Formação e identidade

OPINIÃO26.10.202106:05

É possível tornar inesquecíveis os jogadores formados no clube pelo que dão em campo e não pelo que nos privaram de vivermos juntos

O Observatório do Futebol anunciou esta segunda-feira os resultados de um estudo que visa classificar os melhores clubes formadores a nível europeu. A métrica utilizada é interessante: foram consideradas 31 primeiras divisões europeias para efeitos deste estudo e considerou-se como atletas formados todos aqueles que tenham jogado pelo menos três épocas no mesmo clube entre os 15 e os 21 anos. O vencedor não surpreende particularmente: é o Ajax, com 81 jogadores formados que atuam nas primeiras divisões europeias. O mesmo ranking coloca o Sporting em 3.º lugar, com 70 jogadores formados a atuar em clubes de primeiras divisões europeias. O Benfica surge em 8.º lugar neste ranking, com 60 jogadores formados, mas desce para a 39.ª posição quando observamos o n.º médio de partidas jogadas pelos seus formandos durante o último ano (cerca de 23,4 jogos). Há ainda uma métrica que considera o nível médio do clube onde os atletas analisados jogaram no último ano. Esse indicador coloca o Benfica em 28.º a nível europeu. Em suma, os dados analisados mostram um Benfica menos forte na formação do que por vezes nos é dado a pensar, com atletas menos utilizados do que os formados por dezenas de outros clubes, sendo que muitos desses atletas ainda têm contrato com o Benfica.
Porque é que tudo isto interessa? Porque a estratégia do Benfica se encontra há largos anos ancorada na formação como uma espécie de marca do clube. Digo marca e não identidade, e explico porquê. A formação é o principal motor da geração de receitas e tem sido, a espaços, motor da criação de talentos úteis ao plantel principal. Digo criação de talento e não retenção, porque essa tem sido claramente uma lacuna, pelo menos se colocarmos a vertente financeira em segundo lugar - onde deve estar - e nos virarmos para a dimensão desportiva. Os melhores jogadores jovens nem sempre - ou raramente - ficam tanto tempo no clube quanto seria desejável, a aposta nos mesmos parece muitas vezes tímida, e a presença de muitos destes atletas no plantel sénior não tem coincidido no tempo com a existência de um projeto desportivo que procure fazer destes atletas as referências que podiam ser.
Fazer dos atletas formados no clube referências maiores e elementos mais estruturantes dos plantéis não deveria ser uma circunstância que pode ou não ocorrer consoante quem treinar o clube. Deveria ser um imperativo. Se o Benfica amanhã anunciasse uma oferta de emprego para treinador principal da equipa sénior, a indisponibilidade para apostar na juventude deveria ser fator eliminatório. Essa mentalidade deveria estar refletida em quem toma decisões diretivas e, especialmente, em quem dirige a equipa durante a semana. Um plantel sénior do Benfica sem atletas formados num clube que tantos talentos forma para o resto do mundo deveria preocupar toda a gente, dos adeptos aos membros da estrutura técnica, passando obviamente pela Direção do clube. Um plantel sénior do Benfica em que os atletas formados não aparentam ser solução deveria preocupar-nos. Um plantel em que o talento da equipa B não parece ser opção ao longo da época deveria preocupar-nos. Jorge Jesus tem muitas qualidades, mas uma delas não é seguramente a de cultivar de forma apaixonada, continuada e laboriosa, uma aposta na formação do Benfica. Pode não parecer hoje, mas isto é um problema. Lembro-me de ouvir Jorge Jesus dizer, acabado de regressar ao clube, que os anos lhe tinham dado outra perspectiva acerca de vários temas, formação incluída, como que dando a entender que talvez a segunda passagem pelo clube viesse a ser diferente. A realidade tem sido outra, o que, admito, talvez me incomode mais num contexto em que a equipa parece pedir maior rotação e o treinador insiste num onze que parece agora um pouco mais desgastado. Apetece perguntar se não haveria mais soluções nos muitos atletas que foram emprestados, se não haveria mais solução num Gonçalo Ramos, e se não haveria ganas de mostrar serviço nesta equipa B que tem vencido quase todos os jogos disputados.  
 

«Jesus tem muitas qualidades, mas uma delas não é seguramente a de cultivar uma aposta na formação do Benfica»


A verdade é que parece existir uma separação clara entre aquilo que o projeto desportivo do Benfica poderia ser - uma identidade forjada pela mescla de talento experiente e talento por moldar - e aquilo que Jorge Jesus parece ambicionar para esta época desportiva, ou para as suas equipas no geral. É impossível afirmar que isto não contamina negativamente a psicologia do jovem jogador formado no Benfica, que provavelmente sonha com uma oportunidade. É verdade que estamos a meio de uma época desportiva importante para restabelecer uma posição dominante no futebol português e, quem sabe, a nível internacional, portanto compreende-se que a principal preocupação do futebol sénior não seja neste momento acomodar as ânsias de adeptos que acreditam que o Benfica precisa de mais atletas formados em casa. Mas as ânsias continuarão por cá, e suspeito que não vão diminuir.
Reza a história que, no verão de 2018, Edwin van der Sar convocou um conjunto de jogadores formados no Ajax para lhes dar a conhecer um vídeo preparado exclusivamente para eles. A peça comparava cada um dos jovens da formação - Frenkie de Jong, Matthijs de Ligt, Kasper Dolberg ou Justin Kluivert - a um símbolo do clube. A ideia, explicou Van der Sar ao New York Times, era mostrar a cada um dos jovens que poderiam fazer história no Ajax, ali mesmo, a jogar na Holanda. Nessa época, o Ajax mostrou o melhor futebol da Champions League e, apesar de ter caído nas meias-finais, conseguiu aquilo a que, afinal, Van der Sar aspirava. Tornou estes jogadores inesquecíveis. Este ano, apenas duas épocas depois desse feito, o mesmo Ajax, fiel à sua convicção de clube formador, parece ameaçar igual proeza. Um treinador brilhante e pleno de convicções - Ten Hag -, uma equipa capaz de combinar de forma prodigiosa a experiência e o talento, um manancial de soluções ofensivas que não vimos em outra equipa nesta Champions League, e uma alegria contagiante em cada toque na bola.
Esta história parece dada a um certo lirismo - dirão alguns - mas é precisamente aquilo a que o Benfica deve aspirar. Mais competitividade? Sem dúvida que a começamos a ter. Mas ainda falta identidade. O Benfica não atingirá realidades superiores sem mais capacidade de sonhar e sem ganas de o concretizar. Depois de tudo o que foi investido no projeto de formação, depois de toda a receita que gerou, é impossível não ver com perplexidade que o clube responsável por tantos dos melhores jovens futebolistas do mundo continue a não ser capaz de os segurar por mais tempo, que continuemos a não ser capazes de fazer deles ídolos. É possível torná-los inesquecíveis por tudo o que dão ao Benfica dentro de campo, e não por aquilo que nos privaram de vivermos juntos.