«Seleção e Portugal têm tanto talento e ainda assim falta cultura desportiva ao país»
Vítor Matos com Jürgen Klopp (Foto: IMAGO/Propaganda)

ENTREVISTA A BOLA «Seleção e Portugal têm tanto talento e ainda assim falta cultura desportiva ao país»

INTERNACIONAL04.01.202409:00

A diferença entre a qualidade dos jogadores que são formados e a escassa presença de adeptos nas bancadas é algo que preocupa quem vê o fenómeno de fora como Vítor Matos

LIVERPOOL – Vítor Matos aponta para o desporto escolar como caminho para criar a cultura desportiva que falta e que poderia gerar maior interesse e aumentar a presença em estádios e pavilhões para os jogos ao vivo, algo que ainda falta num país que já consegue formar atletas incríveis

- Houve uma altura em que Portugal só produzia extremos. Hoje, são raros. Seria possível condicionar as academias para que se voltasse a ter extremos de linha?

- Tem um pouco a ver como o futebol foi evoluindo. Conforme os problemas aparecem no jogo. Claro que existem referências, enquanto clube, enquanto ideia de jogo, e estas condicionam muita gente que está a treinar na formação. Vemos, tem sucesso e ajustamos por aí também. Mas tem muito a ver com a forma como o futebol foi crescendo e por que caminho vai evoluindo também em termos de qualidade de jogo… Portugal tem tanto, tanto talento, na Seleção principal. Para mim, é incrível a diversidade de talento que tem, de perfis que tem para todas as posições. 

- O estereótipo do futebolista mudou alguma coisa nos últimos anos? 

- É um momento fantástico que vivemos na Seleção. Usando a seleção como unidade de medida…

«Deram-me uma oportunidade única»

4 janeiro 2024, 08:00

«Deram-me uma oportunidade única»

Vítor Matos chegou ao Liverpool em 2019 para ser treinador de desenvolvimento e adjunto de Klopp; continua a absorver todas as 'master classes' do alemão; a história da camisola do Benfica que espelha a química entre os vários elementos da equipa técnica

- Mas o perfil mudou? Nós temos muito talento, jogadores para todas as posições, mas o jogador português em si mudou? É hoje mais competitivo do que era no passado? 

- Não sei. Desde que sou treinador, mesmo na formação, sempre tivemos um jogador muito técnico, com gosto e paixão por jogar. E agora, mesmo fora há alguns anos, continuo a ver isso. 

- Dizia-se que o futebolista português falhava nos momentos decisivos, não era competitivo o suficiente… Faltavam 30 metros…

- Houve um investimento forte naquilo que era a formação de todos os clubes e ainda por parte da Federação. Houve uma profissionalização, os escalões de formação estão mais organizados, a Liga muito mais organizada, tudo isso ajuda. Agora, a nossa história está cheia de jogadores fantásticos… Às vezes brincamos e tentamos fazer um cinco inicial com os melhores jogadores e quando começas a pensar nos que fazem parte da nossa historia é incrível.

- Foi esse o grande salto da Seleção, ter jogadores para todas as posições?

- Sim, isso tem a ver com a cultura que existe. Primeiro, é um país que vive o futebol, tem cultura de futebol, com muita emoção para o jogo e isso dá-nos vivências e experiências, sobretudo quando existia o futebol de rua também… é importante que se vá ao encontro disso na formação e isso cria grande diversidade em termos de talento. Espero que se continue a aproveitar e a ter tanto talento como temos atualmente. A geração que está, e quando digo geração estou a pensar nos que têm 17 e 39 anos, é formada por jogadores com cultura tática tão grande que quando falam é uau! É incrível. Têm uma linguagem, conhecimento e uma mentalidade completamente diferente. Tem a ver com isso: cresces com uma cultura, com uma paixão pelo jogo tão grande que este tem de ser o resultado. E isso tem de ser incentivado.

- Está a desvalorizar um pouco o trabalho dos treinadores da formação…

- Não, pelo contrário. O mais importante é que continuem a potenciar…

- Estava a carregar um pouco mais na emoção. Faz falta o lado racional que vem com vocês…

- O que queremos potenciar? As crianças têm de jogar. Isso é o mais importante jogar, jogar, decidir jogando. Quando falo em potenciar também estou a referir-me aos treinadores da formação, que já fui e sou ainda, muitos deles sem receber, uma parte em part-time, e que já fazem as coisas com tanta dedicação que, às vezes, não se valorizam. Enquanto existir esta paixão, enquanto estas pessoas ainda estiverem motivadas para treinar às 9h00 ou às 19h30, que é quando conseguem sair do trabalho para estar com crianças dos 13 anos aos 9 anos, e potenciar este sentimento pelo jogo, de acordo com o que exista nos clubes e no que acreditam, só colheremos frutos no futuro.

