O negócio

OPINIÃO06.01.202305:30

Difícil antecipar que consequências pode ter para a equipa o que envolve Enzo Fernández

A PESAR de já ter tantos anos, continua a ser realmente muito discutível a designada janela de transferências de inverno, sobretudo pelos efeitos provocados nas equipas em plena competição. Claro que pode ver-se o copo meio cheio - as vantagens de qualquer equipa poder reajustar o plantel -, mas talvez, sobretudo, o copo meio vazio - o evidente prejuízo desportivo para as equipas dos clubes menos poderosos financeiramente.

Em Portugal, se a memória não me atraiçoa (e já vai atraiçoando…), as transferências de inverno remontam aos primeiros anos da década de 90 (lembro-me, por exemplo, de o FC Porto ter ido recrutar Drulovic ao Gil Vicente a meio do campeonato). Ficaram célebres as chegadas ao Sporting, em dezembro de 1999, de craques como André Cruz, César Prates e Mbo Mpenza, que viriam a ser decisivos para a conquista pelos leões do título de campeão nacional, que então lhes escapava há 19 anos. Como os benfiquistas não esquecerão, certamente, e também a título de exemplo, a chegada à Luz, a meio do campeonato, do pequeno craque que era Nuno Assis, com indiscutível impacto no título das águias, recuperado, em 2005, após dez anos de absoluto jejum.

Foi precisamente na década de 90 que a FIFA permitiu que o mercado de transferências de jogadores pudesse decorrer em duas fases, uma no verão, outra no inverno. Mas só na época de 2002/2003 a UEFA recomendou às federações europeias que regulamentassem as janelas para janeiro, e entre o final das temporadas e o último dia de agosto.

Vendo pelo prisma do copo meio cheio, claro que até as equipas menos poderosas financeiramente reconhecem o benefício de poderem, nesta altura do ano, ajustar os plantéis ao melhor dos interesses e dos objetivos; pelo copo meio vazio, pois claro que se sentirão prejudicadas quando se debatem com a perda de alguns dos mais valiosos jogadores.

O pior de tudo, a meu ver, tem a ver com a ética dos processos e com a alteração significativa das estruturas a meio das competições. No fundo, pode aplicar-se a velha máxima segundo a qual não devem mudar-se as regras a meio do jogo. Mal comparado, é o que faz o mercado de inverno relativamente à transferências e jogadores.

De momento, defendes a minha camisola; amanhã, és meu adversário, na mesma competição.

Lembro, aliás, que a UEFA permite desde 2018/2019, na sequência do mercado de inverno, a inscrição por equipa de um máximo de três jogadores nas suas competições, independentemente de nelas já terem jogado, na mesma época, por outros clubes. Ou seja: um jogador que se mude agora do Benfica para o Chelsea pode ainda vir a defrontar o Benfica na presente edição da Liga dos Campeões. 

O que está a suceder com o jovem argentino Enzo Fernández e com o Benfica expõe ainda outro tipo de questões: o impacto no resto da equipa, nas relações entre jogadores, na liderança do treinador, na estrutura psicológica e emocional de todos os que estão envolvidos em determinada organização desportiva.

Ou seja: não se trata de olhar apenas para o que todo um processo pode provocar no jogador diretamente envolvido; não deve tratar-se apenas, neste caso Benfica-Chelsea, do que pode afetar Enzo Fernández, mas do impacto que tudo isso pode ou não ter na equipa, seja na dos encarnados, seja noutra qualquer, sobretudo quando determinadas regras parecem ser violadas, e esse ataque ao mercado ameaça tornar-se uma novela.

Sem o louco, e legítimo, sublinhe-se, interesse do Chelsea, muito provavelmente o jovem Enzo Fernández não teria quebrado tão violentamente o regulamento disciplinar do Benfica, nem teria cometido a surpreendente e leviana atitude de viajar para a Argentina para celebrar a passagem do ano, sabendo que isso o levaria a faltar a dois treinos da equipa e, portanto, a assumir papel de inqualificável falta de profissionalismo.

O que significa que é o interesse de um clube e a possibilidade de se ver transferido para uma Liga mais importante e de melhorar significativamente o salário que mudaram, radicalmente, o comportamento de Enzo Fernández e a forma como os adeptos passaram certamente a olhá-lo.

