Tiago Moutinho diz que foi bebendo um pouco de várias ideias até criar a sua, numa carreira em que tem procurado valorizar as competências sociais e a relação com os jogadores
- Como é que o Tiago Moutinho vê o Tiago Moutinho treinador? E vou já colocar aqui um parêntesis, porque já te ouvi dizer que morrer com as próprias ideias não é coisa boa, ou seja, defendes que te tens de adaptar aos jogadores, como, por exemplo, no OFI Creta, que com o Sá Pinto tiveste de abdicar da saída em construção desde a baliza…
- Podíamos estar aqui horas a discutir ideias. Nós, treinadores, temos as nossas ideias, que fomos construindo com a nossa experiência, as nossas vivências, não só no contexto desportivo, mas ainda familiar e da educação. Tenho as minhas e gosto de implementá-las, é indiscutível, mas, quando vejo que algumas coisas não estão a corrigir, mal seria se não pensasse mudar. Temos de estar atentos a isso, a quando é necessário mudar. Mudar e não ter medo de dizer que errámos ou que estávamos num caminho errado. Às vezes, olhamos para um exercício, avaliamos e dizemos: «Estes jogadores não estiveram aqui, não estavam empenhados, mas se calhar o próprio exercício é que estava mal. Ou temos de reduzir o espaço ou não foi bem explicado, e às vezes é isso, é também olharmos para nós. O erro não está só do lado de lá, também pode estar do nosso. Ao longo da minha vida, mesmo como treinador principal, quis sempre implementar as minhas ideias, os meus princípios, mas muitas vezes não dá e temos de mudá-los, porque vamos melhorar todos. Não só o treinador melhora, mas também a equipa técnica e os jogadores. No OFI, com o Ricardo Sá Pinto, tínhamos uma ideia muito clara, e estamos a falar de 2013, de sair a jogar curto na primeira fase de construção. Trabalhámos muito isso, mas realmente não tínhamos jogadores com essa qualidade, por muito que insistíssemos. Uma ideia não pode morrer logo, temos de insistir, experimentar, viver, analisar, avaliar… e até tivemos dois jogos que acabámos por perder por erros individuais, pela nossa insistência. Não quer dizer que se fôssemos evoluindo os jogadores não iriam melhorar, porque há sempre espaço para melhorarem, mas também tínhamos outras soluções, de um futebol mais direto, com um jogador que tinha a capacidade também de segurar a bola, muito forte no jogo aéreo, no flick, a segurar de costas e a apoiar, aproveitando o apoio dos outros jogadores para uma segunda bola e, portanto, fomos começando a construir aí e realmente acabámos depois por terminar em sexto lugar, uma posição muito boa, e ainda atingimos a meia-final da taça, só perdendo a segunda mão com o Panathinaikos mesmo no final do jogo. Só o conseguimos porque mudámos um pouco a ideia. Se calhar, se insistíssemos, os resultados não iriam ser positivos. Hoje, sabemos que infelizmente se acredita pouco no processo ou dá-se pouco tempo ao processo do treinador e quando os resultados são negativos é mais fácil o treinador sair.
Tiago Moutinho teve curta experiência no Al Hussein, ao serviço do qual teve pela frente dificuldades inesperadas, e está de regresso a Portugal, em busca de novo projeto. O treinador conta várias peripécias, entre as quais a do jogo que começou com muito atraso, porque havia duas equipas já em campo
- A tua carreira começa em campo.
- Fui jogando futebol, mas não tinha muita qualidade e, por isso, investi na carreira académica e licenciei-me em Educação Física e Desporto. Quando terminei a licenciatura, estive dois anos em Barcelona, no INEF, e fiz em paralelo um mestrado em alto rendimento, na altura com a orientação do professor Paco Seirul.lo. Estamos a falar de 2006…
- Um dos grandes pensadores do futebol espanhol e único treinador a ser campeão europeu de futebol e andebol pelo Barcelona…
- Foi uma pessoa com quem eu aprendi muito, a ver futebol de uma forma diferente também. Fui ainda fazendo o doutoramento… terminei o mestrado, mas o doutoramento não… e o meu pai, que é doutorado em medicina, tal como o meu irmão, todos os dias diz «Aproveita para terminar o doutoramento em Atividade Física e Desporto»… Portanto, estava muito ligado à Psicologia do Desporto, mas fui enveredando pela carreira académica e investindo também no conhecimento… E depois... Estava a dar aulas de Educação Física no Porto e ao mesmo tempo no Ensino Superior, quando sou convidado pelo Ricardo Sá Pinto para integrar a equipa técnica dos sub-19 do Sporting. Seis meses depois estávamos na equipa A, a dois ou três dias de um jogo com o Legia Varsóvia. Foi a grande estreia no futebol profissional, se bem que como adjunto.
