Aprender a sensibilizar
«Sinto-me mais livre na cadeia do que quando estava em liberdade.» Dá que pensar
NO passado fim de semana, tive o prazer de regressar à minha terra natal (Ilha da Madeira), a convite do Núcleo de Árbitros de Futebol da Região Autónoma da Madeira - NAFRAM -, para participar em duas ações de sensibilização, junto de diferentes públicos-alvo.
A primeira, pouco depois de aterrar no aeroporto internacional do Funchal, foi dirigida a reclusos do Estabelecimento Prisional local, com o objetivo de passarmos mensagem de resiliência e esperança a todos aqueles que, de uma forma ou de outra, estão agora a pagar à sociedade os erros que cometeram no passado.
Não sei se o caro leitor alguma vez esteve dentro de um prisão, se já sentiu o ambiente diário que ali se vive e respira. Já participei em várias sessões deste género - em Paços de Ferreira, EP de Lisboa, centros de delinquência juvenil, etc. - e posso garantir-vos que o misto de sensações é constante. Não é fácil gerir emoção e razão num espaço com peso moral tão acentuado.
Por um lado, a convicção de que aqueles homens, aos olhos da justiça, cometeram crimes suficientemente graves para os levar à justa privação da sua liberdade; por outro a certeza de que estão ali também pessoas boas e de bem, iguais a mim ou a si, que a determinado momento fizeram a opção errada. Que a determinado momento não controlaram os seus ímpetos ou as suas escolhas.
A conversa foi de índole prática, com exemplos sucessivos de superação e esperança que o desporto sempre oferece a quem não está onde quer ou merece. A acompanhar-me nessa viagem tive o incansável José Lima, Coordenador do PNED. A sessão, inicialmente pesada para todos, acabou por ter momentos de humor, de humildade e de grande introspeção. Foi uma conversa aberta, franca, direta. E foi muito gratificante. Saímos dali com a sensação que somos uns privilegiados, porque temos o bem da liberdade que nem sempre valorizamos como devemos. Há lá dentro quem diga e com razão: «Sinto-me mais livre na cadeia do que quando estava em liberdade.» Dá que pensar.
A segunda ação foi mais formal, embora com o mesmo intuito. Estivemos no majestoso Salão Nobre da Assembleia Legislativa Regional, cujas instalações foram gentilmente cedidas pelo seu presidente, para falarmos com todos aqueles que acreditam que o desporto é e deve continuar a ser uma escola de valores. Casa cheia, imprensa local presente e dezenas de árbitros, treinadores e dirigentes desportivos marcaram presença, querendo ouvir e partilhar experiências connosco. Foi, acreditem, das melhores sessões em que tive o prazer de participar.
Voltámos a falar sobre a importância da ética como valor superior a todos os outros, sobretudo no desporto. Ganhar, sim, mas bem, com qualidade, correção e respeito pelas regras e pelos restantes intervenientes.
Quem não se recorda do monstro Lance Armstrong, que entre tantas outras conquista, venceu o mítico Tour por sete vezes e hoje é recordado como um batoteiro, que enganou tudo e todos para obter vitórias sem qualquer valor aos olhos dos outros? Por muito que tenha tido mérito pessoal em tantos momentos - e teve muito, obviamente - e mesmo que até tenha provado a sua força interior ao superar um tumor maligno, o norte-americano será apenas lembrado pelas transfusões que fez, não pela forma como pedalou mais e melhor do que qualquer outro comum mortal.
O crime não compensa, de facto. Quando nos esquecemos disso e achamos que ganhar a todo o custo é a única forma de sobreviver, podemos até ganhar a prova ou o jogo, mas jamais seremos ganhadores de verdade. Jamais seremos vencedores a sério.
Para muitos, este tipo de ações de prevenção e sensibilização, estas palavras didáticas, podem parecer demagogia ou romantismo. Esses são os que há muito se perderam num caminho que claramente não foi construído para eles. Tenho pena deles. Estão na tal prisão e não sabem.
O mal não é do malho, é do malhadeiro. Desportivismo sempre.