Ontem, a maior joia e uma das mais queridas da Luz; hoje, olhado como alguém suficientemente perturbado para não merecer qualquer aplauso.

N caso de uma possível transferência como a que tem agitado a Luz e o médio argentino campeão do mundo, dois aspetos parecem-me poder ser negativamente cruciais, e ambos se verificam agora: o tempo que se arrasta o processo e a decisão de Chelsea e jogador estabelecerem um acordo mesmo sem qualquer base de entendimento entre Chelsea e Benfica.

É, por outro lado, inevitável que uma operação desta natureza desestabilize Enzo Fernández, perturbe a equipa do Benfica, agite os responsáveis encarnados. Sucede agora, na Luz, o que sucede evidentemente em qualquer outro clube, sobretudo no caso dos clubes mais vendedores, como são os grandes clubes portugueses relativamente ao mercado internacional.

Na última época, o caso no FC Porto do colombiano Luís Díaz, então melhor jogador da Liga portuguesa transferido em janeiro para o Liverpool, foi naturalmente perda irreparável para a equipa portista, jogador insubstituível, mas acabou, felizmente para os dragões, por não abalar decisivamente a estrutura desportiva azul e branca, que se tornou, ainda assim, capaz de vencer tudo o que tinha para vencer.

Em todo o caso, o processo de Luiz Díaz foi não apenas mais rápido como mais ético do ponto de vista do comportamento do clube comprador.

Agora, nas águias, e naturalmente impedido, por razões mais do que compreensíveis, de se permitir negociar o jogador abaixo dos 120 milhões de euros (mesmo que o negócio possa, eventualmente, vir a fechar-se por dinheiro mais jogadores), o presidente dos encarnados, Rui Costa, pode ter de se confrontar com a inevitabilidade (improvável, mas real) de Enzo Fernández ter de continuar a cumprir o seu contrato na Luz, se não se concluir a bem a forte intenção de o Chelsea contratar o melhor jovem jogador do recente Campeonato do Mundo.

Nesse sentido, tem na realidade o Benfica um líder com a sensibilidade de alguém que lidou, até no interior da própria cabeça, com quase todo o tipo de situações que motivam, mexem, se refletem, têm impacto e criam emoções (positivas ou angustiantes) na vida de um jogador profissional de futebol.

A humanidade, de cariz, aliás, até muito paternalista, como o treinador alemão Roger Schmidt expressou, ontem, a sua visão sobre o que tem envolvido Enzo Fernández, e mesmo o modo como falou da falha grave no comportamento do jogador, refletem bem a ideia de que se Enzo tiver de permanecer na Luz deverá encontrar espaço suficientemente confortável para recuperar emocionalmente e prosseguir a carreira que todos preveem brilhante.

Não é possível antecipar, porém, as consequências desportivas que este caso pode vir a ter para a equipa do Benfica, que deixou em Braga a preocupante sensação, para adeptos e responsáveis, seguramente, de estar a perder o fio à meada da liderança do campeonato.

E é exatamente quando casos destes provocam maiores abalos, sobretudo,  nas equipas menos poderosas dos países mais pobres, que mais se voltam a questionar as transferências no designado mercado de inverno e o mal que esse mercado de inverno pode, na verdade, fazer, no curto prazo, às competições (desequilibrando seriamente os concorrentes...), muito especialmente às equipas e em particular aos treinadores (que hoje trabalham cozido e amanhã se veem forçados a trabalhar assado...), em nome do impacto que todas essas jogadas têm no lado económico do futebol, nos movimentos financeiros e, sobretudo, nos lucros que geram.

É, no fundo, o negócio na sua melhor, e mais caprichosa, expressão!


PS: Pelé já era imortal antes de o definirmos como imortal. Mas mesmo os imortais merecem um último adeus do mundo dos vivos antes de partirem para o exclusivo reino dos imortais. Pudemos seguir pela televisão esse emocionante último adeus a Pelé, lembrando as palavras do poeta Carlos Drummond de Andrade, uma espécie de Pelé da palavra na cultura brasileira do século XX: «O difícil, o extraordinário, não é fazer mil golos, como Pelé. É fazer um golo como Pelé.» Definitivamente!