Treinador explica decisão de não renovar com a Briosa para depois decidir de novo emigrar, desta vez para a Jordânia, aceitando o convite do campeão Al Hussein
- E depois umas meias-finais da Liga Europa!
- Nesse ano, sim. Com um golo do Llorente, do Athletic Bilbao do Marcelo Bielsa. Recordo-me que nesse jogo, agora fazendo um parêntesis… Vencemos por 2-1 em casa e lembro-me que perdemos, eu, o resto da equipa técnica e o Ricardo Sá Pinto, muito tempo a ver jogos do Bielsa sem conseguir encontrar um padrão. Era o lateral-direito que muitas vezes aparecia do lado esquerdo a cruzar, o lateral-esquerdo muitas vezes aparecia ao primeiro poste a finalizar, portanto não havia um padrão. Era uma equipa difícil, na altura com Javi Martínez e já Llorente...
- E isso com bola, já sem ela era muito agressiva…
- Sim, sim. Mas voltando atrás, antes dos sub-19 do Sporting ainda estive como observador no União de Leiria com o Pedro Caixinha…
- Só te falta teres sido treinador de guarda-redes. Tenho uns amigos que te podem ajudar se estiveres interessado…
- [Risos] Só me falta ser treinador de guarda-redes, é verdade. Costumo brincar com os meus guarda-redes, com aquele exercício que é… vai a um poste, toca… dos anos 80, talvez… Sim, falta-me treinar guarda-redes, mas esse percurso como preparador físico e treinador adjunto em vários países e contextos permitiu-me, depois, quando iniciei a carreira como treinador principal, não na China, que ainda era formação, mas na Sanjoanense, estar ou sentir-me preparado para exercer as funções de treinador principal.
Tiago Moutinho recorda a passagem pelo Sporting, como adjunto de Sá Pinto, que contou com uma meia-final da Liga Europa com o Athletic Bilbao e a final da Taça com a Académica
- Isso é o teu percurso, mas com que ideias? És um treinador que gosta de ter bola, de futebol ofensivo, pressionar à frente?
- Hoje em dia, todo o treinador gosta de ter bola. Quem não gosta de ter bola, dominar o jogo, de pressionar alto, roubar a bola perto da baliza do adversário, ter muita gente em zonas de finalização, saber gerir ritmos quando temos que atacar, quando temos de muitas vezes levar o adversário a um lado para atacar o outro, ou cansar o adversário sem bola? Esse tipo de estratégias e ideias são comuns a muitos treinadores. Há pouco li uma entrevista do Ruben Amorim, que está na moda, como se costuma dizer, e bem, e ele disse uma coisa engraçada em que também me revejo. Não sou o melhor treinador a nível técnico, a nível tático ou de estratégia. Se fizéssemos aqui um exercício de gavetas, em que o treinador tem de ter uma gaveta com conteúdos de dimensão técnica, outra tática, psicológica, área da pedagogia… eu valorizo muito as relações humanas.
