E os artistas?!

OPINIÃO01.05.202004:00

Estava o País do futebol  definitivamente em suspenso para ouvir o que entende o Governo sobre o regresso da competição profissional. E ouviu o que, provavelmente, mais queria. A Primeira Liga vai poder voltar a jogar-se a partir do fim de semana de 30 e 31 de maio.

Enquanto estrutura, enquanto organização, enquanto entidade patronal, enquanto indústria, enquanto parte da economia, o futebol parecia não esconder já a ansiedade por regressar.

Apesar do discurso cauteloso para fora, a verdade é que podemos admitir que a vontade dos principais responsáveis - das entidades organizadoras e dos clubes - é a de ver o campeonato da Primeira Liga concluir o que lhe falta para poder consagrar, sem qualquer eventual polémica de secretaria, o campeão, definir, sem a mesma polémica, os despromovidos, e atribuir, sem a mesma polémica, os lugares nas próximas competições europeias, e, com tudo isso, assegurar o que a todos parece muitíssimo importante: o dinheiro. Sempre o dinheiro.

Já se percebeu, pois, que o campeonato (apenas o da Primeira Liga, é certo) vai mesmo regressar, apesar do primeiro-ministro ter anunciado que a decisão final está ainda dependente da aprovação por parte das autoridades de saúde do protocolo de segurança apresentado pela Liga de Clubes, assim como fica por saber ainda, também, que estádios serão escolhidos para a realização dos 90 (!!!) jogos que ainda devem jogar-se para concluir a competição - não é muito difícil concluir que não serão muitos, e andarão naturalmente à volta dos principais e mais recentes estádios nacionais, ou seja, alguns dos que foram construídos para o Euro-2004.

É, genericamente, uma boa notícia a possibilidade de o futebol voltar a ser jogado no nosso País. Falo até pelos que, como eu, vivem de uma profissão que também depende das competições e numa empresa que produz comunicação na área da informação desportiva - talvez valha, aliás, a pena, mais uma vez, sublinhar o quanto mais ficaram prejudicados os títulos de media (jornais impressos ou digitais, e canais televisivos) da área da informação desportiva, ao contrário dos generalistas, quanto mais não seja pelo simples facto de os primeiros terem perdido o objeto essencial da sua existência, a competição desportiva, ao contrário dos segundos.

Mas sendo, o regresso do futebol, genericamente uma boa notícia, parece-me, e faço já a minha declaração de voto, que não haverá coragem para tomar medidas, porventura, mais adequadas ao momento.

OUÇO falar nas propostas para a retoma das competições, nos procedimentos, no modo como pôr de pé mais 90 (!!!) jogos que ainda faltam à principal competição do futebol português, leio sobre o planeamento, sobre a fiscalização, a vigilância, o que nos gabinetes se entende ser o essencial relativamente à segurança de todos os que precisam de ir para o campo… Ouço e leio tanta coisa, tento compreender os apregoados cenários de dificuldade económica e sobre a necessidade que o futebol diz ter de recuperar o mínimo de condições económicas para sobreviver, ouço e leio tanta coisa mas não ouço nem leio nada, rigorosamente nada, sobre o apoio psicológico e emocional que deverá ser indispensável e profundamente dado aos artistas porque serão os artistas a ter de enfrentar o medo que a Covid-19 não deixa de provocar em cada um de nós.

Ouço dizer que se tantos trabalhadores terão de ir para os seus empregos porque não pode voltar o futebol?

Ouço dizer que se o futebol tem tanto dinheiro e é médica e cientificamente tão controlado, pouquíssimo perigo correrão os atletas.

Ouço dizer que se são atletas e jovens, então não fazem parte dos chamados grupos de maior risco.

Ouço dizer tudo isso como se os jogadores pudessem jogar de máscara e manterem-se, em todo o jogo, a dois metros de distância uns dos outros, e ouço tudo isso como se os jogadores não tivessem família e não pudessem, mesmo os assintomáticos, pôr em perigo sobretudo os mais velhos que os rodeiam.

A pandemia da Covid-19 não é uma brincadeira. Este vírus já fez sofrer muita gente. E mata. Dir-se-á: em Portugal ainda não morreu ninguém com menos de 40 anos. É verdade.

