O puxão de orelhas
Galeno e Vítor Bruno ainda no relvado da Luz após a derrota gorda sofrida diante do Benfica (Imago)

O puxão de orelhas

'Livre e Direto' é o espaço de opinião semanal do jornalista Rui Almeida

Uma das principais razões para a emancipação desportiva do FC Porto, ao longo dos últimos 40 anos, residiu na capacidade de perceber o enquadramento geográfico da maioria dos seus adeptos e simpatizantes, de reconhecer o símbolo do clube como uma imagem de causa, de trabalhar com afinco na melhoria considerável das suas condições físicas, técnicas e logísticas.

Um processo longo, geracional, que importava realizar em total consonância com os objetivos desportivos, portanto a garantia de vitórias aquém e além-fronteiras como ignição fundamental para manter o rumo e o ritmo evolutivo.

Estrategicamente, é essencial que os clubes, hoje transformados em poderosas máquinas de marketing, em mega-unidades de negócio, definam claramente os seus alvos e cumpram com rigor os passos atinentes à gradual, mas sustentada, evolução. Não é sequer verosímil que um emblema poderoso, com uma base popular de suporte forte e coesa, corra ao sabor do vento e de uma bola que, batendo na trave, entrou na baliza adversária. O acaso já é passado, o presente e, sobretudo, o futuro de uma grande empresa que lida com a imponderabilidade do resultado desportivo aliada à emotividade do permanente engajamento com a sua base de apoio constroem-se com previsão, orientação e capacidade de decisão.

A história das últimas quatro décadas dos azuis e brancos passa, incontornavelmente, pelo nome de Jorge Nuno Pinto da Costa. O mais carismático dirigente desportivo português de há largos anos, o mais amado e odiado, o mais escrutinado, criticado e apoiado, consoante as linhas de raciocínio de quem analisa e o posicionamento de quem comenta.

Mas o seu nome é parte integrante, atuante e marcante da história do Futebol Clube do Porto e do imenso esforço que o clube protagonizou, encetando uma espécie de permanente guerrilha de afirmação regional, elegendo Lisboa e os dois grandes símbolos desportivos da capital como seus adversários e inimigos de estimação. Operacionalizou esta ideia com uma estratégia de comunicação pessoal, intransmissível, agressiva, por vezes demolidora, em que o soundbite tinha um papel essencial e, muitas vezes, era mais importante e significativo do que o próprio conteúdo da mensagem.

Estes são os factos que marcaram transversalmente os mandatos de Pinto da Costa, o dirigente que, curiosamente, acabaria por perder a oportunidade de sair pela porta maior, idolatrado pelo seu povo e respeitado (ainda que muitos não o reconheçam publicamente!…) pela esmagadora maioria dos seus opositores internos e externos.

Talvez tenha sido um erro a sua última candidatura à presidência do emblema portuense. Percebendo a contestação intramuros e, essencialmente, estando consciente do desgaste imenso provocado por um consulado presidencial individualista e centrado na sua figura, Jorge Nuno deveria ter sido aconselhado pelos seus pares a retirar-se de campo no final do mandato, até porque a concorrência direta de André Villas-Boas prometia (e haveria de cumprir) luta sem tréguas e sem possibilidade de equilíbrio.

Este terá, de resto, sido o maior pecadilho objetivo de Pinto da Costa enquanto líder portista. Acabou por, curiosa mas previsivelmente, sair pela porta mais pequena do seu gabinete no estádio do Dragão, onde expunha com orgulho fotografias da sua longa vida como dirigente, incluindo momentos únicos com o Papa Francisco ou com a primeira grande conquista (a Taça dos Clubes Campeões Europeus de 1987, em Viena).

Será sempre recordado como O Presidente, e bastará olhar a história e os registos da performance azul e branca nas mais diversas modalidades e geografias, para perceber o quão decisiva foi a figura de JNPC para o crescimento exponencial do clube, da marca, da imagem da cidade e da região norte, faltando talvez uma inflexão estratégica na comunicação dos últimos anos para passar a posicionar o FC Porto como um clube nacional virado ao mundo, considerando até o mensurável aumento de apoiantes fora de portas, essencialmente (mas não só) nas imensas comunidades portuguesas espalhadas pelos quatro cantos do planeta.

Aqui chegados, estou absolutamente seguro que a quase miserável atitude da equipa azul e branca no clássico do passado fim de semana, no estádio da Luz, frente ao Benfica, seria impossível na era pintista, pela muito prosaica razão de que, à imagem de incansável lutador do seu então presidente, as equipas do clube da Invicta lutavam até à exaustão, gritavam e remavam em uníssono e sincronia, vendiam as derrotas a preços altíssimos e percebiam que, acima de um infortúnio de ocasião, estava sempre o símbolo no peito e a camisola encharcada no corpo.

Não me espanta a reação quase epidérmica de Villas-Boas ao descer rapidamente ao balneário da Luz, mesmo antes do apito final de João Pinheiro. Percebeu a responsabilidade (ele que, enquanto treinador, já havia carimbado um título de campeão português naquele mesmo estádio…), entendeu o momento e — sei-o de fonte seguríssima — não foi nada meigo nas palavras que dirigiu aos jogadores e, indiretamente, à equipa técnica, após a goleada sofrida frente aos encarnados.

Não estão em causa os números do resultado final. Longe disso. Em causa esteve (e está) a paupérrima atitude, a falta de compromisso, a ausência de espírito de luta e de sacrifício, a imagem insípida, incolor e inodora deixada pelas camisolas azuis e brancas.

O puxão de orelhas que Villas-Boas deu ao plantel portista só teve mesmo comparação ao outro puxão de orelhas, também por ele dado, nas eleições, ao seu mentor Pinto da Costa.

Com uma desvantagem para o atual presidente: com Jorge Nuno o FC Porto poderia ter perdido o jogo, mas nunca teria saído da Luz corado de vergonha.

Cartão branco

Não é fácil ser inglês, ter sido internacional irlandês, e ser chamado à última hora para orientar, de modo interino e com prazo de validade bem definido, a seleção de Inglaterra. Depois de Gareth Southgate ter estado à frente do combinado do seu país durante oito anos (com um quarto lugar no Mundial da Rússia e dois vice Europeus, em 2021 e 2024), Lee Carsley assumiu o ónus e aceitou ser selecionador inglês nos jogos da Liga das Nações. Está quase a cumprir o objetivo de vencer o seu grupo da Liga B (os ingleses foram despromovidos ao segundo escalão da competição em 2023), e de, portanto, regressar à Liga A. Fá-lo com um misto de jogadores jovens e experientes, a esmagadora maioria a atuar na Premier League, mas não apenas nos emblemas mais mediáticos. Sairá em janeiro para dar lugar ao alemão Thomas Tuchel, mas deixa com honra o vínculo da sua competência e humildade.

Cartão amarelo

O futebol é como a vida: tem história, estórias e memória(s). O desporto de que o planeta tanto gosta e segue nasceu ainda no século XIX, estendendo-se em momentos e praticantes únicos no século XX e mantendo a magia bem presente no século XXI. É mais do que centenário, e do seu museu global de grandes recordações fazem parte Portugal e jogadores portugueses, de braço dado com outros imortais. Quando alguém, de modo recorrente, sublinha que é quase o centro do mundo, que o país se tornou grande e conhecido por força da sua atividade e representatividade é, no mínimo, de muito mau gosto e revela uma imensa falta de respeito para todos os que — e foram mesmo muitos — trabalharam ao longo de muitos anos no país e pela modalidade. O futebol foi, é e sempre será um jogo de humildade e coletivismo.