A arbitragem apresentou o seu Kokçu (que afinal é o Binya)

OPINIÃO25.07.202306:30

Que o Conselho de Arbitragem decida referir-se aos adeptos num tom paternalista revela um finíssimo sentido de humor

D ESPEÇAM o estagiário. Foi a primeira coisa que me ocorreu após clicar no link. Dizia o título o seguinte: «Conselho de Arbitragem vai divulgar comunicações do VAR em 2023/2024». Achei que era demasiado bom para acreditar, e assim foi. O estagiário entusiasmou-se, e quando entrei no link havia uma importante alteração, que faz toda a diferença. Afinal, explica a notícia, o CA vai divulgar «algumas» comunicações do VAR em 2023/2024. Ênfase em algumas. Enorme ênfase em algumas. O pobre do estagiário que fica sempre com a responsabilidade não tinha culpa nenhuma. Limitou-se a corrigir uma peça publicada com algum excesso de entusiasmo, acrescentando-lhe apenas uma palavra, suficiente para repor a verdade da notícia e juntar-lhe a falta de transparência a que já estamos habituados.

Vale a pena ler o comunicado na íntegra, primeiro porque imagino que este anúncio não tenha sido feito de ânimo leve, antes com entusiasmo e orgulho; em segundo lugar, porque as palavras destes anúncios tendem a ser cuidadosamente escolhidas, para demonstrar uma intenção concreta ou, se correr mal, uma admissão involuntária. 

Estamos em julho. Todos, até mesmo os dirigentes que tutelam a modalidade, olham para o defeso como uma oportunidade de melhorar o planeamento desportivo e o seu plantel. Pode também dar-se o caso de estarmos perante uma equipa vencedora, que decide nada fazer para melhorar em relação à época anterior. Depois de anos sem mexidas, a equipa prodigiosa do Conselho de Arbitragem decidiu ir ao mercado e apresentar o seu Kokçu. Finalmente vamos poder ouvir as comunicações do VAR. O objetivo é «pedagógico», explica o comunicado logo nas primeiras linhas, «na linha do que sempre considerou ser a prática adequada.» Uma pessoa lê e não sabe se há-de rir ou chorar com a suposta ambição pedagógica do CA. Se for como eu, o leitor coçou a cabeça e perguntou a si mesmo em que momentos, ao longo da sua existência, este Conselho de Arbitragem revelou um sentido pedagógico. Se for como eu, também não se lembra de uma única ocasião.

Conselho de Arbitragem anunciou que vai divulgar, uma vez por mês, comunicações entre árbitros e VAR


Logo depois, o comunicado explica que já foram divulgados áudios das comunicações com o VAR, reza a história, no ano de 2017, mas que isso apenas contribuiu para aumentar o ruído. Não estávamos prontos enquanto civilização. Felizmente, explica o comunicado, sete anos depois de ter lançado uma tecnologia com os pés, este organismo «entende que existe suficiente conhecimento e maturidade entre agentes do futebol e adeptos, o que permitirá tornar esta divulgação algo normal e útil.» 

Eu pedi ao meu editor que colocasse em negrito, assim com as aspas, não vá alguém pensar que a frase é uma deturpação minha. Repito, as palavras nunca são escolhidas ao acaso quando se trata de um anúncio importante. Ora, eu até encaro com normalidade a referência do Conselho de Arbitragem a essa abstração que dá pelo nome de «agentes». Percebo que tenham de ser abstratos. Não seria o momento - nunca é, ninguém gosta de ser despromovido - de fazer uma referência direta a alguns desses «agentes», amplamente reconhecidos, que há anos exercem toda a coação e mais alguma sobre os tutelados por este mesmo Conselho de Arbitragem. Por incrível que pareça, não foi essa a parte que mais me incomodou. A parte que mais me chateou foi quando falaram sobre mim. Que este organismo decida referir-se aos «adeptos» num tom paternalista, como se de facto alguém no Conselho de Arbitragem tivesse passado os últimos sete anos a educar-nos, pacientemente a preparar-nos para uma idade adulta que, agora sim, nos permite ouvir as comunicações do VAR, revela um finíssimo sentido de humor. Que o façam, não após sete anos, mas após décadas de subserviência aos ditos agentes que aqui criticam, devia ser o suficiente para não levar demasiado a sério este comunicado - que é, aliás, aquilo que habitualmente faço. Desta vez não consegui ignorar, por isso chamemos às coisas aquilo que são. O Conselho de Arbitragem é um dos principais «agentes» provocadores de muita da selvajaria, imaturidade, desconfiança e desistência de muitos adeptos em relação ao nosso futebol. Se isso alguma vez justificará violência verbal ou física? Se desresponsabiliza as ações imaturas de alguns adeptos? Jamais, como já aqui disse, inclusive contra adeptos do meu clube. Mas podiam e deviam poupar-se a esta tentativa algo embaraçosa de isolar o papel do Conselho de Arbitragem como se esse fosse uma vítima do futebol português e não um dos seus maiores provocadores, por ação ou omissão. 

Voltemos à palavra-chave: algumas. Serão só algumas comunicações do VAR. Ora, a conclusão é simples. Será nomeado uma espécie de curador de comunicações, ou então reunir-se-ão os membros do CA para tomar a decisão de escolher que comunicações serão divulgadas. Em princípio serão os mesmos que nomeiam os árbitros, muitas vezes sem uma justificação válida (saudosa ambição pedagógica), os mesmos que protelam decisões importantes ou antecipam outras sem que se perceba porquê, os mesmos que promovem e despromovem sem um critério consistente, dando por vezes até a sensação de terem um serviço à la carte, da mesma forma que alguns restaurantes têm um menu secreto só para alguns clientes fiéis. Será este o conjunto de decisores que deve escolher algumas comunicações do VAR? 

Penso que já se tornou claro por esta altura: o Conselho de Arbitragem convenceu-se de que estava a apresentar o seu Kokçu, um médio cerebral com visão de helicóptero capaz de mudar o jogo em que participa, mas afinal quem apareceu em campo foi um tal de Gilles Binya. Em vez da visão helicóptero levámos todos uma entrada a pés juntos de um jogador com tijolos no lugar dos pés. Não surpreende quem tenha visto jogar o camaronês, como não surpreenderá quem tenha acompanhado o Conselho da Arbitragem ao longo dos anos. Em condições normais este jogador seria expulso, não se desse o caso de o árbitro obedecer ao Conselho de Arbitragem.

Pensando bem, o comunicado cumpre a tal ambição pedagógica do CA, mesmo que de forma involuntária. Termina explicando que se «avaliará o impacto desta decisão no decorrer da temporada e mantê-la-á se entender que são inequívocos os benefícios para o futebol e para a compreensão do trabalho dos agentes de arbitragem.» É assim uma espécie de anúncio de liberdade condicional destinado aos adeptos. A bola está agora do nosso lado, caro leitor. Se nos comportarmos bem e mostrarmos que somos merecedores deste Conselho de Arbitragem, talvez, quem sabe, as comunicações com o VAR se mantenham, ou nos deixem ouvir mais algumas - ou talvez deva seguir o meu primeiro instinto sempre leio estes comunicados, que é não levar estas pessoas demasiado a sério.