Mas ainda que isso sirva de algum conforto aos que têm menos de 40 anos, são ainda assim muitos os testemunhos de quem já sofreu horrores às mãos do coronavírus, tendo 20 ou 30. Alguém quer candidatar-se a sofrer o que já muitos sofreram nas camas dos hospitais mesmo sem o mais trágico dos destinos? Ainda recentemente ouvi a cantora norte-americana Pink relatar o drama vivido com o filho mais novo, de apenas 3 anos. Ficaram ambos doentes e, segundo Pink, o pequeno Jameson sofreu muito com as febres altas e as dificuldades respiratórias. E tem 3 anos!

MAIS uma vez, o que importa não é a estatística, o que importa é a saúde. Não importa se a larga maioria se trata em casa, com paracetamol. O que importa é assegurarmos que corremos o menor risco possível de sermos infetados por um vírus do qual tão pouco se conhece. Mas que se propaga com uma facilidade tremenda. E que não sabemos como reage em cada um de nós. E que tão depressa deixa o hospedeiro assintomático como o faz sofrer violentamente ou até o mata.

É esse desconhecido, é essa assimetria, que assusta. E que não pode, naturalmente, deixar de assustar os jogadores de futebol que vão ser atirados para a competição em nome de uma retoma que, de forma talvez mais corajosa ou ponderada, não precisasse de fazer em dois meses qualquer coisa como 90 jogos (!!!), nem de envolver tanta gente e tantos espaços para cumprir, ou atingir, os principais objetivos desportivos: encontrar um campeão, definir despromovidos, e designar concorrentes às provas da UEFA.

Claro que há o fator económico. Talvez o que pesa mais.

Mas não seria melhor jogar menos jogos? Com menos equipas (apenas as indispensáveis às decisões do título e da despromoção)? Em menos tempo? Em muito menos locais? Mantendo, por exemplo, os jogadores numa espécie de estágio como acontece numa qualquer grande competição, sem contacto, portanto, com a família e sem o receio de poderem ser transmissores do vírus aos que lhes estão mais próximos?

E, já agora, terão todos os clubes as mesmas condições de proceder ao indispensável apoio psicológico aos jogadores, por muito ansiosos que muitos deles também estejam por voltar a jogar? E à falta dessas condições, o modo como a competição vai decorrer em junho e julho não corre o risco de acentuar ainda mais as diferenças entre as equipas mais fortes, e ricas, e as mais fracas, e pobres?

Num dos programas de debate que A BOLA TV continua a produzir mesmo a partir de casa de cada um, a psicóloga Vera de Melo sublinhou o aspeto emocional e psicológico, porventura, como o mais importante neste quase certo regresso do campeonato da Primeira Liga. Bem mais importante, certamente, do que saber se os jogadores conseguirão chegar todos aos jogos nas melhores condições físicas.

O medo pode agora ser o maior adversário dos jogadores, como parece ter ficado explícito nas declarações do benfiquista André Almeida.

Talvez não fosse má ideia, a propósito, ouvir o que eles, os artistas, têm a dizer sobre o assunto. Ou será isso o menos importante?

Estará, evidentemente, em causa, para todos e cada um de nós, a sobrevivência, a todos os níveis. Mas é preciso que coloquemos sempre em primeiro lugar a saúde. Num certo sentido, talvez o maior inimigo não seja, a partir de agora, o vírus, mas cada um de nós, se não souber adaptar-se, se não souber ser responsável, se não souber ter respeito por si próprio e pelo próximo, se não souber cuidar, cuidando do seu, do esforço de todos, para conseguirmos ir vivendo e convivendo com o vírus.

No caso do futebol, e do desporto em geral, aconteça o que acontecer, ele já conseguiu uma enormíssima vitória, um inesquecível sucesso, um extraordinário objetivo, que foi o da solidariedade, como ficou tão bem retratado, no caso português, pelas inúmeras ações, doações, auxílios, apoios, participações de gente do Desporto, e do futebol, em particular, mais ou menos conhecida, que não quis deixar de mostrar de forma absolutamente clara o que era, e é, mais importante.

Como tão bons exemplos deram alguns dos que mais podem, como Cristiano Ronaldo ou o seu agente Jorge Mendes, orgulhosamente seguidos por tantos atletas, instituições ou clubes. Que esses fantásticos gestos possam significar também, no caso muito particular do futebol, um futuro bem mais saudável. Eu sei que vocês sabem do que estou a falar!