que já completou 34 anos, e passou, entretanto, a mostrar-se capaz de jogar na alta rotação do campeonato inglês, João Moutinho está, como diz o meu amigo Vítor Manuel, absolutamente perfeito, porque sabe, melhor do que nunca, quando correr e quando parar, quando passar e quando reter, quando rematar e quando cruzar, quando avançar e quando ficar, quando apoiar e quando arriscar.

A Seleção ganhou, ultimamente, muito talento mas parece ter perdido, na realidade, aquele maestro que parece ter voltado a ser, e foi, agora, João Moutinho.
Saber, como todos bem sabemos, sempre Moutinho soube tudo; a diferença, hoje, não está em Moutinho saber fazer mais; está em saber fazer ainda melhor. Apura.
Como um bom vinho!