A fé!

OPINIÃO08.05.202004:00

HÁ muito tempo que perdi a fé. Não acho nada que o futebol português aproveite esta crise para da crise sair melhor. Se porventura mudar alguma coisa será para que tudo fique na mesma. É assim há anos. O futebol português não divide oportunidades nem divide riqueza. Nunca o fez. Quem quiser crescer que cresça sozinho. E quem quiser ganhar, que se safe!

No futebol português não se olha propriamente para o futebol. Olha-se para o Poder e para o umbigo. Olha-se muito mais para a árvore e muito pouco para a floresta. Há quem pense, sempre houve, que pode competir sozinho, que não precisa dos adversários para nada ou, no mínimo, que quanto mais fracos forem, melhor. Confrangedor!

De um modo geral, no futebol português não se percebe que cada um pode tornar-se mais forte se todos forem mais fortes, e se todos forem mais fortes o mais forte será igualmente mais capaz de competir com todos os outros que, lá por fora, são mais fortes.

Para se ser mais forte lá fora é preciso que todos sejam mais fortes cá dentro. E se todos forem mais fortes cá dentro, melhor espetáculo seguramente poderá o futebol português tentar vender lá fora.

ACABA a federação de anunciar novo caminho para as competições seniores de futebol que organiza. Faz, reconheçamo-lo, a sua parte. No fundo, aposta, de uma vez por todas, no objetivo de reduzir equipas nos diferentes quadros competitivos. Reduzindo equipas, procura, como justificou e bem, assegurar o «maior número possível de projetos equilibrados», «aumentar a competitividade», «melhorar a qualidade do jogo» e «aproximar os adeptos do futebol local». Tudo boas medidas.
É verdade que faz da próxima a época de transição e por isso aceitou que o Campeonato de Portugal tenha ainda mais equipas (passando das 72 para 96). Mas a resposta surge logo na temporada seguinte, com o aparecimento da tal nova III Liga, com apenas 24 equipas (divididas por duas zonas de 12 equipas, que passarão, num ou dois anos, para duas zonas de apenas 10), e a passagem do Campeonato de Portugal a uma competição ainda mais assente na regionalização e com apenas 48 equipas. Sem entrar em mais detalhes. O essencial é perceber que realmente na Federação Portuguesa de Futebol se trabalha para aproveitar este momento de profunda crise para tentar assegurar um futuro melhor. É esse o caminho. Devemos aplaudir a intenção. Louvar a forma e o conteúdo. E celebrar o objetivo.

É no futebol profissional português que perdi a fé. Há quantos anos andamos a defender, muitos de nós, e sobretudo jornalistas e analistas, que as competições profissionais em Portugal não deviam ser compostas por tantos clubes? Há quanto tempo defendemos a redução do número de clubes na I Liga e, já agora, na II, que nem condições tem para ser uma Liga profissional?
E o que vimos ser feito?
Que me lembre, enquanto falávamos da redução do número de equipas, o que vimos foram alguns alargamentos!
De 16 equipas na I Divisão chegámos a passar para 20.
E de compromisso em compromisso, ficámos nas atuais 18.
Faz sentido que num País pequeno e pobre como o nosso, com um mercado de consumo tão reduzido e com tão poucos recursos financeiros, o futebol da I Liga seja composto por 18 clubes? Não!
Muitos de nós dizem-no há anos.
E não foi preciso uma pandemia para o percebermos.

Com a pandemia e com o cenário que dela resultará nos próximos largos tempos, a coisa fica ainda mais preocupante e naturalmente exige (ou exigiria) medidas ainda mais rápidas e soluções mais estruturais e profundas. Alguém acredita, porém, que alguma coisa mude de substancial? Não me parece!
Parte muito significativa dos nossos dirigentes parece olhar para o futebol como garantia de Poder, influência, estatuto e bons proveitos financeiros. Olham para o umbigo, volto a sublinhar.

Terá Pedro Proença, enquanto presidente da Liga, por exemplo, margem de manobra, e já agora, vontade e determinação próprias, para dar um murro na mesa e apontar o melhor caminho para o futuro do futebol português?

Terão os dirigentes com maior responsabilidade interesse verdadeiramente coletivo de melhorar o campeonato, elevando a qualidade estrutural e o nível da competição, criando ainda um cenário de melhor saúde financeira e melhor rentabilização do negócio?

Ofutebol em Inglaterra é, naturalmente, um exemplo. Em Portugal, muitos o elogiam, mas poucos o seguem. Em Inglaterra, recordo, foram cinco os clubes - Liverpool, Manchester United, Arsenal, Everton e Tottenham, na altura os cinco da elite - a sentar-se à mesa para decidir, por fim, a criação da Premier League, pondo uma pedra numa das mais negras crises a que alguma vez um campeonato teve de sobreviver.

O futebol inglês acumulava tragédias e graves problemas de hooliganismo, tinha sido banido das competições europeias e afundava-se nas velhas estruturas e na ausência de receitas. Hoje, a Premier League é talvez a mais sustentável e rica competição de futebol de clubes no mundo.

Conseguirão, por cá, os principais clubes mostrar essa racionalidade e passarem a estar objetivamente interessados no todo da competição e menos no próprio umbigo?
O que pode ser feito para termos um campeonato melhor?
Por exemplo, centralizar a venda dos direitos televisivos, distribuindo melhor a riqueza; reduzir o número de clubes na competição; limitar o número de jogadores por plantel; limitar por clube o número de jogadores a emprestar; penalizar a sério comportamentos excessivos e estimular rivalidades saudáveis; ajudar os clubes mais pequenos a criarem melhores infraestruturas. Para equilibrar a competição, equilibrar os recursos.