- Todas as revoluções e reinvenções no futebol de vários países passaram por apostas muito fortes na profissionalização da formação…

- Sem dúvida, desde que não se perca a sua essência que é o jogo. Embora esteja agora mais afastado, tenho de dar crédito ao excelente trabalho de muitas associações a potenciar o futebol na região. Gostaria é de ver, se calhar fugindo um pouco à questão, uma aposta geral no desporto em termos escolares, que na realidade é uma oferta a todos. Não tens de pagar, só de te inscreveres, estás na escola e praticas. Ver iniciativas que indiretamente provoquem que as crianças pratiquem e façam desporto deliberadamente. Mesmo no aspeto cultural há tantos benefícios, mas tantos benefícios, que quem está fora vê que é algo que falta. Dinamizaria muito mais um conjunto de situações e poderia terminar em estádios e pavilhões cheios, porque passaria a haver cultura desportiva e gosto pelo desporto. Gera sentimento de pertença, gera uma sociedade salutar, só nos traria benefícios.

- E gera um melhor produto também.

- Sem dúvida.

- Há otimismo para o futebol português? 

- A Liga portuguesa tem um produto tão bom ali. Tanto talento, tantos treinadores com qualidade e identidade bem definida… Vemos jogos e são bons jogos, e temos de o aproveitar. A relação entre os 11 em campo, o público e a cidade ou região tem de voltar a ser construída, porque o futebol precisa disso. Quando vemos estádios cheios faz por completo a diferença. Viver um jogo de futebol ao vivo é tão diferente de o ver na televisão, que isso sim deveria ser incentivado. E falamos como é aqui em Inglaterra, com os jogos de sábado às três da tarde não serem transmitidos… Se as pessoas voltarem a descobrir este gosto é meio caminho andado. Criar esta cultura desportiva seria positivo. Nós vamos para estágio no dia anterior aos jogos e, muitas vezes, estão a ser transmitidos encontros da liga portuguesa. Ficamos a ver e encontramos alguns muito bons.

- Curiosamente, os piores até parecem ser os jogos entre os grandes… Mais agressivos e menos criativos…

- Sim, por vezes o lado emotivo também faz com que o jogo também fuja para um determinado caminho, mas isso também faz parte e tem de ser entendido. Não demasiado valorizado. Acho que o jogo em si é que tem de ser valorizado, não o extra. Mas às vezes essas coisas acontecem.

- Estamos de acordo com o quanto as equipas B foram importantes para Portugal?

- Sem dúvida. Em tudo o que permite em termos de exposição, desenvolvimento, mercado, fortalecimento das seleções jovens, foi fantástico. E acho que se tem de continuar a tratar e a cuidar das equipas B. Estão hoje duas na Segunda Liga e isso é muito importante.

- Não tira algum peso ao ‘formar a ganhar’, à competitividade? Podem ser campeãs, mas não subir de divisão…

- Tanto o Folha, na equipa B do FC Porto, como o Nelson Veríssimo, na do Benfica, conhecendo ambos como conheço, vão a todos os jogos para ganhar. Quando vais para o jogo ou formas desta forma a competitividade já lá está. Se depois vai acontecer ou não é outra história, mas tem de existir essa preocupação. Agora, é um nível exigente, porque estamos a falar de uma Segunda Liga, que tem jogadores com qualidade… E isso foi uma das coisas boas das equipas B porque elevaram o nível de jogo desse campeonato, ao colocarem-se aí jogadores internacionais, com qualidade técnica, obrigando a outro tipo de investimento por parte dos clubes, que veem que é possível afinal jogar bem aí, quando às vezes existia este preconceito. E isso tudo levou a coisas positivas. Não conseguem subir de divisão, mas conseguem ser campeãs. E ser campeã numa Segunda Liga, como aconteceu com o FC Porto já conseguiu ser, é um sentimento fantástico para todos os jogadores e para o clube é algo excecional.