João Félix é a encruzilhada

OPINIÃO08.08.202306:30

Espero que o seu futebol volte a vingar, o dele e o de todos os artistas levados na corrente de um futebol demasiado refém da disciplina

Ofutebol tal como a minha geração o conheceu parece muitas vezes ligado à máquina. Entre o dinheiro árabe e todo o outro dinheiro concentrado em poucos clubes ou proprietários, a nossa desordem de atenção à mercê dos múltiplos dispositivos eletrónicos, e o primado do atleticismo sobre qualquer outra condição de elegibilidade para a prática da modalidade, o futebol vai-se esvaindo. Há seguramente mais adeptos hoje a ver resumos da carreira de jogadores e vídeos com os melhores lances de um jogo do que partidas completas. Nunca houve tanto ódio transmitido diretamente aos atletas e demais protagonistas da modalidade. 

A principal função do futebol pelo qual me entusiasmei originalmente não é propriamente moralizar, nem educar, nem criar postos de trabalho ou desenvolver indústrias, ou seja lá qual dessas máximas diplomáticas for. A principal função do futebol é entreter e apaixonar as massas, mas hoje discute-se com mais entusiasmo a indumentária de um jogador ou a folha salarial de um clube do que o cabrito que alguém fez a um adversário. Pode ser só um caso de envelhecimento do tipo que escreve estes textos, mas quanto mais vejo mais me parece que o futebol se vai perdendo ou simplesmente deixando contaminar por novas dimensões do jogo, quase todas externas ao que acontece dentro do campo.
 
No entretanto, a relação dos atletas com este desporto, que é cada vez mais o seu trabalho e não um chamamento poético, transforma-se a cada dia que passa. Não é difícil ver que a psicografia e o ADN cultural dos jovens atletas, por muito atletas que o futebol queira que eles sejam, vulgo o seu comportamento fora de campo, torna estes futebolistas seres diferentes dos que vimos crescer antes deles, situados numa encruzilhada entre um futebol que continua a crescer com o intuito de se levar e ser levado a sério enquanto instrumento de capital, poder e influência, e a cada vez mais secundária paixão de adeptos comuns, essa que em muitos casos não saiu da rua onde aprendemos a jogar. As marcas desportivas e quem mais patrocina o jogo bem tentam tornar tudo isto uma coisa mais romântica e explicar-nos que não, que, ao contrário do que a nossa experiência humana nos diz, o futebol não está pior nem perdeu a sua essência.

João Félix, 23 anos, leva três épocas e meia no Atl. Madrid (131 jogos e 34 golos). Na imagem, Félix em Orlando (EUA), nestas últimas férias, antes de um ‘jogo de estrelas’


Digo tudo isto a propósito de um jogador que tem as melhores coisas do futebol nos seus pés, mas que não parece feito para este tempo. É complicado. Por um lado, o lado mais analítico obriga-nos a olhar para a carreira de João Félix desde que saiu do Benfica, onde encontramos mais dúvidas do que certezas. Apesar de ter sido campeão na primeira época, Félix nunca pareceu beneficiar da ideia de jogo de Simeone, ainda que outros jogadores virtuosos tenham sabido crescer com o treinador argentino e encontrado o seu espaço.
 
João Félix nunca conseguiu ser o trabalhador incansável que passa mais tempo a defender num bloco compacto do que a massacrar o adversário no seu último terço. Isso faz dele pior jogador? Depende da perspetiva. Foi aparecendo a espaços e em cada um desses momentos parecia um raio de luz após semanas de céu encoberto, mas pareceu quase sempre um corpo estranho, até para os colegas, a maioria deles convertidos ao cholismo. É perfeitamente compreensível que se tenha fartado dessa expectativa. O sacrifício pedido a um jogador do Atlético tende a sacrificar o futebol de João Félix.
 
4 anos depois, confesso que ainda não percebi o que é que o rapaz viu no clube que o contratou, e suspeito que ele próprio não saberá explicar muito bem. Este último aspecto é da maior importância, porque a ligação contratual à entidade patronal distingue hoje João Félix de todos os outros futebolistas do planeta. Ninguém que tenha custado 126 milhões está atualmente sem clube para a próxima época. Mas eu tenho uma leve suspeita que o berbicacho em que João Félix se meteu é maior do que isso. Tem mesmo que ver com o seu futebol, feito de aparições e desaparecimentos súbitos, pequenos milagres futebolísticos num jogo tantas vezes atordoado e agrilhoado por imperativos táticos. Mas, se é verdade que João Félix conseguiu mostrar o seu melhor futebol em muito tempo num Chelsea em crise, fê-lo de uma forma inconstante que não sobreviverá numa discussão sobre o valor dos seus direitos desportivos. Paradoxalmente, deve ser dos futebolistas que a maioria dos adeptos do Chelsea mais desejariam ver jogar em Londres.
 
João Félix é um futebolista que tem tudo o que nos apaixona na ponta das chuteiras, mas não parece absolutamente talhado para o futebol atual e muito menos para um futebol analisado com softwares. Não será só da tática, mas também da cabeça dele. É um indisciplinado numa altura em que já ninguém parece ter grande paciência para os indisciplinados, apesar de os mesmos queixosos muitas vezes suspirarem quase sempre pelo futebol dos indisciplinados. Eu próprio irrito-me com o João Félix ao mesmo tempo que lhe reconheço genialidade e importância suficiente para escrever aqui sobre ele. 

Quase todos os números da carreira de João Félix, do valor do seu passe aos indicadores de jogo mais objetivos, dizem que a sua carreira permanece por cumprir. A atitude nem sempre parece a mais convincente. Os seus interesses parecem estar muito para lá do futebol, o que dificilmente torna um futebolista português de 23 anos alguém mais palatável para um adepto português tendencialmente conservador nos costumes. É complicado. João Félix parece muitas vezes ser um miúdo que gosta muito mais da vida que leva do que do trabalho que essa vida custa a conquistar. É complicado, mas talvez nos falte empatia. Chegou muito depressa ao topo e foi triturado pela realidade. Apesar de tudo isto, esta descrença imposta pela frieza dos números e pela nossa obsessão em transformar todos os futebolistas num atleta saído do mesmo molde, mesmo quando estes são mais artistas do que atletas, ainda assim, essa descrença é suspensa de cada vez que este miúdo toca na bola.
 
Parte do problema estará em João Félix, certo. Mas grande parte do problema está na nossa exigência e num certo cholismo que nos tolda a visão do jogo. Acho que já gostámos todos mais de um futebol sem regras que é espécie em vias de extinção. João Félix é um espécime raro. É uma encruzilhada e nós estamos todos lá com ele. Espero sinceramente que o seu futebol volte a vingar, o dele e o de todos os artistas levados na corrente de um futebol excessivamente refém da disciplina. Espero que resulte, por ele e por nós, seja onde for, no Barcelona, no Benfica ou até no Al Hilal. O futebol precisa de mais artistas e de menos relatórios de scouting imaculados. Sei que esta reivindicação não será satisfeita, mas que se lixe. Passem a bola ao João.