Há erros e erros!

OPINIÃO11.02.202206:00

A ‘bolha’ dos árbitros é, no futebol de hoje, cada vez mais difícil de compreender

ACHO, no mínimo, estranho, diria mesmo, curiosamente estranho, ler ou ouvir dizer que as equipas de futebol terão sempre obrigação de superar os erros dos árbitros (estejam eles no campo ou, como é agora o caso, diante de ecrãs), sobretudo, pelos vistos, as grandes equipas; até parece que por serem grandes, e por terem, alegada ou mesmo objetivamente, jogadores de maior qualidade, e por terem mais responsabilidade, as melhores equipas têm sempre a obrigação de ganhar e de resolver os seus problemas sem poderem ou deverem queixar-se dos erros dos árbitros. Mas não faz sentido.
Há, naturalmente, erros e erros. Há erros mais graves do que outros. Mas é preciso assumir-se (e todos o devem assumir) que há erros de arbitragem com influência muito direta no resultado dos jogos, e que esses erros não podem, simplesmente, ser varridos para debaixo do tapete sem qualquer responsabilidade, como se a arbitragem fosse a única classe, dentro do jogo, intocável.
Vem isto a propósito, ainda, das declarações do presidente do Benfica, após a derrota, na Luz, com o Gil Vicente. Já se esperava que Rui Costa fosse alvo de processo disciplinar por denúncia do sindicato dos árbitros (a APAF) por ter dito o que disse. É sempre assim. Criticam-se dirigentes, treinadores, jogadores. Mas criticar-se os árbitros? Nem pensar!

Deve ter-se cuidado com a linguagem, naturalmente, e, sobretudo, não pode admitir-se ou tolerar-se o que tantas vezes vemos nos campos de futebol, com treinadores e dirigentes a dirigirem-se aos árbitros de forma inaceitavelmente agressiva e até grosseiramente ofensiva, como é, todos o sabem (cito apenas exemplo mais flagrante) um comportamento frequente (e historicamente indesmentível) na cultura do FC Porto.
Oque o presidente das águias fez, agora, foi enunciar um número concreto de decisões de arbitragem (cinco) que, no entender dele (e também no meu, devo dizer) se constituíram como erros graves que muito prejudicaram o Benfica. Na verdade, creio que vale a pena recordar que o especialista e experiente Duarte Gomes (ex-árbitro internacional e hoje comentador) considerou que dos cinco lances referidos por Rui Costa, quatro penalizaram claramente o Benfica, e só num dos casos (jogo das águias no Estoril) Duarte Gomes não dá razão ao lamento benfiquista. Não é 5-0, mas é, para Duarte Gomes, 4-1. Já deve ter o seu peso!

O que estará verdadeiramente em causa é a ideia, que se generaliza, perigosamente, a meu ver, de não poder apontar-se o dedo aos árbitros. Atribui-se, neste caso, à crítica feita pelos responsáveis dos clubes, uma desculpa de mau pagador. Ou seja, se o Benfica se queixa (e cito o caso do Benfica porque me parece, na verdade, esta época, um caso de evidente prejuízo, como o FC Porto foi, creio, claramente prejudicado, especialmente na parte decisiva do campeonato passado!) é porque procura justificar com os erros dos outros estar a jogar menos do que devia e não ser capaz de chegar ao resultado que, porventura, se exigia.
Mas uma coisa é não poder, nem dever, o clube da Luz atirar para os erros dos árbitros a responsabilidade pelo insuficiente rendimento; outra, muito diferente, é querer-se ignorar o efeito dos graves erros de arbitragem na situação da equipa. Nem oito, nem oitenta!

A equipa do Benfica tem vindo, em muitos jogos, a jogar realmente menos do que devia, mas os graves erros de arbitragem também têm contribuído para mais a afundar. São erros a mais? Serão, sobretudo, erros graves a mais.

NÃO são os erros de arbitragem, evidentemente, um exclusivo do futebol português. E não podemos pretender que deixem de existir, porque é humanamente impossível. O que devemos é defender a responsabilidade e a responsabilização sobretudo agora que os árbitros são profissionais e podem recorrer ao uso da tecnologia para melhor servirem o jogo. Porque é disso que se trata: servir o jogo!
Recordo, aliás, o que ainda recentemente sucedeu em Itália, por exemplo, num Milan-Spezia (com todo o respeito, uma espécie de Benfica-Gil Vicente lá do sítio…), quando o árbitro, já bem perto do final do jogo, impediu um golo (limpo, legal e legítimo) dos milaneses, simplesmente por não ter dado, imagine-se, a indispensável, exigida e natural lei da vantagem: um jogador do Milan sofreu realmente falta à entrada da área do Spezia, mas a bola sobrou imediatamente para um companheiro que, com um remate de primeira, fez um belíssimo golo, que colocaria o Milan em vantagem (2-1).

