Memória

OPINIÃO30.04.202107:00

Noutros tempos, tudo ficava impune. Mas agora não pode, nem deve. Ou será ainda mais triste!

JÁ muito foi escrito e dito sobre o que aconteceu em Moreira de Cónegos, na noite de segunda-feira, depois de terminado o Moreirense-FC Porto. Horas de comentários nas televisões e nas rádios e milhares de palavras escritas nos jornais e nas redes sociais.
Discute-se a maior ou menor ligação do acusado, o empresário Pedro Pinho, ao FC Porto, comentam-se as suas relações com os responsáveis portistas, questiona-se o que fazia o empresário no estádio e porque foi notado sempre na companhia de elementos da comitiva azul e branca.
Especula-se ainda sobre o que poderá ter levado Pinho a fazer o que se percebe pelas imagens que fez mesmo e, ainda, o que pode, na verdade, ter ou não ter visto o presidente do FC  Porto (e ele, naturalmente, já veio publicamente dizer que nada viu), e se Vítor Baía, agora vice-presidente dos portistas e também administrador da SAD azul e branca, foi realmente em socorro do jornalista/repórter de imagem da TVI ou se, ao dizer «Pedro... Pedro...», como todos ouvimos, quis apenas, delicadamente, chamar a atenção do alegado agressor e levá-lo, sem qualquer esforço, a parar de incomodar o profissional (jornalista/repórter de imagem) da TVI.

MAS, afinal, já nos teremos perguntado, também, por que razão se dirigiram aos dois jornalistas/repórteres de imagem o presidente do FC Porto (acompanhado pelo que se presume ser um segurança) e o empresário Pedro Pinho? Não nos parecerá estranha a razão de tal atitude?
Quereriam apenas cumprimentá-los, perguntar-lhes as horas, discutir o estado do tempo ou procurar novidades?
Ou quereriam intimidá-los, silenciá-los, forçá-los a desligar as câmaras, como pareceu, pelo que se vê nas imagens divulgadas, impedindo-os de trabalhar?
E porque quereriam fazê-lo? Apenas por estarem furiosos com o que se passara no jogo? Por mero capricho? Para que não fosse mostrado algo que os responsáveis do FC Porto, porventura, não quereriam que se visse? 

DO presidente do FC Porto, há muito que nada me admira, apesar, paradoxalmente, de me ter admirado, tenho de o confessar, vê-lo, ele mesmo, em carne e osso, a dirigir-se estranhamente, e com um olhar aparentemente estranho, a um repórter de imagem (que talvez o presidente do FC Porto nem reconheça como sendo jornalista), quando já muitos o julgariam absolutamente reformado de um certo estilo de comportamento. Afinal, o presidente do FC Porto ainda é capaz de nos surpreender.
Reconheço-lhe, ao presidente do FC Porto, evidentemente, o talento, o mérito desportivo, o conhecimento, o dom da oratória, até a famosa e refinada ironia, e esses serão predicados, seguramente, reconhecidos pela maioria dos que seguem o futebol, mesmo pelos mais fortes críticos ou apaixonados adversários.
Mas, falando apenas do que testemunhei sobre o percurso do presidente do FC Porto, lembrar-me-ei sempre do olhar intimidatório, da voz grossa e autoritária quando exibia (ou abusava de) uma certa ideia de poder e de lhe ver estalar o verniz quando as coisas não corriam como desejava, sobretudo nos mais duros tempos das décadas de 80 e 90, quando o futebol português viveu, talvez, alguns dos mais tristes episódios de que haverá memória…

CLARO que, como grande líder, também o presidente do FC Porto passou a vida rodeado de gente capaz de lhe fazer todos os fretes e mais algum, sobretudo os mais exigentes e arriscados, e por isso nem sempre, ou quase nunca, se expunha quando se tratava de intimidar ou humilhar jornalistas, e muito menos quando se tratava de os agredir, fosse verbal, fosse mesmo fisicamente.
Coagir, pressionar, agredir e humilhar jornalistas foi, durante anos, tarefa preferida de muita dessa gente, espécie de homens do presidente capazes de tudo para fazer valer a sua lei ou, simplesmente, para agradar ao Poder.
Sei muito bem do que estou a falar, e o presidente do FC Porto também deverá saber muito bem que eu sei muito bem do que estou a falar!...

