Do passe de letra

OPINIÃO14.10.202107:00

Como da metáfora do passe de letra se pode soltar o espírito que faz de Portugal o que é...

Ofutebol, por ser jogo de pouca memória (ou melhor: duma memória seletiva por vezes a deixar-se resgatar pelo encanto súbito sopro divino - ou pelo seu contrário…), tem injustiças assim: ao falar-se da Argentina que Maradona levou a campeã do mundo na mão de Deus só do Maradona se fala e os demais campeões vão sendo cobertos na história por mais ou menos diáfanos véus de esquecimento. Um deles é o Borghi, o Bichi Borghi que amiúde abria bocas de espanto em passes de letra - e uma vez explicou-o:
— Fazer um passe de letra não é um luxo raro, nem uma demonstração de alta qualidade, é simplesmente declarar que a outra perna, naquele momento, não serve para nada.
A frase, carregada de poesia, tornou-se (pelo menos para mim) metáfora do que o futebol deve ser para ser um futebol melhor: deixar que jogadores (e  treinadores) tenham sempre na cabeça uma perna que não serve para nada pronta a soltar-se em passes de letra (mesmo não sendo passes de letra…) - e é isso que Fernando Santos consegue que os seus jogadores tenham  (e não, não é só o Ronaldo, o Ronaldo que continua a tirar golos a fio dos passes de letra que a vida lhe vai dando na metáfora do Borghi, no espírito ávido e fulminante de Lobo Mau…)
Eu sei: o melhor passe de letra que Fernando Santos tem, que Portugal tem, é Ronaldo, mas não é só - é também o modo como, arguto, Fernando Santos consegue que a sua equipa não deixe de ser estrela sem perder o fulgor e o fogo da sua estrela - e o leve a afirmar o que afirmou, após os 5-0 ao Luxemburgo:
— Com equilíbrios poucos podem ganhar a esta equipa…
Aliás, com esses «equilíbrios» Portugal pode ganhar a qualquer equipa. Porque tem o Ronaldo - e  porque tem (também) um treinador capaz de, com a sua cabeça e o seu coração, ter sempre à mão o passe de letra de que precisa para não perder o que quer ganhar (sem se preocupar em  levar o seu jogo para dentro de um concurso de misses...)