- Que é um lado muito importante…
- Muito importante. Quando termino as épocas e as pessoas vêm falar comigo e me perguntam sobre a relação com os jogadores, falo muito nas competências sociais. Não sou aquele treinador das palmadinhas nas costas, de dizer gosto muito de ti, nem é preciso isso, nem são os jantares, karts ou essas dinâmicas de grupo que se fazem, e também isso é importante…
- Mas é saber comunicar e para quem comunicar…
- É saber comunicar. Comunicar com todos, de maneira diferente, claro, mas não fugir da coerência nem do que somos. Porque o jogador sente-o. Se, às vezes, estiver a ser injusto, pelo menos estou a ser eu. Procuro não sê-lo, claro, mas quando acontece, apesar de ter de pedir desculpa, sou eu. Se enveredarmos por colocar a máscara ou tentarmos fazer coisas que não somos, o jogador percebe e, depois, se calhar, perde um pouco a confiança. Portanto, é importante sermos nós próprios e os jogadores saberem quem tu és. Eles sabem que posso entrar no balneário e dar um chuto numas garrafas ou um murro na mesa ou na porta, mas que continuo a ser eu, porque sou assim também. Isso é importante. Isso é uma relação que se vai construindo, não é? Lembro-me de um jogador, que dizia «eu gostei muito de trabalhar com o Tiago, mesmo não jogando muito» e que, mesmo assim, sentiu que foi evoluindo, aprendendo. Às vezes, isso é mais importante do que a equipa ter sido perfeita na pressão alta ou em alguns comportamentos com bola. Valorizo mais o facto de conseguir criar um objetivo comum, pelo qual todos lutem, independentemente se têm ou não mais tempo de jogo. Porque também gosto muito que os meus jogadores, quando têm de ir lá para dentro ou quando têm de ajudar a equipa, ajudem onde se sentem bem ou com as boas características que têm. Não gosto muito de pedir a um jogador que faça aquilo a que não esteja habituado ou com que não se sinta bem. Por isso é que o futebol é tão interessante, porque os jogadores são diferentes e dão coisas diferentes. Uma das coisas que gostei na Jordânia, por exemplo, é que tinha a possibilidade de convocar todos os jogadores. Aquilo para mim era perfeito, porque olhava para o jogo, pensava «preciso disto» e tinha ali o jogador certo. Se calhar com menos, iria ficar a perguntar-me porque tinha deixado um deles de fora, uma vez que teria sido importante para o jogo, e ter de obrigar outro a fazer aquilo porque o jogo está a pedi-lo. Gosto disto e os jogadores também se sentem bem nesse aspeto. O treino em si, o jogador ir feliz para os treinos, saber que evolui, que aprende, o não deixar jogadores fora, o ter cuidado na elaboração dos treinos é muito importante. Gosto de treinos intensos, sem muitas paragens. Gosto de estar dentro do treino e de corrigir. Só paro quando sinto necessidade. Às vezes, chamo um jogador ou corro ao seu lado enquanto dou uma indicação para que corrija um comportamento. E vou criando dessa forma jogadas, variantes e algumas situações para eles irem evoluindo em determinados comportamentos. Ligar os momentos do jogo é muito importante. Não só trabalhar o momento. Os momentos têm de ser ligados para haver uma sequência no treino e no exercício, e o jogador gosta disso, valoriza-o. Quando um jogador admira um treinador, é bom sinal. E não o admiram só porque é porreiro, porque diz umas coisas bonitas, mas porque identificam que é competente, sério, honesto, verdadeiro e comunica bem.
Tiago Moutinho recorda algumas histórias do antigo lateral, hoje treinador principal do Sporting, enquanto líder
- E acreditar nas ideias é o primeiro princípio.
- E acreditar nas ideias, acreditar nas ideias! Na Sanjoanense, na Académica e na Jordânia, claro, tínhamos de vencer… Sempre fui incutindo esse espírito de vencer. Gosto de entrar em todos os jogos para vencer. Se me perguntarem se prefiro lutar para subir para a Primeira Divisão ou estar numa equipa da Primeira, mas a saber que vai ser uma luta até ao fim pela permanência, prefiro estar numa equipa de Segunda Liga, porque me vou divertir mais. O divertir aqui é mais a minha imagem. Serei mais eu. Uma equipa mais ofensiva, uma equipa que ganhe, porque só assim é que faz sentido. Não consigo preparar uma equipa para não perder, uma equipa para segurar um ponto, para defender ou para estar em bloco baixo.
