ENTREVISTA A BOLA «Vou ser sempre, orgulhosamente, o Girão do hóquei»

HÓQUEI EM PATINS26.10.202409:30

Na última época no Sporting, guarda-redes olha para o trajeto na modalidade com sentimento de dever cumprido. Lá em casa eram todos... portistas

Ângelo Girão é, aos 35 anos, um dos símbolos do hóquei em patins português. O hoquista visitou A BOLA para falar sem reservas sobre o amor ao hóquei que o moldou, até pelas atitudes negativas que já teve. O internacional português deixou a Seleção Nacional no último Mundial, no qual Portugal ficou em quarto lugar. No final da temporada vai deixar o Sporting. Girão admite que não queria sair, mas teve de aceitar a decisão do clube. Só quer ser feliz até ao final da época ganhando títulos. Um deles joga-se este sábado em Oliveira de Azeméis: Taça Continental. O Sporting joga com o Follonica a meia-final, a partir das 14 horas.

— Quem é o Ângelo Girão aos 35 anos, com tudo aquilo que o hóquei em patins já te deu?

— Pessoalmente, acho que fui mudando um bocado ao longo da minha carreira. Cresci muito ao longo destes últimos anos, sou obviamente diferente pelas minhas vivências, quer dentro quer fora de campo. Na parte desportiva, por tudo o que engloba jogar num clube como o Sporting, fui crescendo. Sou obrigatoriamente uma pessoa diferente, para melhor. Antes era muito agreste. Era muito focado no erro e não nas coisas positivas. Queria muito chegar ao topo da montanha, trilhava o caminho quase a eito e todos os que estavam comigo sabiam que não podia haver falhas. Não podia haver espaço a errarmos. Chego ao Sporting, um clube gigante que estava fora do hóquei em patins há quase 20 anos, e os dois rivais diretos, o FC Porto e o Benfica, estavam anos-luz à nossa frente. Este caminho teve de ser feito, a ferros. Tivemos de ganhar o nosso espaço. As equipas que já ocupavam esse espaço não queriam cedê-lo e nós tivemos de entrar a ferros. Claramente que sinto que neste momento tenho uma maneira de ver as coisas diferentes. Ainda continuo a fazer coisas de que não me orgulho, sou a primeira pessoa a dizer que não estive bem, a dar a mão à palmatória, mas sinto que sou um Girão diferente.

— Nesse Girão diferente, nesse caminho que traçavas para chegar lá e às vezes nem sempre da melhor forma, seres guarda-redes influenciou alguma coisa?

— Acho que tem a ver com a minha personalidade. Eu sou muito competitivo, não só no hóquei em patins, mas às vezes, fora de campo, a minha competitividade, leva-me a fazer coisas que não devia fazer. Isso até é motivo de brincadeira e dos meus amigos gozarem comigo. Claro que o guarda-redes do hóquei costuma dizer-se que é mais de meia equipa, mas eu acho que isto tem a ver mais com a minha personalidade e não com a minha posição em campo.

— Ângelo, o currículo é extenso. Ganhaste tudo o que querias ganhar ou ainda tens muito mais que queres conquistar?

— Tenho muito mais que quero ganhar. Pessoalmente, estou orgulhoso daquilo que consegui até hoje, mas isso já é passado. Neste momento tenho pela frente quatro ou cinco títulos que podemos ganhar este ano e eu quero ganhá-los todos. Agora não pode ser é passarmos de bestas a bestiais e de bestiais a bestas muito rápido. As pessoas têm de entender que se trabalha bem em muitos sítios. Não é só no Sporting ou na Seleção Portuguesa que se trabalha bem. As outras seleções, e outros clubes, também trabalham muito bem e todos queremos ganhar. Ainda agora no Campeonato do Mundo fomos eliminados. Há uma linha muito ténue entre o ganhar e o perder. Mas nós temos sempre a vontade e o querer de ganhar todos os títulos e todos os jogos que disputamos.

— Foste mais feliz a ganhar pela Seleção ou pelos clubes?

— Fui muito feliz a ganhar pelos clubes. Tive a sorte e o privilégio de ganhar em quase todo o lado onde joguei. Só não ganhei na Académica de Espinho, mas a minha maior vitória foi conseguir que a Académica de Espinho ficasse sempre na primeira divisão. Fui muito feliz nas minhas passagens pelos clubes e nesta passagem pelo Sporting estou a ser extremamente feliz. Tive um dos melhores títulos da minha carreira que foi ser campeão nacional pelo Valongo, algo que nunca tinha acontecido no hóquei em patins, a equipa com um pressuposto muito baixo, regional, que aposta muito no hóquei e é uma das melhores equipas formadoras, mas não é conhecida. E conseguimos ser campeões no Valongo. Consegui que a minha passagem pelo Sporting ficasse marcada por títulos que o clube não ganhava há 30 e há 40 anos, e nós ganhámos por mais do que uma vez esses títulos. O meu sonho de carreira era representar o meu país. O meu sonho de carreira era poder cantar o hino dentro de campo. Sou português com muito orgulho e felizmente consegui ganhar sete ou oito títulos por Portugal e isso enche-me de orgulho. Ser campeão do mundo por Portugal, pelo nosso país, foi a melhor coisa que me aconteceu na vida desportivamente.