AO apitar, o árbitro fez curto-circuito no lance; interrompeu-o e obrigou à marcação do respetivo livre a castigar o Spezia, evitando assim que o Milan chegasse, sublinho, à vantagem, a poucos instantes do final do encontro, ficando, pois, em muito favorável situação para o vencer.
Do livre nada resultou de bom para o Milan, e, muito pior do que isso, meia dúzia de segundos depois, no último ataque do jogo, o Spezia fez o 1-2, vencendo o jogo, quando os jogadores do Milan, incrédulos, ainda tentavam perceber como tinha sido possível o árbitro cometer o (grave) erro que cometeu. Resta acrescentar que o próprio árbitro deste Milan-Spezia pediu imediatamente desculpa aos jogadores, e público da casa, pelo erro com que acabou por penalizar a equipa milanesa, mas a verdade é que, em vez dos muito prováveis três pontos, o Milan fechou o jogo sem qualquer ponto.
No fim da época, o Milan pode perder o campeonato por dois pontos de diferença. Faz parte do futebol. Mas deve ignorar-se o peso que teve aquela decisão do árbitro? Não! Os erros dos árbitros também podem justificar maus resultados. É preciso assumi-lo com clareza e responsabilizar os árbitros sem complexos.

HÁ muito ainda, infelizmente, quem insista em ver o jogo como uma espécie de algo que se programa, como um computador. Se a equipa tem melhores jogadores, como não ganha? Se o clube é maior, como não é o primeiro? Se paga mais, como não chega ao título? E se investe mais, como pode queixar-se do árbitro?
Mas o futebol não é isso. O futebol não é algo que se programe. Claro que as melhores equipas ganham mais vezes, claro que quem melhor paga mais possibilidades tem de sucesso, claro que quanto mais rico é o clube melhores jogadores poderá ter.

Mas o jogo será sempre um jogo. Cheio de equações e imprevisibilidades, carregado de fatores aleatórios, dependente de múltiplas ações e interações. O futebol é realmente um jogo único, tão único (e por isso tem o poder que tem) que acaba por ser, muito provavelmente, o único jogo coletivo capaz de levar os mais fracos a conseguir, também, ganhar.
Um jogo de futebol depende verdadeiramente de muitos acontecimentos e de muitos momentos, de muitas decisões e opções. Depende de julgamentos. E, naturalmente, de erros, de treinadores, jogadores e árbitros. Uns mais decisivos do que outros.

Mas agora que o jogo está tão diferente, tão mais rápido, tão mais físico e tão mais atlético, e o futebol tão mais industrializado, tão mais capitalista e tão mais financeiramente exigente, e agora que se combate como nunca a falta de transparência, não estará também na hora de tornar tudo mais claro ainda em relação ao jogo e revelar as comunicações entre árbitros e levá-los a falar do seu próprio trabalho, das decisões que tomam e dos erros que cometem?

PS: Joga-se esta noite, no Estádio do Dragão (o mais elegante dos estádios portugueses), um FC Porto-Sporting que opõe líder e vice-líder da Liga, as duas melhores e mais fortes equipas do momento. São as que jogam melhor, as mais agressivas, as mais ligadas e coesas, as mais competitivas, no sentido em que procuram sempre ter o jogo na mão e no sentido em que parecem jogar cada lance como se fosse o último.
São também as que têm os artistas em melhor forma (mesmo sem Luis Díaz nos dragões, e Pedro Gonçalves nos leões) - Vitinha, Fábio Vieira, Pepê ou Evanilson, de um lado; Matheus Nunes, Sarabia, Paulinho, do outro; e ainda as que têm os mais (negativamente) agressivos e teatrais, Otávio e Nuno Santos, para citar exemplos mais evidentes, o primeiro com tanto de grandíssimo jogador como de indisciplinado e maus fígados, o segundo com tanto de grande competidor como de mal comportado.

A arbitragem está entregue àquele que é, para mim, o melhor árbitro português da atualidade, o gigante João Pinheiro (não sei exatamente quanto mede, mas sei que é muito alto...), um daqueles árbitros que mesmo quando cometem erros dão a ideia de os cometer pela natureza da função e não por grosseira negligência ou incompreensível decisão e atitude. Sempre foi isso que fez, para mim, a verdadeira diferença na qualidade de um árbitro. Sou capaz de pressentir que os jogadores não o vão ajudar. E essa é a outra ‘cultura’ que devia acabar entre nós!