- Que influência é que tem o Paco Seirul.lo em tudo isso? A metodologia dele é o treino integrado. Quais são as parecenças com a periodização tática do professor Vítor Frade? Havia muito, nos anos 80 e 90, a separação da parte física do trabalho com bola no treino e ambas as metodologias defendem a fusão…
- Os aspetos táticos primeiro, e depois a partir daí… Ao longo da minha vida, sempre fui apaixonado pelo futebol, sobretudo desde os 6 anos. Recordo-me de ver os jogos do México 86 e fazer a caderneta de cromos. É aquela primeira grande imagem a ver futebol e gostava muito de futebol, apesar de não ter ninguém na família ligado ao meio. Sempre fui apaixonado e, ao longo da minha vida, fui vendo muitos jogos, treinos e vivia perto do Vidal Pinheiro, o antigo Vidal Pinheiro…
- Com a escadinha...
- Com a escadinha lá em cima, é verdade, e bancadas de madeira, exatamente. Que, de vez em quando, tremiam e era um «Ai, Jesus». E eu ia ver… Fui ver muitos jogos, ia para trás da baliza, que era perto da minha casa, e pedia sempre ao senhor… Ficava ali à espera e pedia sempre ao senhor para entrar. Quando havia aqueles torniquetes... Ele pegava-me ao colo e eu entrava e via. E lembro-me muito bem do Filipovic, do Carlos Manuel, de ir ver treinos. Também mais tarde fui fazer o meu estágio da Universidade ao Salgueiros e lembro-me perfeitamente de ver… Era à quarta-feira, não era? Calçavam as sapatilhas, não havia chuteiras e bola, e não estamos a falar assim de há tanto tempo. Quando vou para a Espanha, também estou a iniciar um pouco os estudos no futebol. Fiz a licenciatura no ISMAI, não fui da área da periodização tática, de Vítor Frade, tive professores como João Aroso e José Neto, e depois o Paco Seirul.lo fez-me também ver a questão do treino integrado, de como numa sessão conseguir trabalhar todas essas dimensões, sempre evoluindo na ideia principal do jogo, na forma de jogar. E é um pouco disso que a periodização tática também fala.
- Com o José Mourinho como grande estandarte…
- Com o José Mourinho, sim. Uma coisa gira, porque tenho amigos da periodização tática e que levam isso muito a sério, e bem, não estou a criticar, mas costumo dizer que fui bebendo um bocadinho de cada e depois é muito meu. As coisas são muito minhas, porém fui bebendo um bocadinho de cada e gosto de conversar. Eu e o próprio Vítor Matos [treinador-adjunto de Pep Lijnders no Salzburgo, ex-Liverpool], que ambos conhecemos, muitas vezes ficamos horas e horas a falar. O engraçado é que muitas vezes vou para o treino sem relógio. Aprendemos na Universidade que este exercício tem de ter... São três períodos de três minutos, com um minuto de recuperação, tal, tal, tal, a x%, não sei o quê… Aprendi isso, estudei isso, mas muitas vezes acabo o treino, não tenho relógio, e pergunto a alguém: «Fizemos isto? Era para fazer isto, não é?» Quando faço o planeamento do treino claro que estipulamos três períodos de manutenção de posse de bola, fazemos três períodos de dois minutos, três minutos, o que for. Este exercício vamos fazer aqui dois períodos de dez, o que for. Mas não levo relógio e depois, no fim, acaba por bater. É muito a sensibilidade. Às vezes, estamos num exercício e está a correr tão bem, e se estamos a conseguir aquilo que queremos porquê terminar? Às vezes, estamos ali, OK, depois quando vemos que está, piu, ok, vamos mudar. Agora, pode ser duas equipas por dentro e uma por fora, agora troca. E se calhar troca, o exercício está a correr bem, mas atinge ali um momento em que não e piu. Depois, se calhar, tivemos dois minutos num período, no outro dois minutos e meio, mas na verdade o importante é que aquilo esteja a fluir e que eles estejam a adquirir algum conhecimento, não é? Não sou muito de fechar o treino, o exercício com o tempo, e isso às vezes acontece muito. Por isso é que fui bebendo um bocadinho das coisas. Privilegio muito o bem-estar do jogador. Nós, treinadores, dependemos muito dos jogadores.
