Athletic-Real: a história por detrás da imagem do ano

Athletic-Real: a história por detrás da imagem do ano

INTERNACIONAL02.10.202319:50

É no sempre escaldante dérbi basco que se vive a rivalidade mais civilizada e saudável do futebol; os adeptos de ambos ‘lutam’ pelo título de emblema maior de Euskadi, «a nação do povo mais antigo do Mundo», mas assistem juntos aos duelos. Porquê? É simples: muito mais é o que os une do que aquilo que os separa

A imagem, exemplar e feliz, tornou-se rapidamente viral e correu o Mundo: um sorridente adepto do Athletic Bilbao isolado no meio de centenas de seguidores da Real Sociedad. Em campo estavam os dois maiores rivais do País Basco, emblemas das duas maiores cidades do território, Bilbau e San Sebastián (embora a capital seja Vitória) e que, há 114 anos, lutam pelo título de maior símbolo da região.

Muitos foram os que ficaram surpreendidos com aquela imagem de saudável convivência registada no passado sábado durante o dérbi basco, o euskal derbia, vencido por 3-0 pela Real Sociedad, adversária do Benfica na Liga dos Campeões

Porém, apesar da enorme rivalidade regional e dos inúmeros desentendimentos entre direções, com vários cortes de relações ao longo da história, a verdade é que o contacto entre adeptos e jogadores dos dois clubes é, salvo raríssimas exceções, muito civilizado e festivo, o que torna normal ver-se em todos os dérbis camisolas e bandeiras bilbaínas e donostiarras misturadas tanto no exterior, antes e depois dos jogos, como em vários setores do estádio durante os mesmos.

E, apesar das enormes diferenças culturais e sociais entre as duas cidades e respetivos habitantes, é muito mais o que une do que aquilo que separa estes dois representantes de Euskadi, o País Basco, a autointitulada «nação do povo mais antigo da Europa».

Desde logo, esse ideal de nação. De língua, tradições e bandeira comum. De união nas lutas fratricidas ora contra a ditadura de Franco, ora pela independência do País Basco que marcaram o século passado. E que, apesar dos já mencionados 114 anos de histórias separadas e da enorme diferença de estilos de vida em Bilbau e em San Sebastián, se espelha todos os anos nos dérbis entre os dois clubes, com adeptos vestidos de azul e de vermelho, misturados em convívio são, defendendo os respetivos ideais mas respeitando os dos seus oponentes.

Foto Imago

É essa identidade, a identidade basca, que acaba por unir os dois rivais, mesmo sabendo que nem tudo foram rosas desde 1909, ano de fundação da Real Sociedad e do primeiro confronto com o Athletic, fundado em 1898. Sobretudo nos primeiros tempos, as diferenças sociais foram marcantes: Bilbau, capital espiritual da nação basca, cidade portuária, sede dos movimentos intelectuais e independentistas bascos, mais rude; San Sebastián, mais cosmopolita, elegante e turística, com a sua bela baía tantas vezes escolhida pela família real espanhola e outras de nobres de toda a Europa, como praia de eleição.

A rivalidade sempre foi, também por tudo isto, muito intensa. Mais ainda quando falamos de emblemas regionais que conseguiram impor-se a nível nacional, com conquistas da La Liga no currículo, os últimos no início dos anos 80 quando dividiram a hegemonia do futebol espanhol, com a Real Sociedad campeã em 1981 e em 1982 (os seus dois únicos títulos de Espanha) e o Athletic Bilbao vencedor em 1983 e 1984 (os últimos dum total de oito campeonatos conquistados).

Foto Imago

Gabam-se os bilbaínos de terem, precisamente, mais títulos, de nunca terem descido de divisão (proeza partilhada apenas com Real Madrid e Barcelona) e de terem deixado na história nomes como o do goleador Rafael Moreno Aranzadi, famoso pela sua alcunha: Pichichi, a lenda que deu, precisamente, origem ao troféu de melhor marcador da Liga…

A verdade é que nem as muitas polémicas dos anos 80, com inúmeras trocas de jogadores entre equipas, que tanto enfureceram os adeptos, mexeram com a união por detrás da identidade comum aos aficionados de ambos os emblemas que enchem jornada após jornada San Mamés ou o Anoeta. 

Uma união que ganhou visibilidade mundial no dérbi de 5 de dezembro 1976 quando, no antigo estádio de Atocha, os capitães das duas equipas, Inaxio Kortabarria e José Ángel Iribar, entraram juntos em campo, ostentando a Ikurriña, a bandeira da região. Era a primeira vez que o símbolo aparecia em público, perante milhares de pessoas, desde a instituição da ditadura em Espanha em 1939. 

A entrada em campo no dérbi basco de 1976 (Foto DR)

O ditador Francisco Franco, recorde-se, tinha morrido tempos antes, mas a bandeira continuava a ser proibida. Foi, assim, em segredo que a entrada em campo foi preparada e bem sucedida. Os adeptos ficaram em êxtase, abraçados em lágrimas, independentemente da cor das camisolas ou cachecóis que com eles traziam.

Há ainda a questão da naturalidade dos jogadores dos clubes, que desde o início do século passado foi imagem de identidade dos dois emblemas. O Athletic mantém essa política, a de contar apenas com futebolistas bascos, embora nos últimos anos com ligeiras aberturas; a Real Sociedad começou a mudar a tradição no final dos anos 80, abrindo portas a estrangeiros, destacando-se entre os primeiros os portugueses Carlos Xavier e Oceano, pouco depois de o inglês John Aldridge ter sido o pioneiro.

Oceano e Carlos Xavier apresentados na Real Sociedad em 1991 (Foto ASF)

Os antigos sportinguistas chegaram a San Sebastián em 1991, quando treinava a Real o galês John Toshack, ainda hoje uma lenda da Real Sociedad, ele que passara por Alvalade, na época 1984/1985.

Avançado umas décadas, chegamos ao grande episódio recente desta rivalidade, quando uma das equipas conquistou um troféu na sequência de um dérbi basco. Aconteceu na final da Taça do Rei 2019/2020, em plena pandemia e na qual Athletic Bilbao e Real Sociedad se defrontaram pela primeira vez, na busca de um regresso aos tempos áureos da década de 80 do século XX. 

Real Sociedad derrotou o Athletic Bilbao (1-0) e conquistou a Taça do Rei 2019/2020 (Foto Imago)

Venceu a Real Sociedad por 1-0, com um golo de Oyarzábal a garantir a segunda Taça do Rei para o seu palmarés. No estádio e no seu exterior, uns mais felizes, outros mais tristes, os adeptos voltaram a dar exemplo de cordialidade e civismo, em saudável confraternização e cantando músicas típicas de Euskadi.

O que se viu no passado fim de semana espantou um mundo do futebol marcado por rivalidades tantas vezes violentas e onde os exemplos de convivência saudável entre opostos são uma raridade. A imagem do adepto do Athletic, sorridente no meio de milhares de aficionados da Real Sociedad de costas para o campo, aos saltos a cantar, ficará por muito tempo nas memórias dos que a viram como exemplo perfeito da festa de comunhão que o futebol tantas vezes deveria ser.