Áustria Salzburgo, o clube de todos os que odeiam o futebol moderno
Grande ambiente nas bancadas no dérbi (Foto: Austria Salzburgo)

Áustria Salzburgo, o clube de todos os que odeiam o futebol moderno

INTERNACIONAL28.09.202322:48

Poder defrontar o decacampeão Red Bull Salzburg na segunda eliminatória da Taça e vestir as suas cores, usar o seu escudo e passar inúmeras mensagens para os rivais e para o mundo é a sua vitória. A sua existência é só por si uma forma de protesto. O resultado não interessou para nada

De um lado, valores antigos. Para muitos, preciosos. A identidade entre uma cidade e um emblema, entre as suas gentes e um símbolo e as suas cores. Uma paixão que não abala com os resultados nem esmorece com o tempo. Que dificilmente deixa espaço para um amor por outro escudo ou que sequer se torça por outra equipa. Um forte sentimento de comunidade. O poder aos adeptos, pelos adeptos.

Do outro, o materialismo, o querer ganhar, dominar, fazer dinheiro. Dar lucro. O clube-empresa. Talvez uma identidade de outra natureza. Sem dúvida, valores modernos. Um poder corporativo.

Os primeiros ainda não estão sob ameaça de extinção, mas são cada vez mais os exemplos dos segundos. E de históricos que desfalecem, deixam-se ir no marasmo e, por vezes, caem para nunca mais se levantarem. Ou vivem bem afastados dos holofotes, a esgrimir memórias de antanho.

Dificilmente, um encontro significou mais para esta luta do que o de terça-feira passada. O Áustria Salzburgo, hoje no terceiro escalão, recebeu o Red Bull Salzburgo, adversário do Benfica na Liga dos Campeões, para a taça. Foi a primeira vez que, 18 anos depois do divórcio entre adeptos e novos donos, os dois emblemas se defrontaram. O estrondo não deixou ninguém indiferente. E fez-nos lembrar do muito que o futebol tem mudado, por vezes sem que nos apercebamos no momento certo.

Em 2005, quando o já falecido Dietrich Markwart Eberhart Mateschitz avançou para a compra, o sentimento entre os adeptos do Áustria era naturalmente de esperança. Afinal, a multinacional tinha sido levantada a partir de uma base familiar na vizinha Fuschl am See e o seu dinheiro era encarado como uma necessidade, a fim de que se pudesse ressuscitar o antigo finalista vencido da Taça UEFA – em 1994, saiu derrotado por 2-0 no agregado diante do Inter, curiosamente em Viena – e três vezes campeão nacional nos anos 90. Era necessário investimento para que se recuperasse a glória. O então presidente Rudi Quehenberger abriu a porta. Não poupou elogios à empresa, com Franz Beckenbauer, ícone do futebol germânico e amigo pessoal de Mateschitz, a igualmente manifestar apoio. Se alguém do futebol antigo como o Kaiser apoiava, porque não? – terão pensado muitos adeptos.

No entanto, Mateschitz não pretendia ser um mero patrocinador, mas sim começar do zero. A história do Áustria era para ele, à sua maneira um apaixonado pelo jogo, irrelevante. Queria uma bandeira para a marca que tornou global. O que era o mesmo que falar num novo escudo, num novo nome e em novas cores. Uma nova identidade. 

Depois de muita insistência, a partir do momento em que se aperceberam das mudanças que se aproximavam e que se mostravam bem mais radicais do que era seu desejo, os adeptos conseguiram finalmente, através da organização Initiative Violett-Weiss, uma reunião para tentar levar os novos dirigentes à razão. Foi-lhes proposto o seguinte: esqueçam o nome no estádio, que passaria a ser Red Bull Arena, o escudo, uma reprodução do logótipo das bebidas energéticas, e as cores principais, agora o vermelho e o branco; mas poderiam ter, se assim o entendessem, o violeta que até aí pintara as bancadas do Stadion Wals-Siezenheim nas meias dos guarda-redes. Um insulto. 

Foi a gota de água. Um larga franja de apoiantes desertou e ressuscitou o Áustria Salzburgo no sétimo escalão, mais concretamente no 2. Klasse Nord A. Conseguiram quatro promoções consecutivas e chegaram à segunda divisão, porém o profissionalismo correu mal, uma vez que se entrou em colapso financeiro e se voltou a descer. 

Na terça-feira, tiveram a sua vitória. Poder defrontar o decacampeão Red Bull Salzburg na segunda eliminatória da Taça a vestir as suas cores e usar o seu escudo, e passar inúmeras mensagens para os rivais e para o mundo. A sua existência era, só por si, uma forma de protesto. O resultado não interessava para nada.

A partida começou a ganhar hype em julho, depois do sorteio. O Áustria recusou-se a usar o símbolo e o nome do Red Bull Salzburgo nos materiais de promoção, apresentando apenas as iniciais RB em cima de um círculo negro. 

A notícia correu mundo e o mais pequeno clube da cidade tornou-se rapidamente no favorito dos neutrais. Foi o que se viu no sábado, no embate entre Rapid Viena e Sturm, com faixas anti-Red Bull nas bancadas, mostradas por apoiantes dos dois lados: «Em Salzburgo, apenas Áustria!» Entretanto, na Alemanha, onde o irmão Leipzig também colhe animosidades contra, houve manifestações de apoio. Já de Inglaterra, chegaram mensagens do FC United of Manchester, dissidentes dos Red Devils no pós-Glazers. Amigos, os dois clubes já se defrontaram inclusive em amigáveis.

Alimentados também pelo número redondo do 90.º aniversário do clube original, festejado duas semanas antes, os adeptos prepararam-se para a 'batalha'. A partida ganhou rapidamente a dimensão de embate mais importante da temporada. Nas bancadas do emprestado Max-Aicher-Stadion – infraestrutura usada pelo SV Grödig e pelo Liefering, curiosamente satélite do… Salzburgo –, mais de 4000 adeptos ruidosos não deixaram passar a oportunidade de se fazer ouvir. Ergueu-se um tifo enorme, com Mozart a acertar em cheio num touro e a expressão «Em Salzburgo tocámos violino primeiro, o que conta para vocês é apenas sucesso e dinheiro, seus porcos sem caráter.» Lançou-se fogo de artifício ao intervalo num espetáculo impressionante. E o guarda-redes Manuel Kalman vestiu um equipamento único, ilustrado com frase «não estou à venda» gravada no peito. O protesto correu mundo.

Num futebol visto cada vez mais como um produto, uma máquina de ganhar dinheiro (e de perdê-lo tantas vezes), mensagens como a do Áustria criam em nós um certo saudosismo por tempos em que cada jogo era de facto apaixonante, vibrante e uma viagem de descoberta também pela história e tradições de cada emblema. Momentos em que também nós sentíamos que éramos capazes de vestir aquela camisola. 

Franz Xaver Ager, conhecido por Schützei, o adepto mais famoso do Áustria

Dessa batalha de valores de terça-feira, ficou o eco: à passagem do 33.º minuto da segunda parte – ano de fundação do clube original –, já com o resultado em 0-3, cumpriu-se o ritual. O bom do Schützei, do alto dos seus 67 anos, gritou como nunca Ratatata tatata tatata. E as bancadas responderam ainda mais alto, para tentar abanar as fundações atuais do jogo: Áustria! Todos o ouvimos.