- Claro que eles também gostam mais de trabalhar com bola em todos os exercícios.
- Sim, sem dúvida, mas por exemplo na Jordânia tinha um preparador físico local que dizia «Mister, nós aqui fazemos pelo menos 25, 30 minutos sem bola, com alguns exercícios, os jogadores estão habituados.» Isto em Portugal seria impensável, não o faria, mas, lá está, o jogador da Jordânia sente-se bem a fazê-lo e deixei fazer. Também não queria cortar logo com algo com que se sentiam bem, algo cultural, porque depois iria criar ali logo uma desconfiança do treinador que vem de fora. É engraçado que, agora na Académica, o Fábio, o nosso preparador físico, dizia-me: «Ó mister, no meio destes exercícios, vamos fazer aqui umas aberturas, uma competição, e eles «boa». Às vezes, fazer-se exercícios sem bola, mais na vertente física, também é bom, se o jogador se sente bem. É preciso é saber o timing, quando o fazemos, com quem, se no início, no meio ou no final do treino. Às vezes, isso resulta, é a tal sensibilidade que vamos tendo. Falando um pouco também da questão da Sport Science, na Académica não tínhamos GPS, na Sanjoanense sim e gosto de ter os dados. Os dados são importantes, mas, sim, é preciso saber usar. Prefiro muito mais qualificar do que quantificar, prefiro mais a qualidade, o que não quer dizer que as duas coisas não sejam possíveis e são…
- Lembro-me sempre de uma frase do Cruijff, que dizia que «se corres muito e porque estás fora de posição». Quando vem à tona as estatísticas e os quilómetros percorridos durante um jogo, não sabemos se aquele jogador correu bem ou mal, ou na percentagem de passe se os passes foram fáceis, difíceis ou em que parte do terreno foram feitos… As estatísticas têm muito mais do que aquilo que nos chega às mãos em cada encontro.
- Sabemos que, em média, até pelas diferentes posições que ocupam, determinados jogadores percorrem determinado número de quilómetros. Agora, quando planeamos o treino também temos atenção a isso. E, se fizermos muitas vezes treinos em jogo jogado, muitas vezes aproximamo-nos desses valores, que são importantes. No entanto, também sei de muitos treinadores que utilizam isso também… porque o treinador ladrão de ideias também gosta de saber o que se faz e procuro saber o que outros treinadores fazem. Muitas vezes há um valor no final do treino e naquele treino esses treinadores queriam ter chegado a outro valor. Então, depois no final o jogador fica a fazer algum trabalho mais físico, mais analítico para chegar a esse valor. Portanto, há muita gente que faz isso, também é uma forma para chegar ao valor que aquele jogador tinha de fazer na sessão. Prefiro a qualidade do treino, porque depois gosto de ver as equipas com as ideias de jogo e com a forma de jogar, aquilo que vamos treinar. É o melhor que pode acontecer, quando treinamos algo e depois no jogo isso aparece. Muitas vezes quem está em casa não tem essa sensibilidade, não se apercebe, mas eu e a minha equipa técnica divertimo-nos, até mais do que num golo, a ver o jogo, no dia seguinte ou mesmo no momento, quando aparecem determinados comportamentos que trabalhámos. E, depois, é a criatividade dos jogadores. Não gosto de formatar as coisas. As coisas são muitas vezes assim: a bola entra no lateral-esquerdo, o extremo-esquerdo tem de vir às zonas interiores e o médio interior daquela zona entra no corredor, por exemplo; e trabalhar este movimento. Depois, claro, quem nos observa sabe que aquilo é padrão, depois já sabe como defender. Se calhar vai limitar um pouco a criatividade dos jogadores, porque naquele momento até podiam tomar outras decisões, mas porque têm aquilo muito trabalhado, automatizado, fazem-no. Por isso, também gosto de, ao longo dos treinos, da semana, do ano, ir criando soluções para que eles depois também percebam qual é a melhor decisão que podem tomar. Criar jogadores inteligentes, para que em determinado momento tomem as melhores decisões em conjunto, é o mais difícil, é o verdadeiro trabalho de um treinador para mim. E, se existir um bom relacionamento, eles estão mais aptos e mais bem preparados para aceitarem as ideias do treinador. Isso é fundamental.
