Luís Godinho: «Bancos têm demasiado foco num jogo de futebol»

Arbitragem Luís Godinho: «Bancos têm demasiado foco num jogo de futebol»

NACIONAL03.08.202319:16

Luís Godinho (A. F. Évora), 37 anos, foi esta manhã o porta-voz dos 23 árbitros da Liga 1, e 40 assistentes, que realizaram um estágio nos últimos cinco dias na Cidade de Futebol, em Oeiras.

O juiz alentejano deixou falar o coração e lembrou que os árbitros também têm família…

- Se um jogo corre mal, e o árbitro está no centro do furacão, como é que se sentem, partindo do princípio que a decisão foi tomada em consciência, por não poderem explicar o que é que vos levou a tomar aquela decisão? Como é que o árbitro se sente durante esse período?

- É um processo que não é fácil, o dia seguinte nunca é fácil para os árbitros, nomeadamente quando existem erros. Partimos do pressuposto que a decisão foi correta e o que fazemos muitas vezes é proteger-nos a nós próprios. Explicarmos o nosso ponto de vista iria acrescentar pouco, pois eu ia sempre dizer que não marquei, ou marquei, algo de acordo com o meu ângulo de visão naquele momento, o meu ponto de vista, porque estava mal colocado, porque tinha um jogador à frente, e as pessoas na sua génese não iam perceber, não ia acrescentar grande coisa para aquilo que foi o meu processo de decisão, errado, e por isso o que os árbitros fazem muitas vezes é fecharem-se na sua equipa, tentam perceber porque é que erraram e trabalham durante a semana para que esse erro não volte a acontecer no fim de semana seguinte.

- Esta é uma situação rara, um árbitro em frente a câmaras de televisão e microfones. Defende que os árbitros deviam poder falar mais vezes, e dessa forma contribuírem, para que não houvesse ruído?

- A minha opinião pouco importa. Faço parte de uma equipa, há regras e tento cumpri-las. O que já disse ao meu grupo e aos meus diretores é que, e no caso concreto deste ano, em que as comunicações vão ser públicas, é que a transparência que tentamos dar ao processo e à arbitragem sirva para esclarecer e baixar o ruído. Se os árbitros pudessem falar mais? Se isso traria mais calma e transparência ao futebol? Não sei dizer se isso funcionaria. O que digo é que esta equipa é coesa, a opinião pessoal pouco importa, o que importa é proteger o grupo, e as regras impostas são feitas e aceites por todos. Nesse sentido, sou mais um que concordo que essa abertura poderia não funcionar da forma como essa pergunta foi feita.

- A polémica surge muitas vezes por fatores exteriores ao jogo. Como é que o árbitro lida com isto?

- Considero que esse é um dos problemas do futebol, não só português, mas pela Europa fora. Vocês, que acompanham o futebol, percebem que os bancos dos técnicos, ou suplementares, neste momento têm demasiado foco naquilo que é o jogo de futebol. Nós, árbitros, corroboramos dessa opinião é percebemos que esse comportamento, que não é correto e é abusivo, tira o foco ao essencial, que é a decisão em campo. Não posso, num jogo de futebol, que são 90 minutos, estar 15 ou 20 minutos focado no comportamento dos bancos. Nós, arbitragem, temos combatido isso nos últimos anos, vamos combater este ano ainda de uma forma mais acérrima, e acho que, sinceramente, todos os intervenientes, possam mostrar às pessoas o que acontece. O árbitro erra, o árbitro vai errar, mas o comportamento abusivo e ofensivo de algum elemento não atenua ou desculpa o erro. Ou seja, as pessoas têm de perceber que, tal e qual como um avançado que tem um mau desempenho no jogo, o árbitro também pode ter.

- Pode ser também uma questão organizacional? Tem-se falado muito que há gente a mais nos bancos. Pode passar por aí?

- Não me compete dizer se há pessoas a mais ou a menos. O que digo é que, no banco técnico e suplementar, só devia estar quem realmente faz falta à equipa naquele momento.

- É que às vezes são pessoas laterais a criar esse ruído dentro do relvado…

- E essas pessoas laterais fazem falta à equipa naquele momento? Deixo a pergunta no ar. Porque há certos elementos, e certas funções, que não acrescentam valor à equipa naquele momento. Dou um exemplo, com todo o respeito: um roupeiro que função tem ali? Muitas vezes, não só o tipo de função, mas a quantidade de pessoas que se aglomera em cada vez que há uma decisão errada da equipa de arbitragem, é claramente prejudicial para o nosso trabalho e para o futebol. Porque o que nós pretendemos é contribuir para um melhor futebol, não queremos que a arbitragem esteja no foco da questão, queremos passar ao lado do jogo. O meu sucesso é que ninguém fale de mim no dia a seguir ao jogo. Esse é o meu objetivo. Pensa que gosto de ir a um café, no dia a seguir ao jogo, e todos falarem de mim? É que atrás de mim está uma família e quando afetam o árbitro, afetam a família. Somos parte do futebol, temos de ser contestados e criticados quando erramos, somos o primeiro a assumir o erro, mas também não façam disso a bandeira daquilo que é muitas vezes um mau desempenho da equipa de futebol.

- Falou da família, no dia seguinte… Pensa que a vossa classe devia estar mais protegida?

- Nesse contexto, eu sou um felizardo. Vivo numa cidade pequena, as pessoas já me conheciam antes de ser árbitro. Conhecem a minha pessoa, não me avaliam enquanto árbitro. Conhecem os meus princípios e valores e quando erro têm a certeza de que fiz o melhor que podia e conseguia naquele momento. O que é importante é as pessoas terem a noção de que cada vez que colocam o árbitro no centro da questão, toda uma família, que não tem culpa da profissão que escolhi, é afetada. E ela funciona como suporte e base dos árbitros. Qualquer árbitro que aqui está, se não tiver uma família forte, acreditem, não se aguenta muito com este tipo de pressão. Depois do jogo vem a solidão, que é quando chegamos a casa, começamos a cair em nós, há um jogo menos conseguido. No dia a seguir não posso descarregar a minha frustração na minha família. Tenho de voltar a sorrir. Tenho filhos, mulher, tenho vida, e eles muitas vezes sofrem tanto ou mais do que nós. Acreditem nisto. E não têm culpa.

- Já algum dirigente ou jogador lhe pediu desculpa por se ter dirigido a si de forma mais agressiva?

- Já! E tem havido imensos exemplos desses. O futebol é um jogo de emoções, é óbvio que as pessoas, no momento da decisão, não tenham o discernimento, nem a calma suficiente. Desde que não faltem ao respeito. No final do jogo, muitas vezes, e cada vez acontece mais, esses intervenientes pedem desculpa por esse comportamento mais efusivo. É normal. E nós não estamos aqui para penalizar as pessoas que manifestam as suas emoções de forma correta. Estamos aqui para contribuir para um futebol melhor. Fazemos tudo diariamente para, num jogo de futebol, ser a melhor equipa em campo, e isso é… que no dia a seguir ninguém fale de nós.

- Os agentes do futebol têm maior maturidade em relação ao período em que o Luís chegou ao futebol?

- Há mais formação, há uma maior abertura de todos os intervenientes para o jogo, e esta é uma amostra daquilo que a própria arbitragem tem mudado nos últimos anos. Esta abertura, com mais formação para todos os intervenientes, faz com que nos enriqueça o conhecimento e que possamos trabalhar para um bem comum, o futebol.