— Sporting agora, já falaste do Valongo e do Académico de Espinho, mas começaste no FC Porto. Era tudo portista lá em casa?

— Tudo. Eu comecei a patinar no Vigorosa, mas não tive jogos oficiais. Fiz dois ou três jogos de miúdos e depois fui para o FC Porto. O meu irmão foi contratado e eu também fui. O meu pai era portista, a minha mãe também assim como toda a gente lá em casa. O meu pai jogou basquetebol no FC Porto e um dos sonhos dele era que nós jogássemos no FC Porto. E conseguimos cumprir esse sonho. Sinto que o meu pai tem orgulho naquilo que eu e o meu irmão conseguimos fazer dentro de campo.

— Como é que alguém, nascendo numa família portista, consegue conquistar o espaço da forma como tu conseguiste conquistar no Sporting desde 2014?

— Com trabalho, dedicação, querer e com muita vontade. Eu abracei o Sporting de uma maneira proporcional à maneira que o Sporting me abraçou a mim. Devo muito ao clube e devo muito às pessoas que acreditaram em mim. Foi-me dito, na altura, para eu não ter medo de abraçar este projeto porque nós íamos ganhar e íamos ter condições para ganhar. E, ao longo destes dez anos, vai para o 11.º ano, o Sporting nunca falhou em termos de condições. O Sporting sempre me proporcionou, e nos proporcionou condições de trabalho incríveis e excecionais. O clube contratou jogadores de nomeada internacional e só por isso é que conseguimos também ganhar os títulos que ganhámos. Claramente sinto-me em casa, os adeptos abraçaram-me de uma maneira que eu não estava à espera. Nunca tinha jogado num clube grande a nível sénior e chegar aqui ao Sporting e ver esta grandeza, esta onda verde que existe, e o carinho que sinto, isso não se paga. Isso é algo que vou levar para sempre no meu coração. Vou ser sempre eternamente agradecido ao Sporting e aos sportinguistas por tudo que me deram nestes anos.

— O que é que o Sporting significa para ti, numa altura em que inicias a última temporada como jogador do clube?

— O Sporting para mim significa a minha casa. Sinto uma ligação emocional muito grande ao clube porque sinto que fiz parte deste início que o Sporting teve, este recomeço. Sinto que fiz parte deste crescimento e das lutas, nas quais eu se calhar nem tinha de me ter metido. A estrutura se calhar não era assim tão forte então, como tu dizes, eu como cabeça de cartaz, se calhar tive de saltar muitas vezes para a frente de coisas que não eram da minha lide, mas eu senti isto como um desafio pessoal. Lembro-me que no primeiro ano o Benfica já tinha uma superequipa e nós tínhamos uma equipa de remendos porque só depois ficou oficial que passávamos para o clube. A equipa do Sporting só foi feita no final da época de 2014/2015. Lembro-me que no início fomos goleados em casa, no Livramento, pelo Benfica, e no final do jogo o pavilhão completamente cheio, com todos a cantar, a baterem palmas e a puxarem por nós. Esse momento ficou-me gravado e pensei que aqueles adeptos mereciam tudo. É um sentimento realmente muito bom. Não me posso esquecer que isto tinha de acabar um dia. Eu não queria que acabasse agora, eu gostava muito de acabar a carreira no Sporting, mas isto é a vida, é normal. Isto acontece.

— Mas aceitaste que não possas acabar a carreira no Sporting?

— Ao início foi muito complicado porque com esta ligação toda acabamos por não pensar tanto no clube e pensamos em nós. Naquilo que nós fizemos, e que merecíamos, e naquilo que eu achava que poderia ter sido feito. Mas, se pensarmos no ponto de vista do clube, o clube está a fazer o que tem de ser feito. Está a fazer uma renovação, os atletas não são eternos e o clube é centenário. O que fica é o Sporting, não os atletas. É preciso pensar naquilo que é o melhor para o clube. Eles têm de fazer ajustes para os atletas que aí vêm e por isso não há nada a dizer. Estou extremamente bem resolvido em relação a tudo isso. Vou desejar sempre é a melhor sorte do mundo ao Sporting. Eu enquanto estes jogadores aqui estiverem acho que vou continuar um bocado no balneário porque sinto que um bocadinho de mim vai estar lá.

