O ‘King’ que partiu na véspera do seu dia, o Dia de Reis…
Retalhos da vida de quem foi grande entre os grandes; o telefonema de Beckenbauer, o almoço com Di Stéfano e o convívio com Pelé...
Durante muitos anos, sempre que pensávamos numa manchete para A BOLA, era da praxe dizer, «a não ser que o Eusébio morra», porque, se tal sucedesse, não havia nenhuma notícia no Mundo que fosse mais importante. Até que esse dia chegou, a um domingo, na véspera do dia de Eusébio, o Dia de Reis. E era por King que o tratávamos, o epíteto que se lhe colou a partir do momento em que foi padrinho, no auge de Pelé, das botas Puma King, nos idos de 60 do século passado.
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Em Moçambique, Eusébio da Silva Ferreira era conhecido por ‘Catembe’, uma bebida corrente nos bairros populares de Lourenço Marques, feita com metade de vinho tinto corrente e metade de Coca Cola. No Benfica, já nos anos 80, praticamente só o massagista Hamilton Marques da Pena, que já estava no clube quando Eusébio chegou, o tratava ainda por Catembe, mas toda a gente sabia a quem se referia.
Tive o privilégio de privar bastante com Eusébio, primeiro enquanto jogador e depois como jornalista. A partir de 1983/84, com Eriksson, o King passou a integrar as equipas técnicas do Benfica, com a missão específica de treinar os guarda-redes. Foram anos mágicos, que vivi juntamente com o Manuel Bento e o Neno, precocemente desaparecidos, e com o Silvino Louro, em que fazíamos tudo para ‘picar’ Eusébio e, então, sim, vê-lo caprichar nos remates.
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O King já tinha mais de 40 anos, e o joelho que sofreu meia dúzia de operações - «nunca fui capaz de dizer não ao Benfica», foi o título de uma entrevista que muitos anos mais tarde lhe fiz para A BOLA – teria pelo menos 140, mas mesmo assim, quando lhe dizíamos, «estás velho e não marcas golos a ninguém», Eusébio afinava a sério, colocava meia dúzia de bolas à entrada da área e vingava-se como melhor sabia, humilhando-nos.
Porque não só fazia golo em cada bola que chutava, como ainda se dava ao desplante de, antes de rematar, dizer para onde ia enviar a bola. Quando isso sucedia, apesar de nem com asas conseguirmos deter os petardos do King, já tínhamos ganho o dia porque tínhamos sido testemunhas presenciais daquilo que Manuel Alegre, na sua sublima inspiração, escreveu:
«Havia nele a máxima tensão. Como um clássico ordenava a própria força, sabia a contenção e era explosão. Havia nele o touro e havia a corça. Não era só instinto, era ciência, magia e teoria já só prática.
Havia nele a arte e a inteligência, do puro jogo e sua matemática.
Buscava o golo mais que golo: só palavra. Abstração. Ponto no espaço. Teorema. Despido do supérfluo rematava e então não era golo: era poema.»
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Passam hoje dez anos sobre o dia em que partiu, mas também posso dizer que estive, com o Vítor Serpa, a jantar com Eusébio e Cruz dos Santos, o único jornalista que estava no aeroporto da Portela à espera do menino que vinha de Moçambique com o nome de código de Ruth (quem não viu o filme de António Pinhão Botelho, que veja, porque é imperdível), no dia em que perfazia meio século da sua chegada a Lisboa. E que saudades das conversas com Eusébio (e umas quantas entrevistas também) na Tia Matilde, que o Tio Emílio transformou na sua segunda casa.
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Recordar Eusébio é ver Wembley ou Celtic Park de pé a aplaudi-lo, é pertencer a uma equipa do Benfica que viajava pelo Mundo, e cada vez que Eusébio aparecia ninguém queria saber dos jogadores no ativo, é vê-lo ser grandes entre os grandes, como no dia em que, na entrega, organizada por A BOLA, da Bota de Ouro a Cristiano Ronaldo em Madrid, Alfredo Di Stéfano ignorou o conselho do Real Madrid e participou no almoço por nós organizado, especialmente para estar com o King, que tinha por Don Alfredo uma verdadeira devoção. Ou ainda estar, num encontro da European Sports Media em Munique com Franz Beckenbauer, e telefonar ao King porque o Kaiser queria cumprimenta-lo.
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Aliás, nesse dia, tive oportunidade de brincar com Beckenbauer, monstro sagrado do futebol mundial, dizendo-lhe: «agora estou a entrevista-lo a si, mas já vivemos a situação inversa, quando foi a Lisboa fazer um documentário para a RTL sobre o Eusébio, e eu fui um dos jogadores ouvidos sobre o que representava poder conviver com um dos maiores de todos os tempos…»
De Eusébio tenho saudades, creio que, mesmo quem não o conheceu partilha este sentimento, porque se tratou de alguém que tocou as vidas de várias gerações. No dia do velório de Eusébio da Silva Ferreira, no salão, junto à águia do escultor Soares Branco, na porta 1, Luís Filipe Vieira, muito emocionado, disse-me: «toca-lhe no cabelo, está impressionantemente macio.» Assim fiz, e assim me despedi de um amigo que estava de partida para a morada eterna, no Panteão Nacional, onde pouco tempo depois foi repousar, junto aos maiores da Pátria.
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Como nota final, é com muita satisfação que recordo que o primeiro trabalho que assinei em A BOLA, há mais de 20 anos, foi uma entrevista conjunta a Eusébio e Pelé. Uma hora e meia de conversa inesquecível, quinze minutos para registar ‘on record’, e o tempo restante para falar da vida…
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