Benfica: A carta que Rui Costa ignora há cinco meses
A comissão de revisão de estatutos do Benfica com o presidente Rui Costa (Foto SL Benfica)

EXCLUSIVO A BOLA Benfica: A carta que Rui Costa ignora há cinco meses

NACIONAL18.11.202308:00

Leia na íntegra a missiva que soou alarmes no processo de revisão estatutária; alterações à revelia, com questão das remunerações de dirigentes à cabeça, e… 11 alertas!; proposta original da comissão de revisão ‘fechada’ a sete chaves há mais de ano e meio

NOTA: A BOLA apurou, entretanto, que Rui Costa respondeu em agosto à Comissão de Estatutos, em carta enviada por mail, através do chefe de gabinete, na qual assume que a proposta de revisão de estatutos é da Direção.

Um silêncio… ensurdecedor. Passaram praticamente cinco meses desde que o presidente do Benfica, Rui Costa, recebeu missiva subscrita por seis dos sete elementos que integraram a comissão de revisão de estatutos do clube com críticas à proposta que foi publicitada no site oficial e que nalguns pontos, denunciou, foi alvo de alterações substanciais em relação ao documento original.

Assinada por António Bagão Félix, Fernando Neves Gomes, João Loureiro, João Pinheiro, João Varandas Fernandes e Raquel Vaz Pinto – Jaime Antunes, vice-presidente do Benfica, foi o único elemento da comissão a não a subscrever -, a carta foi enviada a 14 de julho deste ano, como A BOLA deu conta na altura, e encerrava críticas várias à forma como o processo teve sequência depois de a comissão ter entregue o resultado do seu trabalho à Direção a 21 de março de 2022 - «A Direção vai agora analisar o documento e dar seguimento ao processo», anunciava então o clube da Luz no site oficial.

O resultado dos trabalhos só foi dado a conhecer aos benfiquistas quase 15 meses depois, quando o Benfica, a 14 de junho deste ano, publicou no site oficial a proposta de revisão estatutária, para consulta de todos os associados. 

E foi então, depois de ler o documento, que os elementos da comissão perceberam que não se tratava do documento original, mas sim de uma versão com algumas alterações - o clube da Luz, recorde-se, nem sequer reagiu às críticas que lhe foram então endereçadas. 

Críticas essas que, poucos dias depois, motivaram carta assinada por mais de 300 benfiquistas (entre esses o humorista Ricardo Araújo Pereira, o radialista Pedro Ribeiro, Francisco Benítez, que foi a votos com Rui Costa nas eleições de 2021, ou João Pinheiro, elemento da comissão de revisão dos estatutos) dirigida à direção e apelando a maior transparência em todo o processo.

A BOLA teve, agora, acesso ao conteúdo integral da carta subscrita pela quase totalidade dos elementos da comissão.

A mesma dá conta que o vice-presidente Jaime Antunes informou a comissão «que no dia 10 de julho de 2023 em reunião plenária dos órgãos sociais foi aprovada a proposta de revisão dos estatutos», depois «divulgada, na comunicação social, como sendo da autoria da comissão de revisão», que, recorde-se, foi nomeada pela própria Direção presidida por Rui Costa. 

Foto SL Benfica

Os signatários, porém, fazem questão de se distanciar da proposta apresentada aos sócios, considerando que a mesma «corresponde a mais de 90 por cento da proposta elaborada pela comissão», mas cuja «divulgação pública omitiu que a mesma incluiu várias alterações que conferem sentidos diferentes ao texto original em aspetos essenciais», sendo destacada a questão «do princípio da remuneração dos titulares dos órgãos sociais».

Transparência e muito mais

Quiseram, por isso, demarcar-se do texto que foi apresentado aos sócios, e deixaram 11 (!) alertas que fazem soar alarmes em relação à condução do processo e ao teor de algumas dessas alterações introduzidas pela direção encarnada:

«- não é transparente quanto à definição da remuneração dos titulares dos órgãos sociais

- diminui a capacidade de intervenção dos sócios na convocação da Assembleia Geral e reduz assinaláveis competências deste órgão máximo em benefício da Direção; 

- conduz, ainda, a uma menor responsabilização dos membros da Direção por violação dolosa das regras orçamentais aprovadas em assembleia geral de sócios e a uma redução da possibilidade de ação fiscalizadora dos sócios; 

- remove impedimentos na capacidade eleitoral passiva, no que pode contribuir artificialmente para a manutenção ad eternum dos titulares dos órgãos sociais, solução que até se revela contrária ao espírito do elevado compromisso de redução de mandatos assumido publicamente por V. Exª; 

- recua na prevenção de conflitos de interesses ao permitir que os trabalhadores do Sport Lisboa e Benfica se candidatem aos órgãos sociais; 

- suprime a competência da Assembleia Geral na aprovação de um Código de Ética que seguramente serviria para prevenir práticas indesejáveis e nocivas para o nosso Clube; 

- permite a disponibilização do nome e marca Sport Lisboa e Benfica a terceiros, sem que o Clube possa de forma livre e unilateral reaver tais ativos em casos de uso abusivo

- afasta os sócios das tomadas de decisão sobre a aquisição e oneração de imóveis e alienação de participações sociais que pertençam ao Clube; 

- mantém o número de votos por anos de antiguidade mas aumenta as exigências do número de votos para convocar a Assembleia Geral extraordinária; 

- aumenta o número de votos, de 10.000 para 50.000, para que seja possível a convocação de uma assembleia geral extraordinária de destituição dos titulares de órgãos sociais

- reduz a informação prestada aos sócios aquando da apresentação das demonstrações financeiras, o que decorre da não apresentação do balanço», lê-se na carta.

