CRÓNICAS DE UM MUNDO NOVO Todos são iguais mas uns são mais iguais do que os outros (artigo de José Manuel Delgado)
«Todos os animais são iguais, mas uns são mais iguais do que outros», assim decretaram os porcos de George Orwell, quando quiseram, para a sua espécie, mais privilégios, na quinta que geriam. O sentido desta fábula, ao tempo um forte ataque aos dogmas comunistas, tem sido adaptado a um sem número de circunstâncias, quando queremos distinguir entre a igualdade formal e a igualdade real.
Na pandemia do Covid-19, todos somos iguais, mas, ninguém duvide, uns são mais iguais que os outros. A Europa está a passar por tempos terríveis, mas tem meios para ultrapassar, no espaço de poucos meses, esta crise, com custos assinaláveis, é certo, mas longe de serem definitivos; o mesmo acontecerá aos Estados Unidos, hoje o centro do universo do novo coronavírus, e este raciocínio pode ser aplicado a países do primeiro mundo como o Japão, a Coreia do Sul ou a Austrália. Depois da experiência do confinamento e do afastamento social, a que irá seguir-se um período de recessão, o futuro será vivido segundo uma perspetiva diferente, e poucas dúvidas subsistem quanto ao antes e ao depois que a fronteira do Covid-19 separa. Mas haverá futuro!
O RESTO DO MUNDO
Para o resto do mundo, porém, as consequências dificilmente deixarão de ser catastróficas. António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas, fez na última sexta-feira um pungente apelo à solidariedade com África, continente onde escasseiam os meios para combater o vírus, e não se torna difícil adivinhar que, desde já, que está a escrever-se a crónica de um cataclismo anunciado; O Brasil, onde a indigência mental do presidente coloca em risco acrescido milhões de lusófonos, apresenta indicadores que fazem crescer a apreensão: números de 2018 indicavam que 35 milhões de pessoas não tinham acesso a água potável e 54% dos esgotos não eram tratados e ligados à rede. Nas favelas, a média de pessoas por divisão era de quatro; e o sistema de saúde não tem condições mínimas para dar resposta à crise que já está a enfrentar.
O CASO DA ÍNDIA
Neste rol dos que, perante o Covid-19, são claramente menos iguais, falta falar da Índia, onde se vive um desastre humanitário:
O primeiro-ministro Nerendra Modi ordenou a 1,3 mil milhões de indianos que se fechassem em casa. Porém, para 80 por cento dos 470 milhões trabalhadores que não possuem contrato e, por maioria de razão, não gozam de qualquer proteção social, o que está em causa não é combater o vírus, mas sim garantir subsistência para o dia seguinte. O New York Times de hoje apresenta uma série de casos - desde jovens que aproveitam seja o que for, nas lixeira, e ganham, ao fim do dia, dez cêntimos, e que vão continuar a fazê-lo, independentemente do Covid-19, a operários que viviam e comiam nas fabriquetas e se viram, de um dia para o outro, sem abrigo e sem pão, o mesmo acontecendo com trabalhadores sazonais da agricultura, ou a milhões de migrantes que procuram chegar às suas regiões, metendo-se ao caminho, a pé, para enfrentar jornadas de centenas de quilómetros – que levam o desespero para patamares para além do imaginável.
A diferença para a Europa é que, ao contrário do que sucede por cá, o drama que enfrentam os países mais vulneráveis não tem solução à vista. Pelo menos uma solução que passe ao lado de uma catástrofe humanitária sem precedentes.
Uma vez mais, todos são iguais, mas uns são mais iguais do que os outros…