- Não queria acabar esta conversa sem tocar em várias outras etapas do teu percurso, também importantes. O que é que cada uma delas etapas contribuiu para a tua carreira?
- Passei por muitos clubes, não é? Muitos e importantes, como o Sporting, o Estrela Vermelha, da Sérvia, o Atromitos, o OFI Creta… Uma liga grega, a da Sérvia, o Sporting, o Ponferradina, de uma segunda liga espanhola, que é brutal. A experiência que tive em Espanha foi muito boa, porque o nível era muito alto... Foi o ano de Covid, foi mau.
- Estiveste em estádios vazios quando deviam estar cheios, não é?
- Sim, foi uma pena jogar num Riazor vazio. Ou em Saragoça, ou outros grandes estádios. Mas foi um ano de aprendizagem. Recordo-me que o primeiro jogo que fiz em Espanha foi em Cádiz, com o Ponferradina. Um estádio enorme, cheio, cheio. Incrível! A segunda liga espanhola é brutal, mesmo a qualidade dos jogadores... A Liga trabalha muito bem essa parte da logística, da organização. E mesmo depois do Covid as coisas eram incríveis. Não sei que jogo fomos fazer, mas fomos de avião, já pós-Covid, aterrámos e tínhamos um autocarro à porta do avião. Tínhamos tudo para não haver contato com ninguém. Entrámos no avião, fomos direitos ao hotel, onde havia um piso só para nós. Estamos a falar de uma segunda liga espanhola, não pensei que chegasse a esse ponto.
- Só para contextualizar: foste adjunto do [Jon Pérez] Bolo, a convite de Julen Lopetegui.
- Sim, conheço o Julen por intermédio do meu irmão Pedro, que é muito amigo dele. Conheceram-se porque trabalha na clínica que há no Estádio do Dragão e têm o Nelson Puga como amigo comum. O Bolo tinha estado na Liga 3, salvo erro, tinha subido uma equipa. Ia entrar no Ponferradina, de uma Liga 2, um projeto para a manutenção, e na altura precisava de alguém também mais experiente, que o pudesse ajudar também como adjunto, em várias áreas. E, pronto, o convite surgiu. Informei-me com alguns jogadores, o próprio David Caiado, já que é daí que o conheço, porque jogou lá, e outros, que tinham jogado na Primeira Liga e estado comigo no Belenenses, e que, quando lhes pergunto sobre a segunda liga espanhola, dizem-me: «Mister, nem pense duas vezes, que é melhor que a nossa Primeira.» Na altura, fui. Foi giro. Tinha estado sete anos com o Ricardo Sá Pinto e agora surgia a experiência com outro treinador, que tinha outra ideia de jogo, outra filosofia, outro comportamento. Com o Ricardo também tinha, mas continuava a ter muita preponderância na planificação dos treinos… O Bolo delegava muito. E foi uma experiência também muito boa, porque fiquei a conhecer a liga espanhola. E outro mundo. E o Covid também nos trouxe... Estive três meses fechado em casa, sozinho, longe da família, sem conseguir regressar. Não sei como foi aqui, mas tínhamos o exército à porta de casa, e Ponferrada é uma cidade pequena, com cinquenta e tal mil pessoas. Havia a altura de ir ao supermercado e fui uma vez. A ideia era ir e comprar uma coisa, quando tínhamos de comprar muitas coisas. Mas era uma de cada vez para irmos mais vezes. E à segunda disseram-me: «Não pode ir duas vezes ao supermercado!» Estavam atentos a tudo. Lembro-me perfeitamente de começar os treinos com o campo dividido em seis. E cada jogador tinha o seu espaço. Seis jogadores, portanto, ao mesmo tempo. A bola não podia passar de um lado para o outro e depois tinha de desinfetar tudo. Éramos testados todos os dias. E depois foi... Começaram já dois a dois, três a três e sempre desinfetar tudo. Lembro-me perfeitamente disso. Depois o jogar em grandes estádios vazios. Alguns jogadores ficaram positivos. Foi um ano complicado.