— Já há novo caminho traçado?

— Neste momento ainda não há nada certo. O caminho está a ser tratado pelo meu agente, o Ricardo Oliveira [Caio]. O Sporting continua a cumprir comigo religiosamente com tudo o que definiu e eu também. Nunca hei de querer ser um ponto a menos no balneário do Sporting. Primeiro porque sou capitão, depois porque tenho muitos anos de casa e o que quero ser é um ponto mais no balneário. Vou ajudar a clube até ao último dia em que estiver dentro daquele balneário.

— Nesse objetivo de ajudares até ao último dia, começaram o campeonato com vitória frente ao HC Braga. Acabar como campeão será certamente um objetivo, até porque o Sporting já não é desde 2020-2021.

— Não somos favoritos. O Benfica tem uma superequipa, se calhar a melhor equipa que alguma vez foi montada em Portugal, de hóquei em patins. O FC Porto é o atual campeão nacional e nós aparecemos como atuais campeões europeus. O que o Benfica tem e o que o FC Porto tem, a nós não nos diz respeito. Aquilo que posso garantir é que nós, enquanto Sporting, vamos dar tudo aquilo que temos, e o que não temos, para ganhar todos os jogos. Nós não temos medo de ninguém. Vamos à luta, seja como for. Nós, este fim de semana, temos a Taça Continental em Oliveira de Azeméis. Temos o primeiro jogo contra a Follonica, no sábado [hoje], e aproveito para chamar todos os adeptos do Sporting que estão perto dessa zona para nos irem apoiar. Está mais um título europeu em disputa e sendo este o meu último ano, gostava muito de continuar a contribuir para o Museu do Sporting. E seria então a terceira Taça Continental.

— É esse espírito vencedor que te agrada?

— Sim, não existe outra mentalidade para mim. Não existe outra mentalidade para estar no desporto. Quando representamos clubes com esta dimensão, temos a obrigação de pensar sempre em ganhar. Independentemente daquilo que os outros estão a fazer. Nós temos de nos focar em nós e pensar em ganhar. Não temos medo de jogar contra ninguém, independentemente dos nomes que estão do outro lado. Sabendo à partida que vamos ter muitas dificuldades, mas nós não temos medo e vamos à luta.

— Na Seleção é que já não podes ir à luta pois acabaste a carreira de quinas ao peito a 22 de setembro. Já viste as imagens da despedida muitas vezes?

— Acabei por ver poucas vezes, mas porque são imagens duras em termos psicológicos para mim. O ponto mais alto da minha carreira foi representar o meu país. Foi jogar por Portugal, vestir aquela camisola. Tive a sorte de representar a Seleção muitos e muitos anos. Tive a sorte, ao longo destes 21 anos que representei a Seleção, de ter pessoas que acreditaram em mim. Que acreditavam no meu valor e que eu podia trazer algo à Seleção. Tenho uma ligação emocional muito forte com a federação e com os jogadores. Tenho jogadores naquele balneário que são meus amigos e com os quais falo quando tenho um problema pessoal. Tocou-me muito no coração ver que eles estavam tão tristes como eu, por acabar este ciclo. Vou levar tudo isto para a minha vida pois ganhei muito mais do que títulos. As amizades vou levá-las para o resto da minha vida. Esses momentos vão estar para sempre gravados no meu coração.

— Gerir todas essas emoções foi difícil para ti?

— Acho que eu fui um dos grandes culpados pela derrota que nós tivemos no jogo contra a Itália. O dia do jogo foi mesmo muito duro para mim. Acordei a chorar. No sábado à noite nós fomos eliminados pela Espanha e eu não estava à espera de perder esse jogo. Nós estamos tão imbuídos naquele espírito do ganhar que não me tinha caído a ficha. Lembro-me que fiquei a falar com o Rafa, com o Xano e com o João, no quarto, muito tempo. Fomo-nos deitar e no dia a seguir acordo e caiu-me tudo… Percebi que, para mim, aquilo tudo acabou. Acabou esta viagem. Foi um dia muito difícil. E para aquelas pessoas que estavam ali ao lado acredito que não tenha sido fácil ver-me com aquele semblante, com aquela aura negativa. E acredito que fui um dos grandes culpados desta derrota. Sinto que fui um dos maiores culpados por este quarto lugar que nós acabámos por ocupar. Não fiz aquilo que costumo fazer para ajudar a minha equipa a ganhar. Não contribuí para que os meus estivessem ao melhor nível para ganhar. O que é certo é que a geração anterior à nossa raramente chegava às finais do Mundial e não ganhava Europeus. Também tiveram azar pois se calhar apanharam a melhor geração espanhola de todos os tempos. Nós, nesta geração, ganhámos e acho que devíamos ter ganho mais. Nós devíamos ter estado com a taça mais vezes nas mãos. Há várias vitórias que esta geração podia ter tido, e que não teve, por culpa própria. Esta geração devia ter tido mais títulos.

