O expediente

OPINIÃO24.02.202305:30

Vejo-me a concordar com a ideia de se recorrer na Liga a árbitros estrangeiros

COMO a coisa está, creio que dificilmente lá irá de outra maneira que não seja com o recurso, pelo menos nalguns jogos, a árbitros estrangeiros. Sem demagogia. Ou haverá, no momento, já não digo melhor, outra solução? Não me parece, com franqueza. Ou a competição profissional de futebol pode continuar em Portugal a admitir erros tão grosseiros como os que acabaram, muito recentemente, de ser vistos? Não creio. Alguém apresenta ideias para melhorar o cenário? Pouco provável. A não ser baralhar e voltar a dar, para que tudo fique, afinal, na mesma.

Estarão os responsáveis do futebol profissional português à espera de quê? De se voltar a ver, por exemplo, outro inacreditável erro como o cometido no último FC Porto-Rio Ave? Pode a tecnologia não servir, afinal, para se assinalar aquele penálti, por tão evidente falta de Pepe sobre Boateng?

Já sabemos todos como haverá sempre decisões de interpretação, por situações mais ou menos subjetivas. Já sabemos todos que determinados lances suscitam diferentes opiniões, mesma numa sala familiar de três ou quatro pessoas. O que é penálti para mim, pode não ser para outro. O futebol é um jogo de contacto e o contacto entre duas pessoas não é sempre claro, evidente, objetivo, indiscutível. Quantas vezes vemos faltas assinaladas a meio-campo que não são, as mesmas faltas, assinaladas dentro da grande área? Quantas vezes em grandes penalidades como a conquistada (intencionalmente, creio não existirem dúvidas) pelo leão Paulinho em Chaves, para um árbitro é o jogador que provoca o contacto com o guarda-redes e, para outro, exatamente no mesmo tipo de lance, é o guarda-redes que provoca o contacto com o adversário.

O problema da interpretação vai existir sempre. E o erro também, como é evidente. É preciso que todos saibam conviver com isso, porque o futebol é um jogo, jogado por muita gente, com muito encontro físico, muito duelo, muito salto, muita rotação, muito ombro a ombro, muita correria, escorregadela, imprecisão. Mas conviver com isso não pode significar conviver com o erro como o erro de avaliação cometido sobretudo pelo árbitro VAR do recente FC Porto-Rio Ave (Luís Ferreira) por não poder tratar-se de interpretação. Trata-se apenas de incompetência, negligência grave, decisão inaceitável, «erro mais grosseiro» desde que existe videoarbitragem, como foi considerado por alguns especialistas, antigos árbitros e outros analistas.  

No futebol, não é a arbitragem que é um problema no nosso país. A arbitragem é um problema em qualquer país. Vai ser sempre um problema, porque é fácil contestar e criticar os árbitros, ignorar a coragem que é preciso ter para se ser árbitro, e justificar muitos dos insucessos da equipa de cada um com os erros dos árbitros. Em Portugal, o problema não é, repito, a arbitragem. O problema é a ação de alguns árbitros, a dualidade de critério usado, a negligência inaceitável, a incoerência dos responsáveis pelas nomeações, o silêncio desses responsáveis diante de erros tão graves, tão evidentes e tão desoladores como o cometido no Estádio do Dragão, capazes de indignar, afinal, o elemento mais importante do futebol, que é o adepto, exceção feita ao adepto (sobretudo ao adepto mais fanático) do clube beneficiado com o erro.

Destruindo a relação do adepto com o futebol, faz-se mal ao adepto, mas faz-se muito mal, sobretudo, ao futebol. É por isso que se exige transparência, para dar confiança ao adepto naquilo que vê, na nomeação que é feita, no critério usado, até no tipo de erro que se comete. É por isso que a arbitragem e a disciplina, como pilares mais importantes de qualquer competição, não podem deixar de respirar ar indubitavelmente saudável. Sem transparência, com menos critério e em silêncio, numa espécie de pacto do diabo entre os principais responsáveis, o adepto, legitimamente, questiona: terão medo de quê?

A condenação, em tribunal, por crime de corrupção ativa, do ex-responsável pela área jurídica da SAD do Benfica, não pode deixar de merecer reflexão. Dos dirigentes e demais responsáveis que se movem no desporto profissional, em particular na indústria do futebol, mas também de todos os que, de algum modo, assumem responsabilidades em diferentes áreas da nossa vida. Não sei, nem posso saber, o que darão os recursos a partir de agora certamente interpostos pelo condenado. Tem direito a eles. Mas há, pelo menos, um tribunal que dá como provada, já, a corrupção. E isso é grave. Ao dar, nesta primeira instância, como provados esses factos (mesmo tendo absolvido o advogado de todos os restantes, e eram muitos, de que estava também acusado), o tribunal condenou Paulo Gonçalves a dois anos e meio de prisão com pena suspensa, e isso reflete bem quão grave, na realidade, é considerado o ato que o tribunal deu como provadamente cometido.

