Bruno Lage vai ter de resolver o puzzle de Schmidt e… o seu
Rúben Amorim parece ter tudo sob controlo no Sporting e Vítor Bruno acrescentou esperança à habitual identidade competitiva do FC Porto
A Liga está de volta e os principais candidatos ao título apresentam-se com estados de alma bem diferentes. O Sporting, com a faixa de campeão ainda ao ombro, vive momentos de confiança. A Supertaça não o fez abanar por aí além, como se assentasse numa estrutura antissísmica que leva a que recupere rapidamente a forma original.
À exceção de Kovacevic e ainda que não tenha trazido o alvo mais desejado, o coerente e cirúrgico mercado dos leões praticamente não teve impacto. A solidez não é de hoje e a base criada resiste a um par de saídas, mantendo-se o rumo e ganhando-se tempo para que haja a paciência necessária na adaptação dos mais tardios Conrad Harder e Maxi Araújo e o próprio Debast ultrapasse o aparente mau momento que o tem acompanhado: da seleção para o clube e agora do clube para a seleção. O único que chegou, viu e conquistou o lugar foi mesmo o bósnio, hoje lesionado, mas sem que se crie drama porque há Franco Israel, que já mostrou que não envergonha ninguém e até não estará assim tão distante do maior concorrente ao lugar.
Rapidamente, Gyokeres recuperou o ritmo e voltou a acelerar como se não houvesse amanhã. Se já era difícil que de vez em quando não espreitassem a periférica liga portuguesa à procura dessa força da natureza sem controlo que é o sueco, a pausa para as seleções certamente fez disparar o interesse sobre o goleador que festeja como vilão de Gotham, mas faz claramente parte dos bons e dos melhores. Os golos foram descritos com classe e vistos nos principais noticiários, depois de se tornarem virais nas redes sociais. No entanto, mesmo que o cenário menos provável de que o mercado de Inverno se assuma mais dispendioso que o do verão vingue e um tubarão bata os €75M recorde de Julián Álvarez e cubra a cláusula de rescisão, seja por desespero ou necessidade de antecipação, o leão tem seis meses para preparar o sucessor e manter-se perto de Ioannidis ao ponto de conseguir voltar à carga. E quem diz o grego diz outro de valor semelhante.
Amorim, Viana e Varandas já falharam antes e podem vir a repeti-lo, todavia tudo parece encadeado para mais um final feliz.
No Dragão, há sobretudo esperança no final de um caminho traçado com firmeza, decisões difíceis, mas também coerência e muito trabalho. Nehuén Pérez e Francisco Moura surgem como apostas seguras, tal como Fábio Vieira (que começou mal, lesionado), e há potencial em Samu Omorodion e Deniz Gul. Vitor Bruno recuperou o proscrito Iván Jaime e vislumbra-se uma juventude interessada e interessante para compor o grupo e fazer crescer.
Na verdade, desbravou-se caminho para o reset e um ano zero, em que as expectativas têm de ser naturalmente mais baixas que as dos rivais. A boa resposta tem alimentado o sonho dos adeptos, porém tudo dependerá de aparecerem ou não fissuras na coesão leonina, porque o Benfica, em modo hara-kiri, parece desde o início num elevado estado de erosão.
Fora do relvado, porém sem o perder de vista, André Villas-Boas não teve medo da rotura total com o passado e também aí terá aproveitado o exemplo de Rui Costa. Que mostrou realmente como não se deve fazer. Perante o grau zero na Luz e a mudança gradual que se foi verificando em Alvalade, o novo presidente azul e branco decidiu ir ainda mais além, escancarando de uma só vez todas as janelas para que entrasse luz e se olhasse e comunicasse de dentro para fora. Se é intencional não sei, contudo, só assim se valoriza o produto e se pode alargar a dimensão de um clube já gigante. Talvez vejamos o seu reflexo daqui a alguns anos.
Incrível o que se passou na Luz, onde o sentimento é de dúvida sobretudo em quem não se guia pela fé. Acredita-se no milagre. O novo treinador não montou o plantel, não teve mercado para corrigi-lo e, ainda por cima, chegou enquanto quase todos debandavam para as respetivas seleções. Parte com menos 5 para o Sporting e menos 2 pontos para o FC Porto, já depois de estes se terem defrontado. Está obrigado a vencer o Santa Clara e depois enfrentará a áspera visita ao Bessa.
Nas últimas horas, Bruno Lage ficou sem mais uma opção para o meio-campo, embora não se possa dizer que não fosse, de certa forma e infelizmente para o jogador, previsível. Renato Sanches confirmou o que José Mourinho dissera quando os dois coincidiram na Roma e outros antes também terão pensado: está em permanente risco de se lesionar. E, mesmo com tudo o que se sabia, Rui Costa viu nele o substituto de alguém com a influência e preponderância de João Neves.
Se há dores de cabeça positivas para Amorim e Bruno, dificilmente as de Lage podem não se elevar ao nível de enxaqueca. Para quem já jogou com Samaris e Florentino ou Fejsa e Gabriel, a primeira decisão surge logo aí, quando não tem Aursnes nem Renato. Haverá forma de escapar à dupla Tino-Barreiro tão criticada na era Schmidt ou tentará Kokçu ou Rollheiser, também testados pelo alemão, com diferentes níveis de sucesso e também de exigência?
Depois, quem teve Rúben Dias e Ferro o que fará aos centrais? Tomás Araújo e António Silva, ou irá manter a dupla preferida de Schmidt? À frente, outras questões: Akturkoglu e Di María parecem certos, nem que seja pela escassez de alternativas, tal como Pavlidis, embora o técnico tenha dedicado tempo, nestes primeiros dias, a Arthur Cabral. E Amdouni chega para ameaçar Prestianni, e deixar Kokçu, a contratação mais cara dos encarnados, também aí sem espaço?
Precisa, no fundo, de resolver o puzzle de Schmidt. Ser agressivo mais à frente sem permitir a transição contrária, manter-se sólido sem perder criatividade. Um puzzle que também foi o seu naquela segunda temporada. Vai querer terminar a história, contrariar a lógica de que um raio nunca cai no mesmo sítio.
A cada dia que passa o presente mais parece envenenado. Lage já fez um milagre antes. Tem algo a que se agarrar, embora num contexto naturalmente diferente a todos os níveis. Na Luz, para quase todos, é uma questão de fé.