Mas há mais. Os signatários fazem também apelo a Rui Costa, «solicitando-lhe a gentileza de divulgar igualmente, e na íntegra a proposta original elaborada pela comissão». 

O que, volvido todo este tempo, nunca aconteceu. Entregue em março de 2022, a proposta da comissão continua, há quase 20 meses, fechada a sete chaves, sendo essencial a sua divulgação para se perceber a extensão das alterações promovidas e tão criticadas pela comissão encarregue desse trabalho. Pedido que Rui Costa continua a ignorar.

Seara desafiado na última AG

Na última Assembleia Geral do clube da Luz, a 22 de setembro passado, a questão dos estatutos veio à liça, mas acabou por ser secundarizada pelo anúncio dos resultados da auditoria realizada na sequência do escândalo que afastou Luís Filipe Vieira da presidência dos encarnados – a mesma, anunciou então o vice-presidente Sílvio Cervan, «não identificou qualquer situação em que a SAD tenha sido lesada pelos seus representantes».

Nessa reunião magna, que decorreu numa sexta-feira, houve associados que instaram o presidente da Mesa da Assembleia-Geral, Fernando Seara, a tomar em mãos o processo de revisão estatutária no lugar de Jaime Antunes, vice-presidente encarnado que esteve nos trabalhos da comissão. 

O presidente da Mesa da Assembleia Geral do Benfica, Fernando Seara (Foto SL Benfica)

Seara foi, igualmente, instado a calendarizar as Assembleias Gerais Extraordinárias necessárias à conclusão do processo, bem como a publicitar a metodologia que seria seguida nas mesmas, reservando a sua resposta para o futuro. Futuro esse que ainda não chegou.

Quem defenderá a proposta?

A metodologia a ser seguida é tema caro ao processo. Antes, as alterações eram votadas ponto a ponto e, depois, as alterações eram defendidas pela própria comissão de estatutos em sede de AG.

Foi assim na última revisão, em 2010. O antigo presidente Manuel Vilarinho ou o antigo vice-presidente Ribeiro e Castro integraram, à altura, aquela que se designou como Comissão Eventual de Revisão dos Estatutos do Benfica (CEREB), e foi Ribeiro e Castro a defender as propostas de alteração então introduzidas em assembleia geral para o efeito.

Desta feita, porém, é praticamente garantido que tal não vai acontecer, uma vez que, como fica bem expresso na missiva dirigida a Rui Costa em julho passado, os membros da comissão não se identificam, nem querem ser associados, a algumas das alterações que foram introduzidas ao documento original, pelo que, naturalmente, não as deverão defender em reunião magna com os benfiquistas - tarefa que poderá ficar a cargo de Jaime Antunes.

Depois do Benfica ter publicado o documento com as alterações, este ficou então disponível para consulta pública e análise dos sócios, que até ao passado dia 31 de outubro puderam sugerir alterações à proposta.

À Luz chegaram, até essa data, diversas sugestões de alteração. Uma delas sob a égide do Movimento Servir o Benfica, que enviou para a Luz documento com 24 medidas. 

Mas houve vários sócios que a título individual também enviaram sugestões.

Recorde-se que os novos estatutos serão para vigorar, apenas, aquando do próximo mandato da direção, para o quadriénio 2025-2029, portanto, e a partir da publicação da convocatória para esse mesmo ato eleitoral. 

«Procedimento não é claro, nem percetível»

João Pinheiro, advogado, integrou a comissão de revisão dos estatutos, a convite da direção do clube da Luz, depois de ter concorrido às eleições de 2021 na lista de Francisco Benítez, do Movimento Servir o Benfica, como candidato à presidência da Mesa da Assembleia Geral. 

Foi um dos signatários da carta dirigida a Rui Costa em julho. Contactado por A BOLA, remeteu para o Benfica explicações sobre o porquê da proposta original da comissão ainda não ter conhecido a luz do dia.

Admito que são temas polémicos, que possam suscitar controvérsia e discussão, mas terá que ser em AG que isso se passará

«O motivo terá que ser questionado junto da direção do Benfica. O documento que a comissão elaborou foi entregue à direção e o objetivo era servir de base à proposta de revisão estatutária que a direção iria apresentar aos sócios. A forma como geriu o procedimento de análise desconheço e por que motivos optou por alterar o documento em alguns pontos essenciais também está na carta que foi enviada. Não sei qual terá sido a motivação, mas os pontos elencados na carta referem isso e a visão é diferente da que era preconizada», disse ao nosso jornal, assumindo que o tema não é pacífico. 

«Admito que são temas polémicos, que possam suscitar controvérsia e discussão, mas terá que ser em AG que isso se passará», afirmou, assegurando que não irá defender proposta que ajudou a elaborar, mas em cujo resultado final, depois das alterações promovidas à revelia da comissão, não se revê. 

Seja como for, entende que «o procedimento não é claro e não é percetível para a maioria dos associados» e que a opção da direção em não publicar o documento original não deverá sofrer alterações.

«Se o fizesse, permitiria aos sócios ser confrontados com duas versões completamente distintas em pontos essenciais, que têm duas visões de clube diametralmente opostas, sobretudo na relação entre clube e sócios», aponta. 

«Em vez de se abrir discussão sobre a revisão, abrir-se-ia discussão sobre duas versões…», conclui.

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