- O Luís Castro e a China …
- O Luís Castro é antes do Ponferradina. Ele é convidado para coordenar a formação do Shandong Luneng, não vai, mas a equipa que formou acaba por ir. Eu estive menos tempo, antecipei o meu regresso devido ao nascimento do meu filho. A época lá também terminava em dezembro e, portanto, vim depois da segunda época terminar. Para os portugueses em geral foi muito bom, porque foi o ano que se conseguiu o maior número de títulos coletivos e individuais. A mim correu-me particularmente bem. É uma história engraçada, porque cheguei a meio de uma época, para os sub-15 A, que era uma boa geração muito boa, e fomos campeões de forma natural. Eles tinham muita qualidade e uma sede de aprender enorme, mas não sabiam o que era o futebol. Lembro-me que fizemos uma avaliação de diagnóstico, estivemos a ver alguns treinos. Lembro-me um miúdo que recebeu a bola e cruzou. Cruzou mal. E à segunda vez voltou a cruzar mal. O treinador parou o treino, desatou aos berros e não sei se não houve ali uma pequena chapada. E nós ficámos ali a pensar: «Mas isto é assim?» Claro que a terceira vez que teve a bola nem olhou, quis logo livrar-se dela, teve receio. Começámos os treinos e eu sou brincalhão. Gosto de brincar. Digo sempre aos jogadores: sou o primeiro a exigir, mas também sou o primeiro a brincar e gosto que eles brinquem. E brincava uma vez, duas vezes e eles não se riam. Cheguei a dizer ao tradutor: «Ou não tenho piada nenhuma ou não sei o que está a acontecer…» E ele disse: «As pessoas não se podem rir, se estiverem a rir é sinal de não estão focados no trabalho.» Depois, no fim, lá conseguimos… Só que tínhamos acabado de construir uma academia no Brasil. Milhões gastos lá. E a ideia era levar essa minha equipa, que tinha sido campeã nacional, para o Brasil durante um ano para trabalhar com treinadores brasileiros e jogar contra equipas brasileiras. Não sei se eles queriam trazer depois 20 e tal Neymares…
- Sabes como é que essa equipa evoluiu?
- Vou terminar aí. Tínhamos então sido campeões nacionais e ia, no ano seguinte, continuar. Tínhamos uma equipa B, formada por miúdos que não tinham lugar na A, não jogavam tão bem, com um treinador chinês, e o presidente veio dizer-me: «Para o ano ficas com a equipa B na primeira divisão no lugar da equipa A. Não podemos perder esta vaga, por amor de Deus, não podemos descer de divisão. O objetivo é esse: não descer de divisão, por favor.» Fiquei muito triste porque tinha aquela equipa, em que havia uma dinâmica muito boa, construído ao longo do tempo. A equipa estava a jogar muito. Tinha muitos jogadores de qualidade, é verdade, mas estava a jogar muito e foi embora. Quando estás a fazer um trabalho e depois sai tudo e tens de começar de novo, com jogadores que não tinham tanta relação com a bola, potência… E eu comecei a treinar a equipa B na primeira liga e... fomos campeões nacionais. Foi incrível. E mais. No final, houve uma espécie de Liga dos Campeões na Ásia e veio o Hamburgo da Alemanha, uma equipa do Irão, outra da China, que tinha ficado em segundo lugar. Fizemos ali uma espécie de Liga dos Campeões e ganhámos. Ganhámos ao Hamburgo, que tinha não sei quantos jogadores na seleção, uma coisa incrível. Andei a ver jogos do Hamburgo lá, de papel e lápis na mão, porque aquilo era uma liga e foi o nosso terceiro jogo. Preparámos bem em termos estratégicos e fomos campeões. Aquilo foi uma coisa incrível, teve um impacto enorme. Depois, quando terminou a época, a equipa que tinha estado no Brasil regressou à China. E o presidente veio pedir-me: «Tiago, vamos fazer dois jogos para testar realmente se a equipa que foi ao Brasil vem melhor.» Empatámos um e ganhámos outro, o que teve ainda maior impacto do que o campeonato que tínhamos ganho e essa Liga dos Campeões. O treinador brasileiro… não sei se foi embora, se foi despedido… mas sei que estavam com um ar zangado e, no fim, foram queixar-se ao presidente da arbitragem. A China, no ano em que lá estive, contratava muitos treinadores estrangeiros e colocava muitas equipas fora. Era normal o Shandong Luneng, por exemplo, abdicar do campeonato nacional sub-15 ou sub-16 para estagiar seis meses em Espanha e aí realizarem um amigável com o Real ou Atlético de Madrid. Para eles, isso é mais benéfico.