— Após aquele dia 22 de setembro houve alguma mensagem que te surpreendeu?

— Tive duas ou três de árbitros, internacionais e portugueses. Tive mensagens bastante curiosas, e senti-me mesmo honrado, porque tive vários jogadores, diretores e treinadores no Mundial que vieram ter comigo, deram-me um abraço e agradeceram a rivalidade. Isso a mim enche-me o coração. Sei que tenho uma personalidade complicada a jogar. Faço muitas coisas que não devia, mas sentir que, no final de contas, conseguem entender que nunca fui contra eles, foi em prol da minha equipa que fiz isso para ganhar, encheu-me o coração. O Sérgio Maior, que é um árbitro espanhol, que acabou a carreira também naquele jogo, veio pedir-me para trocar a camisola comigo, e fiquei mesmo feliz. Primeiro reconheço-lhe uma competência gigante, depois chateei-o durante muitos anos, muitas vezes, e no final até recordámos algumas peripécias.

— O que fica dessa caminhada na Seleção? As memórias?

— As memórias e acima de tudo as amizades. Ganhei amigos para a minha vida. Ganhei pessoas de quem gosto muito. A maior parte dos atletas com quem eu partilhei o balneário foi assim e mantenho uma relação pessoal com eles. Muitos são amigos de casa.

— Quando anunciaste que ias deixar a Seleção, disseste que o facto de seres pai, e de teres agora uma Benedita na tua vida, fazia com que olhasses para a vida de outra forma. Até que ponto é que a Benedita, e a Matilde, a tua companheira, te moldaram nesta caminhada?

— Acho que elas, sem pedirem nada, pedem tudo. Quero ser um pai presente, quero poder estar com a minha filha. A Seleção Nacional obriga-nos a muito tempo de estágio. Elas, como é óbvio, adoravam ver o pai e o namorado, marido, neste caso, na Seleção, a representar Portugal. Mas eu queria sair a um nível elevado. Não queria ser um fardo e por ser o Girão ter de estar na Seleção. Isto deixa-me completamente tranquilo em relação ao meu trajeto. Joguei porque tinha qualidade para jogar. Fui chamado porque tinha qualidade para ser chamado e saí num patamar grande.

— E vais continuar no hóquei em patins quando acabares a carreira de jogador ou vais arrumar mesmo os patins?

— Vou arrumo os patins, mas vou continuar a gostar de hóquei e a ir aos pavilhões. Vou continuar a ser adepto de hóquei. Neste momento, não há perspetiva nenhuma para continuar ligado ao hóquei em patins. Tenho as minhas empresas, porque tenho perspetivado o pós-carreira. Acho que isso é uma coisa que cada vez mais está a ser falada. Os jogadores têm de começar a entender que quanto mais cedo conseguirmos perspetivar o futuro, melhor é. Não tenho nenhuma perspetiva de ficar ligado ao hóquei em patins. Não sei o que é que o futuro me reserva. Estou aberto a outras possibilidades, mas neste momento a minha vida está estruturada noutro sentido. Os jogadores têm de pensar que isto um dia vai acabar, e que as luzes não vão estar sempre ligadas. E é preciso termos consciência que quando as luzes se apagarem, apagam-se de vez.

— Quando as luzes se apagarem, vais ser sempre o Girão do hóquei?

— Eu acho que sim. E com orgulho, mas não me orgulho de algumas coisas que fiz, e arrependo-me bastante de muita coisa que fiz ao longo da minha carreira. Mas vou ser sempre orgulhosamente o Girão do hóquei.

— Qual o maior arrependimento?

- As lutas que eu fiz, e a minha personalidade tão agressiva. Ou seja, eu às vezes fazia as coisas... Dentro do campo foram vários episódios. Tive um que foi muito falado, há dois anos, mas que não teve a ver com o Sporting nem com o Benfica [com o jogador argentino Lucas Ordoñez]. Teve que ver com a Argentina e com Portugal e a final do Campeonato do Mundo. Já está resolvido. Nunca falámos diretamente, mas acho que ficou subentendido aos dois o que é que se passou e o porquê das coisas. Neste momento temos uma relação completamente tranquila. Cumprimentamo-nos, não há problema nenhum. Sim, arrependo-me, se calhar da maneira como o fiz… Há outros episódios dentro de campo de que me arrependo. Porque o querer tanto ganhar, às vezes levou-me a fazer coisas de que me arrependi. É difícil… Quando ganhamos, sou muito bom porque faço aquilo. Quando perdemos, sou muito mau. Agora, claramente, tenho um orgulho gigante naquilo que fiz.