OS tempos são, agora, outros e por isso talvez julgássemos, no mínimo, muito improvável voltar a ver o que vimos na noite de segunda-feira, mesmo continuando a assistir ao que temos assistido nalguns relvados - e voltámos a assistir no relvado do Moreirense, logo após o final do jogo… - e mesmo que alguns queiram comparar o incomparável, trazendo para cima da mesa (lamentáveis e condenáveis, de igual modo, naturalmente) conflitos entre adeptos ou violência entre claques, como se o que se viu em Moreira de Cónegos possa ser visto à mesma luz.
Não pode, nem deve!

QUANTO a Pedro Pinho, filho de um antigo grande dirigente do Rio Ave, o outrora presidente José Maria Pinho, deu-se a conhecer ao País da forma mais chocante quando o País nem estaria nada interessado em conhecê-lo.
Provavelmente, aprendeu com maus exemplos a estar no futebol. Mas a Justiça que faça o seu trabalho, sendo certo que a particular agressão a um jornalista é uma agressão ao jornalismo, à Democracia e ao País.
O que todos esperamos é que não se deixe impune o que não pode, nem deve, deixar-se ficar impune.
Todos nos lembramos como, já no final de fevereiro, foi denunciado pelo Sindicato dos Jornalistas (SJ) a «humilhação» e os «insultos» a um jornalista, em plena sala de imprensa do Estádio do Dragão, no fim do FC Porto-Sporting da Liga portuguesa.
Naquela altura, o comunicado tornado público pelo SJ não podia ser mais claro e acusava: «O jornalista em causa foi humilhado pelo treinador do Futebol Clube do Porto e insultado pelo assessor de comunicação do mesmo clube. Após este episódio (…), o jornalista tinha à sua espera um outro funcionário do clube, que continuou com os insultos. Já no exterior da zona destinada à imprensa, encontravam-se vários elementos da estrutura portista e os insultos prosseguiram. O jornalista foi ainda perseguido por um assessor, ao longo de vários metros, sempre sendo alvo de agressões verbais.»
Durante anos, vi, senti e fui, também eu, vítima de muita dessa pressão, humilhação e agressão e sempre com gente, mais ou menos responsável, do FC Porto, num tempo em que nem valia a pena apresentar queixa.
Ao mesmo nível, nunca o vivi em nenhum outro clube, apesar dos problemas (em muitíssimo menor escala e nada comparáveis, sublinho) com alguns antigos presidentes de clube, como foi o caso com Pimenta Machado, à época líder do V. Guimarães, com quem mantive, depois, franca, cordial e muito respeitadora relação, ou com Jorge de Brito, à época presidente do Benfica, que veio nobremente a reconhecer ter estado mal e com quem pude voltar a ter normal relação profissional e até admiração pessoal.
Naqueles tempos, tudo ficava impune. Espero que não seja, agora, o caso. Ou será ainda mais triste!

DEPOIS das lamentáveis cenas no final do Moreirense-FC Porto, com Sérgio Conceição, mais uma vez de cabeça perdida, e a surpreendente fúria revelada pelo assessor de imprensa Rui Cerqueira, tudo contra o árbitro Hugo Miguel, só mesmo a infame agressão a um jornalista/repórter de imagem poderia tornar-se pior. Com tudo isso, conseguiu o FC Porto o hara-kiri - e em vez de se discutir, só, o lamentável e, no mínimo, difícil de compreender, erro em pelo menos um lance para grande penalidade a favor do campeão nacional (o claro derrube de Francisco Conceição), o debate virou-se para o que se viveu fora do jogo.
É assim que o futebol português se mostra à Europa, mas não pode ser assim que o futebol português cuida do que é seu, nem pode ser assim que a Justiça desportiva, mas também o País e a Democracia da República, podem continuar a olhar para o que se passa, por vezes, no futebol, como se no futebol pudesse ser permitido o que a Justiça condena na sociedade.
O tempo, no futebol, não pode voltar para trás, e muito menos para a tal cultura portista de outros tempos (nas décadas de 80 e 90), que tanto fez sofrer, por exemplo, muitos jornalistas de A BOLA.
Nós temos memória!

PS - 1. O FCP foi  altamente penalizado no campo do Moreirense pela incompetência do videoárbitro. 2. Um repórter de imagem é tão jornalista como eu, mas por julgar que nem toda a gente o saberá, deixo-o claro. E é do mais essencial que o jornalismo tem.