- E na Sérvia são loucos, não?
- Loucos, loucos, loucos, loucos. Chegámos à Sérvia, tínhamos 11 pontos de desvantagem do Partizan, uma distância muito grande. A ideia era terminarmos o ano em segundo, já que havia luta com o Vojvodina, e no ano seguinte prepararmo-nos para lutar pelo campeonato. O que é certo é que tivemos nove vitórias seguidas e o Partizan foi perdendo pontos. Lembro-me perfeitamente de andar na rua e éramos uns heróis. Eu não, o Ricardo Sá Pinto… Mas éramos convidados para tudo, para jantares, para tirar fotografias, dar autógrafos... Jogámos o jogo com o Partizan, o qual se ganhássemos, nos deixava a dois pontos do nosso rival, com a última jornada por disputar. Perdemos no último minuto, um livre do Markovic, que depois vai para o Benfica. Marcou o livre, a bola bateu na barra e depois nas costas do guarda-redes e entrou. Um golo aos 90 minutos, incrível. No dia seguinte já não podíamos mais andar na rua, éramos insultados, os adeptos já queriam entrar no centro de treinos… Depois de nove jogos a ganhar, uma derrota com o Partizan e aquilo. Lembro-me perfeitamente desse jogo, um dérbi incrível. Eu passarinho ainda, inexperiente, montei o aquecimento perto da claque do Partizan. Pensei que era bom para se habituarem aos insultos, como se isso fosse necessário. Não é, já conhecem o ambiente. O aquecimento durou três segundos. Voaram pedras, isqueiros, tudo. Tivemos de sair e montar noutro lado. No túnel de acesso, começaram aos murros, mas aos murros mesmo, antes da partida. O árbitro apita, continua tudo aos murros e estamos a falar de grandes jogadores da Sérvia. Depois, lá entraram, jogamos e perdemos no final. Estávamos tristes, mas os jogadores já estavam todos a combinar jantares uns com os outros. Antes, aos murros, depois a combinar jantares. Mas um ambiente fantástico. Jogadores de muita qualidade, tecnicamente brutais.
- O problema será a mentalidade…
- A liga é de qualidade baixa. O jogador sérvio para sair do país naquela altura, não sei se é muito assim agora, tinha de se evidenciar pela qualidade técnica, pelo número de golos marcados, pela relação com a bola. Mas foi bom, estreámos o Marko Grujic, com quem ainda hoje mantenho contato. Somos amigos, eu vivo no Porto e ele está no FC Porto. Estreámos o Marko com 17 anos, no último jogo… Foi uma experiência de que gostei muito. O Estrela Vermelha é um clube incrível. Agora toda a gente, quando vai lá ver o túnel, ainda me lembro do velhinho túnel, que é tão falado…
- Está pintado agora…
- Sim, agora é um túnel pintado… Não, não, horrível, horrível. Recordo-me que aquilo metia medo, porque nos jogos...
- Aliás, o túnel passa por baixo da bancada onde está a claque, não é?
- Passa uma bancada atrás da baliza, sim. Incrível, incrível, incrível. A nós não metia tanto medo, mas ao adversário metia de certeza, porque o túnel… Os polícias do Exército, com aqueles escudos enormes, um do lado e outro do outro, começavam a apertar o espaço entre eles quando vinha o adversário e só dava para passar um jogador… Era ali, entre os escudos, e eles com cara de maus a empurrá-los. Era uma enorme pressão antes do jogo, mas gostei muito, a sério, gostei muito.