De Espanha a Portugal
Infelizmente não há memória de campeonato renhido que não tenha o final marcado por celeuma
NO passado domingo, o Valência perdeu em casa (0-2 com o Sevilha), agravando uma crise de resultados como há muito não se via no Mestalla. A poucas jornadas para o final da época, os che estão na zona de despromoção, a três pontos da linha de água. A equipa valenciana está na primeira divisão há quarenta anos.
Na ressaca da derrota, o diretor geral do clube, Javier Solís, atacou o árbitro Carlos del Cerro Grande (curiosamente o mesmo que irá dirigir o Inter de Milão-Benfica de amanhã) com um conjunto de declarações que foram bem além da crítica técnica ao seu trabalho. Solís afirmou que estavam possessos e que a arbitragem tinha sido uma vergonha com letras maiúsculas: «Roubaram-nos um penálti, estamos fartos, isto cheira muito mal. Quando o árbitro vir as imagens, vai ter dificuldade para dormir. Estamos enojados. Temos sido assaltados.»
O calibre destas afirmações, mais do que um mero desabafo, encerrou uma estratégia de pressão sobre as arbitragens, tendo em conta o que falta jogar. Foi também uma tentativa de branquear insucessos desportivos e de desviar a atenção do essencial. Nada de novo aí. Mas quem não parece ter ficado seduzido pela opção foram os seus adeptos, que se concentraram à porta do estádio para exigir a demissão imediata de todos os seus gestores.
O futebol de alta competição parece ter incorporado a ideia de que não faz mal que alguns agentes desportivos coloquem em causa a honra e integridade de outros quando a coisa não lhes corre bem. Parece que está instituído que, na hora de desabafar, há quem possa dizer o que quer e há quem tenha que comer e calar.
Claro que excessos como os de Solís serão sempre alvo de sanção desportiva (e criminal), que pode até ser dura, mas nunca o suficiente para dissuadir. Nunca o suficiente para impedir que a linha vermelha volte a ser ultrapassada.
Em Portugal a realidade não é muito diferente e é justo que se assuma isso com clareza. Quando os resultados não aparecem, quando o ambiente fica pesado, quando a incerteza começa a pairar, o mais fácil é apontar o dedo aos suspeitos do costume. Esse posicionamento assenta quase sempre em duas premissas: ou na tal estratégia pensada para (tentar) condicionar o que aí vem ou no simples desabafo emocional. Na voz do coração, demasiado exaltada e parcial na opinião, porque próxima do coração. Uma má, outra menos má, as duas destrutivas.
Infelizmente não há memória de campeonato renhido que não tenha o seu final de época marcado por celeuma, declarações bombásticas e insinuações ferozes em relação a árbitros e arbitragens (não confundir com direito à critica, totalmente legítimo e que deve ser sempre exercido por quem se sente lesado).
É nestes momentos mais acalorados e perigosos que comentadores desportivos (sobretudo os não afetos a clubes), jornalistas e imprensa, devem desempenhar bem o seu papel, por ser tão determinante na formação de opinião. Por ser tão impactante na forma como as pessoas percecionam tudo isto.
O que se espera de todos eles é conteúdo construtivo, análise factual e informação credível. No fundo, verdade. E tudo o que não se espera são contributos indiretos ou camuflados para um clima ainda mais hostil e crispado. Para um ambiente ainda mais tóxico.
Os árbitros erram, os jogadores falham, os treinadores enganam-se, os dirigentes equivocam-se e os adeptos excedem-se. Esta verdade, misturada com um espetáculo que acarreta demasiadas emoções, expectativas e frustrações, é só por si suficiente para fazer explodir uma área demasiado próxima da vertigem.
Quem está cá fora e tem força para influenciar pela positiva, deve fazê-lo com ética, neutralidade e isenção, mesmo aqueles que, como eu, não estão sujeitos a código deontológico.
Não é admissível que seja (ou pareça ser) de outra forma.