Casa de papel

OPINIÃO12.06.202004:00

Não podem ter deixado os benfiquistas (não apenas, mas particularmente os benfiquistas) de se sentir mal, e muitíssimo preocupados, com o inqualificável ataque ao autocarro da equipa, quando esta regressava à academia do clube após o empate com o Tondela. Um acontecimento destes, absolutamente criminoso, que podia ter tido consequências bem mais graves, não tem nada a ver com emoções desportivas, nem é admissível que resulte de qualquer frustração por causa de um jogo de futebol.

É preciso condenar o fanatismo, o ódio e a violência e creio que devemos ser ainda mais implacáveis quando se trata de fanatismo, ódio e violência revelados e praticados no universo de qualquer competição desportiva, porque é absolutamente intolerável que um jogo de futebol ou de qualquer outra modalidade possa servir, seja qual for a circunstância, de justificação para qualquer tipo de ato bárbaro, selvagem, criminoso.

Confesso, a propósito, ter-me parecido, no mínimo, surpreendente, e de certa forma inesperado, o resultado final do julgamento de Alcochete, como ficará certamente conhecido o processo que resultou do impressionante ataque de há dois anos. Ninguém deve esquecer-se que nesse ataque foram postas em risco a vida de terceiros, no caso os profissionais de futebol do Sporting, vítimas de violentos confrontos físicos e emocionais, e, por isso, pela dimensão do caso, pela violência usada e pela organização do ataque, pelo número de envolvidos - num ato nunca antes visto no nosso País - não posso deixar de me confessar surpreendido (pela negativa) com o reduzido número de condenados e com as penas aplicadas.

Devemos sublinhar que também este inqualificável ataque ao autocarro da equipa do Benfica pôs em risco a vida dos profissionais de futebol do clube e ninguém quer, seguramente, imaginar o pior que poderia ter acontecido, caso o pedregulho tivesse, porventura, acertado, por exemplo, na zona do profissional que conduz o autocarro e provocado descontrolo na condução até um consequente e imprevisível despiste.

Mesmo sem o pior dos resultados, é bom lembrar o que poderia ter acontecido, não para dramatizar, mas para que ninguém ignore a irresponsabilidade criminosa deste tipo de atos, muitas vezes cometidos sob a capa de alegadas outras intenções, como a de apenas querer-se assustar as vítimas. Há dois anos na academia do Sporting, agora com o autocarro do Benfica, amanhã noutro lugar, até ao dia em que as consequências possam ser demasiado trágicas para as lamentarmos, como sucedeu numa final da Taça, no Jamor, quando adepto sportinguista perdeu a vida atingido por um maldito, e nunca inocente, very-light lançado por adepto benfiquista.

Como sempre, o que se espera e deseja é que os responsáveis por tais atos sejam exemplarmente punidos. E que os clubes façam, por fim, o que devem - como neste caso do autocarro afirmou, finalmente… e finalmente bem, o presidente do Benfica -, excluindo, de uma vez por todas, os criminosos que vivem, influenciam, degradam e prejudicam o universo dos mais dedicados adeptos dos clubes, a que se dá o nome de claques. 

Mas o que também não pode ser ignorado é o contributo dado por tantos responsáveis, sobretudo dirigentes de clubes, mas igualmente outros agentes desportivos, para o crescente clima de fanatismo, ódio e violência. Estou a lembrar-me da linguagem utilizada, da forma irresponsavelmente agressiva como se usam as redes sociais ou se permitem comentários públicos feitos por departamentos de comunicação em nome das instituições, no caso, vindos, sobretudo, dos lados de Benfica e FC Porto, estou a lembrar-me dos cânticos ofensivos que lamentavelmente já ouvimos até de jogadores profissionais atingindo emblemas adversários - já o ouvimos de jogadores profissionais do FC Porto, por exemplo, e não há muito tempo de jogadores de futsal do Sporting!...

Quando responsáveis, e até agentes diretamente envolvidos no espetáculo desportivo, têm comportamentos, comentários e discursos que de algum modo fazem apelo a emoções exacerbadas - para não lhes chamar outras coisas… - serão, porventura, essenciais intervenções mais duras do Estado e da Justiça, para que, no caso concreto do futebol, esse poder público que é delegado na respetiva Federação, seja mais exemplarmente regulado se continuar a ser, como tem sido, tantas vezes incapaz de se auto regular em matérias que tenham a ver com regras de comportamento, respeito, ética, transparência, credibilidade.