NO momento que vivemos, fazer regressar o campeonato é mais ou menos como ter de vender a alma para salvar o bolso. Dos clubes e do futebol português, no seu todo. Temos, pois, de admitir, por muito que nos custe, que é preciso voltar a jogar, seja lá como for, porque a alternativa será, porventura, bem pior.
São, na realidade, vários os países que procuram a todo o custo terminar os seus campeonatos. A Alemanha está pronta e de calendário já na mão; seguir-se-á certamente a Inglaterra, enquanto Portugal vai dando os seus passos para poder regressar no último fim de semana de maio ou talvez no primeiro de junho e em Espanha se aponta para datas semelhantes. Dos campeonatos mais importantes, talvez só o italiano venha a seguir os passos do francês e decida também não voltar a jogar esta temporada. Veremos.

Dito isto, parece claro que o principal fator para o regresso é financeiro. É, como já ouvi, a tentativa de salvar os dedos já não podendo o futebol pensar nos anéis. Talvez seja isso mesmo.

As contas parecem relativamente fáceis: o futebol, cá e lá fora, vive do dinheiro das televisões; sem jogos, não há transmissões, e sem transmissões as operadoras não pagam ao futebol.

Por isso, é preciso que se jogue, mesmo sem alma, sem público, sem espetáculo, sem a emoção que o público passa aos artistas e os artistas ao público, é preciso, pois, que se jogue, seja de que maneira for, com mais relva ou menos relva, mais estádio ou menos estádio, melhor ou pior condição física, atlética, técnica e psicológica, importante é que se jogue para que os clubes possam receber o dinheiro dos contratos televisivos e sobreviver à pandemia.
Não me venham é falar de interesse desportivo, verdade da competição ou salutar regresso ao jogo. Vem aí tudo… menos futebol!

VOLTANDO ao caso inglês, lá é assumido, por exemplo, que o objetivo do regresso é o de evitar que os clubes tenham que devolver vários milhões de euros de direitos de transmissão televisiva. Se não forem jogadas as 92 partidas que faltam para concluir esta Premier League, o valor a devolver chega a 762 milhões de libras; qualquer coisa como 872,5 milhões de euros.

Como a bilheteira representa apenas 13 por cento da receita dos clubes ingleses (de acordo com o último relatório sobre as finanças dos clubes da UEFA), o cálculo volta a ser muito fácil de fazer: é preciso concluir a temporada, mesmo sem adeptos, porque os valores colossais dos contratos televisivos (valor recorde em todo o mundo) permitem naturalmente aos clubes da Premier League superar esta tremenda crise sem a necessidade de vender sequer um bilhete para os jogos.
Se fosse pelo interesse desportivo, os ingleses seriam os que mais facilmente resolveriam a coisa: à data da interrupção do campeonato, no princípio de março, o Liverpool já tinha 25 pontos de vantagem sobre o City, 2.º classificado. Alguém põe em dúvida o campeão?

Por cá, à nossa diminuída dimensão e compreendidas as devidas proporções, o cenário é igual, porque se é verdade que a receita de bilheteira ainda tem expressão no volume total de receitas de Benfica, FC Porto ou Sporting, mesmo para estes essa é uma receita muito menos significativa do que o aquilo que se recebe dos direitos de transmissão.

Agora imaginem o que se passa em todos os restantes clubes, há muito habituados a fazerem alguma receita de público apenas quando são anfitriões dos chamados três grandes, muito em especial, como se sabe, do Benfica, que é o clube, como marca, claramente dominador do mercado nacional.
Receber o dinheiro da televisão é receber a salvação. Mesmo que seja uma mentirosa salvação.

QUANTO à questão desportiva, o nosso cenário é, evidentemente, mais vulnerável à polémica, porque seria precisa realmente alguma (mas indispensável) coragem para, caso não fosse possível jogar-se, atribuir o título ao FC Porto, líder à data da interrupção do campeonato.

Os franceses decidiram não jogar e deram o PSG como campeão, que liderava com 12 pontos de vantagem (e menos um jogo) sobre o Marselha do português André Villas-Boas. Mais fácil, como se viu.

No caso de não se poder jogar, porém, o que deve ou deverá prevalecer é o critério e não a vantagem pontual. E, portanto, se o nosso campeonato fosse dado por terminado, das duas uma, ou não haveria simplesmente campeão (entrando, mesmo assim, o FC Porto diretamente na Liga dos Campeões e o Benfica nas pré-eliminatórias) ou o campeão só poderia, evidentemente, ser o FC Porto, o líder quando o campeonato teve de ser interrompido por causa de uma tragédia que fez do mundo uma vítima.
Parece-me lógico e perfeitamente compreensível.

Tendo de se admitir o regresso da competição como mal menor para a sobrevivência, deveriam os principais responsáveis pela organização e os líderes dos clubes assumir este como um regime de verdadeira exceção e de interesse coletivo, e não se agarrarem à habitual mesquinhez dos interesses individuais.
Aconteça o que acontecer e façam como fizerem, juntando o regresso deste campeonato ao futuro do futebol nacional, este será certamente o maior teste de sempre à responsabilidade, sensatez, coragem, ousadia, caráter e dimensão dos dirigentes com responsabilidades no futebol profissional do País. Um teste e, ao mesmo tempo, talvez o maior dos desafios.
Veremos se recupero a fé!