Num homem de Direito (no caso, advogado) como é Paulo Gonçalves, o crime provado de corrupção ativa em plena atividade num lugar de responsabilidade no Benfica, devia ser suficiente para o ver definitivamente afastado, já não digo do exercício da profissão, mas, no mínimo, de qualquer atividade que se prendesse com a indústria do desporto profissional, onde Paulo Gonçalves, um advogado de 53 anos, se move desde 1997, ano em que passou a estar ligado como jurista, ao FC Porto, de onde saiu em 1999, para ingressar em 2000 no Boavista, onde permaneceu até 2006, até chegar à Luz, no ano seguinte, pela mão de José Veiga, o antigo diretor-geral do Benfica, que fez percurso, em tudo, semelhante ao de Gonçalves (primeiro FC Porto, depois Boavista, finalmente Benfica, tendo José Veiga tido igualmente forte colaboração com o Sporting, sobretudo nos anos dos títulos de 2000 e 2002).

A condenação de Paulo Gonçalves deve, ainda, creio, servir de exemplo para todos os que continuam fiéis a um certo estilo de vida e a velhas práticas, tão próprias, na verdade, de uma certa cultura portuguesa semeada e produzida no pós-25 de abril, como o tráfico de influências (criminalizado no nosso país apenas na década de 90, imagine-se), o abuso de poder, a cunha ou os famosos jobs for the boys, que tanto tem minado, nas últimas décadas, a administração pública, mas também alguma despudorada relação entre o público e o privado.

Em Portugal, recordo, o futebol serviu (servirá ainda?) e serviu-se muito dessa culturazinha reprovável, e sobretudo nas décadas de 80 e 90, sobretudo nessas, a escola parece ter produzido mestres suficientes para ganhar dimensão, colegiais, executivos e muitos adeptos. O tráfico de influências, o abuso do poder, o domínio pela chantagem e pela agressividade, a pressão pelo meio financeiro, a cultura do favor, a manipulação, a violação sistemática da ética, a prática imoral, sem vergonha, indigna e ilegal, pode parecer excessivo, mas era muito o retrato de algumas áreas da vida portuguesa nas particulares décadas de 80 e 90 (mas não apenas), muito especialmente no futebol, que haveria de se tornar numa indústria financeiramente cada vez mais poderosa, e onde ganhar (a qualquer preço e a qualquer custo) passou a ser absolutamente decisivo para a criação, progressiva, de maior poder, domínio e influência.

O que me parece que fica, pois, inevitavelmente, é a ideia de que o caso de Paulo Gonçalves, indiscutivelmente grave à luz desta condenação (pior ainda por se tratar de um advogado que corrompe um funcionário judicial!!!) quanto mais não seja pela simples prática ou mera conduta, é apenas um de entre muitos. Não se tratará, no caso, como noutros, de ver o justo pagar pelo pecador, mas, sim, de se ver um a pagar, talvez, por tantos outros pecadores. E isso também não pode deixar de nos fazer refletir. Já na década de 80, creio que era o humorista brasileiro Agildo Ribeiro (se a memória não me atraiçoa) que, num dos seus famosos sketches, perguntava: «Mas sou só eu? Cadê os outros?!»

JULIAN NAGELSMANN, treinador do Bayern, explodiu contra o árbitro do jogo da Liga alemã, que perdeu com o Monchengladbach, do benfiquista Weigl. «Escumalha lavada com amaciador», disse o treinador latino-alemão do árbitro da partida, Tobias Welz. Como se vê, não é apenas em Portugal que no futebol se pisa grosseiramente o risco ou se ultrapassa, como foi o caso, todas as marcas.

Mas há uma diferença substancial: na Alemanha, não se aplicam multas de centenas de euros nem se usam expedientes (sim, expedientes) para conseguir por linhas tortas o que não se consegue a direito. Na Alemanha, como em Inglaterra, na cultura séria de uma indústria e de um espetáculo desportivo como é hoje o futebol profissional ao mais alto nível, dá-se verdadeiro músculo às regras, à ética, às boas práticas e condutas, não se esconde o gato e muito menos se deixa o rabo de fora.

Nagelsmann não apenas se viu forçado a pedir publicamente desculpas, como se viu multado em 50 mil euros! Quem os paga, não sei. Nem me parece importante. Importante é a multa: 50 mil euros! Tenho a certeza que dói. Mas não dói, certamente, ao engenheiro Luís Gonçalves, do FC Porto. Pelos insultos, paga dez por cento. É barato!