Minuto 62 do meu amor

OPINIÃO01.03.202205:30

Ao minuto 62, já com o resultado feito, aquele jogo deixou de ser sobre vencedores e derrotados. Passou a ser sobre civilização ou barbárie

PARABÉNS ao Sport Lisboa e Benfica. As minhas palavras chegam atrasadas, ao contrário do presente de aniversário, que foi entregue a todos - jogadores, dirigentes, sócios e adeptos - na véspera. Por uma vez, o presente de aniversário foi inclusivamente partilhado com todos os outros adeptos. Parece impossível, mas aconteceu. É verdade que foi preciso a Rússia invadir um estado soberano europeu e iniciar uma guerra para que algo assim acontecesse no futebol português, mas não deixemos que isso reduza a dimensão do momento vivido ontem.

O minuto 62 do jogo frente ao Vitória de Guimarães foi o mais visto da equipa do Benfica - talvez de qualquer equipa e de qualquer modalidade em Portugal - em muito tempo. A extraordinária jogada de laboratório, que não chegou a envolver a bola mas tem tudo a ver com esta, correu o mundo inteiro e acaba por mostrar muito daquilo que orgulha os benfiquistas acerca do seu clube tanto na vitória como na derrota, desde que uma certa ideia de grandeza esteja lá e se manifeste de alguma forma. Podia ter acontecido noutro estádio? Podia, claro, mas não aconteceu. É caso para dizer, hoje ainda mais do que noutros dias: somos do Benfica e isso nos envaidece. Mas ontem conseguiu-se o impensável: por um brevíssimo momento sentiu-se que éramos todos, até os adeptos de outras equipas, um bocadinho benfiquistas, e todos ucranianos por afinidade.
 

Roman Yaremchuk, avançado ucraniano, emocionou-se quando recebeu a braçadeira de Vertonghen e aplauso sentido de todo o estádio, aos 62 minutos do jogo com o V.Guimarães


A surpresa de Yaremchuk, nascido em Lviv, no momento em que a braçadeira lhe é colocada no braço, a reação do público a apoiar fervorosamente um dos seus, ou a comoção inevitável que se seguiu, são recordações que guardaremos daquele fim de tarde, muito mais do que os golos, a exibição ou o resultado final. Certo, tudo isso foi bastante satisfatório e até animador já depois da boa demonstração de atitude frente ao Ajax, mas, ao minuto 62, já com o resultado feito, aquele jogo deixou de ser sobre vencedores e derrotados. Passou a ser sobre civilização ou barbárie.

Não houve nenhum novo amanhecer nem a minha fé na humanidade registou grandes progressos por causa disto, mas que uma modalidade tão mal tratada em Portugal por alguns dos seus intervenientes possa proporcionar um momento como o de ontem é ainda assim algo que deve ser celebrado. É bom ver que há motivos para sorrir para lá do futebol tantas vezes pobre da nossa liga, e muito longe dos défices de civilidade ou das manifestações de selvajaria que o nosso sistema desportivo de punições parece quase sempre premiar. Saber ganhar, saber perder ou saber simplesmente estar são qualidades que há muito se tornaram raras no nosso futebol. Bem sei que esta última semana da Europa não tem nada a ver com o futebol português, mas, como todos os problemas grandes e reais que o mundo tende a enfrentar, este também tem o condão de reduzir as nossas guerrinhas metafóricas à sua insignificância, tornando os problemas de primeiro mundo que diariamente nos apoquentam ainda mais ridículos do que já eram.

Vem tudo isto também a propósito de um outro reencontro recente com tudo aquilo que aprecio no futebol e nada do que me incomoda. Aconteceu enquanto lia Campo dos Bargos, um conjunto de textos da autoria de Jorge Reis-Sá publicado na coleção Retratos da Fundação, da Fundação Francisco Manuel dos Santos. Ao longo de 120 páginas, o autor narra as maravilhosas histórias de uma outra vivência clubística, a do fervoroso e romântico sócio 286 do Vila Nova, Famalicão para os restantes. O subtítulo O futebol ou a recuperação semanal da infância recupera a expressão feliz do escritor espanhol Javier Marías usada para descrever a capacidade de, semanalmente, nos esquecermos das responsabilidades e, digo eu, de todos os artificialismos que só estragam este jogo, e voltarmos ao essencial da paixão pela bola. Mas o que mais me agrada neste livro é o modo como Jorge Reis-Sá consegue falar sobre o futebol pelo qual todos nos apaixonámos sem nunca rejeitar o futebol que hoje temos. A sua capacidade para elencar os super-heróis e os vilões, as grandes tardes de futebol e as tardes que só nós recordaremos, os familiares ou amigos a quem tanto devemos no nosso amor pela modalidade, as histórias vividas no estádio, as rivalidades que saudavelmente se levam para a vida, tudo isto contado na exata medida de um amor genuíno e límpido pelo futebol.  

O pior aconteceu quando cheguei ao fim do livro. Estava eu imbuído de romantismo e amor pelo jogo a fazer o que faço nestas alturas - rever lances do Aimar no YouTube - quando alguém decidiu partilhar comigo as declarações de um até então dirigente da Associação de Futebol de Lisboa. Não vale a pena citar as declarações, que já toda a gente terá lido entretanto ou as ouviu em tabernas deste país. Não fosse a incontinência verbal do sujeito nas redes sociais e este continuaria a desempenhar o cargo, o que desde logo dá que pensar acerca do modo como os cargos de tutela da modalidade são preenchidos.

A demissão do senhor chegaria poucas horas depois de mais uma exaustiva investigação conduzida por pessoas com ligação à internet, sem qualquer ligação às entidades competentes. Parece-me que se demitiu não tanto por reconhecer a gravidade das suas afirmações ou por ter violado um código de conduta (se é que existe), mas tão simplesmente porque foi apanhado. Teria mais piada se o nosso futebol não fosse tantas vezes assim.
Não é por isso nada fácil recuperar semanalmente a infância e não estou certo, como estava há uns anos quando li as crónicas de Javier Marías, que seja sequer possível. Mas sei que eu e muitos outros lá estaremos na próxima semana, disponíveis para voltar a tentar, à procura dos momentos que nos fazem sorrir e que fazem de tudo isto aquilo que é - muito mais do que um jogo - até que a morte nos separe.