Em Portugal, pela importância social que tem, pela sua crescente dimensão económica e financeira, pelo peso como indústria, mas também pelo impacto e importância para a promoção e imagem do País, o futebol não pode continuar a comportar-se como uma espécie de casa de papel, sujeita facilmente a ver-se rasgada por quem tem sempre a maior responsabilidade, que são os dirigentes. Quem semeia ventos só pode colher tempestades!

Os resultados da jornada desta semana definiram que o FC Porto voltasse à liderança isolada da Primeira Liga e o Benfica voltasse, também isolado, à segunda posição, evitando assim, pelo menos, mais uma semana de constrangimentos provocados pelo inacreditável e inqualificável e inenarrável regulamento que os senhores responsáveis dos clubes aprovaram e que fez do Benfica líder do campeonato por uma semana, apesar de ter somado o mesmo número de pontos do FC Porto após a primeira jornada da retoma e apesar de ter clara e incontornável desvantagem no confronto direto com o principal adversário na luta pelo título.

Não sei se os responsáveis dos clubes repararam, mas a verdade é que não é nada fácil explicar aos adeptos do futebol como podia o Benfica surgir em primeiro na classificação se tinha o mesmo número de pontos e está em irremediável desvantagem no confronto direto com o FC Porto. Foram os senhores dirigentes dos clubes que aprovaram uma regra segundo a qual só no fim do campeonato se aplica o critério do confronto direto; mas a culpa de a aplicar é dos jornalistas, como já se percebeu. Com esta regra, o que os senhores responsáveis dos clubes arranjaram foi um 31 inacreditável.

Ainda se admitiria a decisão de, para efeitos de desempate, apenas se aplicar o critério do confronto direto que as equipas empatadas tivessem realizado os dois jogos. Mas aplicá-lo apenas no fim o campeonato é absolutamente incompreensível.

É o exemplo da mais ridícula das regras da Liga. Se porventura Benfica e FC Porto voltarem a estar em igualdade pontual até final do campeonato, e os critérios aplicados (golos marcados e sofridos) derem ainda vantagem ao Benfica, o cenário pode, simplesmente, ser o das águias chegarem à 33.ª jornada em primeiro e, mesmo ganhando o último jogo, acabarem o campeonato em segundo. Não havia era necessidade de o regulamento ser, na matéria, tão inexplicavelmente absurdo.

Mais surpreendente, no Benfica, nem é já o pouco futebol que a equipa joga - e joga pouco há demasiado tempo -, e já nem é o novo empate cedido, desta vez, no campo do aflito Portimonense, apesar de ter conseguido a águia chegar a 2-0 mesmo nunca jogando a um nível que verdadeiramente o justificasse - sem esquecer, porém, o bom golo de Pizzi.

O mais surpreendente no Benfica já nem é a péssima condição em que muitos dos seus jogadores se apresentaram nesta retoma do campeonato (alguns mesmo muito abaixo do que lhes é exigido pelas condições de que desfrutam e pela equipa que representam)!

O que mais surpreende no Benfica nem são já atitudes como as de André Almeida, que, na qualidade de capitão, se insurgiu contra decisão do árbitro, mesmo sabendo que a provocação lhe poderia custar, como custou, ver o 5.º amarelo e ficar de fora de um jogo certamente difícil como o de Vila do Conde, na próxima jornada, nem é frase dita pelo mesmo André Almeida para tentar explicar o que ele assume ser inexplicável: «Os jogadores estão a fazer o que lhes pedem.»

O mais surpreendente no Benfica já nem são as decisões do treinador, ou o ter classificado como uma conversa de «pai para filhos» a intervenção do presidente no balneário após o confrangedor empate com o Tondela, ou mesmo o ter inesperadamente considerado a situação tão tranquila como tranquilo foi ter ido ver o mar com o presidente.

O que começa, realmente, a surpreender no Benfica é toda a gente parecer que acha normal a equipa, com as responsabilidades que tem, contar apenas uma vitória nos últimos dez jogos, sete dos quais na Primeira Liga (há memória de coisa assim?!...) e tudo se passar como se nada fosse. Isso, sim, é surpreendente e, para os benfiquistas, certamente preocupante. Igualmente preocupante, imagino, para os benfiquistas, que possa o presidente ir ao balneário falar aos jogadores e cinco minutos depois já se saber na rua!