A verdadeira história da tradição das luvas pretas
João Alves faz 71 anos esta terça-feira, e explica a tradição familiar a A BOLA
João Alves, um dos mais talentosos jogadores da história do futebol português, referência de Benfica, Boavista, Salamanca e da Seleção Nacional, faz hoje 71 anos.
Médio de eleição, daqueles que onde punha os olhos punha a bola, Alves assinou uma exibição — seguramente das melhores da sua carreira — na vitória do Benfica sobre a Roma no Estádio Olímpico da cidade eterna, em 1983, para a Taça UEFA, que levou a imprensa transalpina a admitir que tinha conseguido vulgarizar Paulo Roberto Falcão, o internacional brasileiro que era a estrela mais cintilante dos giallorossi. Antes, na época de 1976/77, João Alves, apesar de estar ao serviço de uma equipa que garantiu a manutenção apenas por dois pontos, o Salamanca, foi eleito melhor jogador, pelo diário Marca, da Liga espanhola, onde atuavam, nessa temporada, vultos como Cruijff, Neeskens, Breitner, Stielike, Luiz Pereira, Leivinha, Rep, Mário Kempes ou Carlos Diarte…
Por onde passou, Varzim, Montijo, Boavista, Salamanca, Paris Saint-Germain e Benfica, além das 36 vezes em que vestiu a camisola das Quinas, as luvas pretas que passou a usar a partir de 1970 constituíram a sua imagem de marca, quer lhes chamassem guantes negras ou gants noirs. De uma forma geral, é dito que João seguiu a tradição familiar iniciada pelo avô Carlos, internacional olímpico em Amesterdão/1928, que jogava de luvas pretas. Mas essa é apenas a história, contada de forma superficial. Daí que nada melhor do que ouvir o próprio João Alves a desfiar memórias e a revelar todos os quês e porquês, alguns com contornos dramáticos e intimistas, que fazem parte da lenda do futebol português e não podem ficar apenas pela transmissão oral. Então, foi assim que se passou, tal e qual foi contado por Carlos Alves ao neto João…
«O Carcavelinhos, onde jogava o meu avô», começou por dizer João Alves, «disputava um jogo com o Benfica e fez estágio em Vale de Lobos, perto de Sintra. E foi nessa altura, durante uma refeição e à frente da equipa, que uma jovem, que era fã dele, lhe ofereceu umas luvas pretas, dizendo-lhe ao mesmo tempo que, se queria ganhar o jogo, tinha de usá-las.» Porém, a história teve mais que se lhe diga: «O meu avô agradeceu, guardou as luvas no casaco, mas não entrou em campo, nessa decisão com o Benfica, com elas calçadas. Aconteceu que, ao intervalo, o Carcavelinhos estava a perder, e foram os próprios colegas de equipa que quase o obrigaram a jogar a segunda parte com as luvas pretas.» E aqui João Alves fez um parêntesis para dizer algo que conhece bem, e ao qual nunca foi insensível quer como jogador, quer como treinador: «Aliás, todos nós sabemos como o mundo do futebol é terreno fértil para superstições!»
Continuando a narrativa do que aconteceu nos anos 20 do século XX, João Alves revelou: «O que se passou a seguir foi que o meu avô entrou com as luvas nas mãos, o Carcavelinhos deu a volta ao jogo e venceu por 2-1.» E Alves aproveitou para dar mais um detalhe, dizendo com orgulho: «Tenho comigo a medalha que o meu avô recebeu nessa tarde, algo que faz parte das recordações da família. Anos mais tarde, essa luvas transitaram para mim, mas isso é outra história…»
Depois de ficarmos a saber como Carlos Alves passou a nunca mais dispensar as luvas negras nos jogos que disputou, chegou o momento de João Alves contar como se fez a passagem de testemunho entre avô e neto. E começou com um lamento, assumindo: «Infelizmente, o meu avô [falecido em 1970] nunca me viu jogar de luvas pretas.» E porquê? Aqui, falando sempre com sentimento, ciente de que estava a partilhar memórias muito pessoais, Alves confessou que não teve coragem de usar as luvas porque «a ligação era muito próxima». «Até porque entre os meus três e 12 anos vivi com ele, seguindo-o por onde andou no exercício da profissão de treinador de futebol. Aliás, o último clube que o meu avô treinou foi o Alba, de Albergaria a Velha, onde nasci e, muitos anos mais tarde, quis o destino que viesse a ser presidente desse emblema durante dois anos.»
Clarificada esta situação, Alves, dizendo que não queria «perder o fio à meada», contextualizou: «Ká morava em São João da Madeira, onde nos radicámos por razões de saúde do meu avô, quando comecei a jogar nos principiantes da Sanjoanense. Nessa altura ele pediu-me muitas vezes que também usasse as luvas pretas, mas nunca tive coragem de fazê-lo, porque não me sentia confortável com o peso do legado.»
Pelo talento que Deus lhe dera, era impossível que João Alves, apesar de franzino, escapasse ao radar dos três grandes, que, sem a sofisticação dos dias de hoje, já dispunham de olheiros espalhados pelo Continente, Ilhas e Colónias, para a deteção de jovens promissores. «A seguir», prossegue João Alves, «vim para os juvenis do Benfica, e um ano depois, já nos juniores, os meus pais chamaram-me a casa para ir ver o meu avô ao hospital, onde estava já muito doente.» Alves fez uma pausa, como que para ganhar balanço, e revelou que o avô «pela última vez» pediu-lhe que «seguisse a tradição dele» e passasse a jogar com as luvas pretas. «Dois dias depois, faleceu.» Foi então que João Alves decidiu assumir o legado familiar e arrostar com a responsabilidade e o peso das luvas que tinham brilhado nos Jogos de Amesterdão. «Regressei a Lisboa e num jogo na Malveira, para o Campeonato Distrital de Juniores, usei pela primeira vez as luvas pretas, e até ao fim da carreira nunca mais as larguei», aditou João Alves, que ainda fez questão de deixar bem claro: «O meu avô, que foi das pessoas mais importantes da minha vida, nasceu em 1903 e é com enorme prazer que 120 anos depois estou aqui a falar dele, das luvas pretas, e de toda a tradição associada. Essas luvas, as que herdei dele, tenho-as em casa…»
E foi assim que aconteceu...
«José Maria Pedroto foi o meu ‘pai’ no futebol»
A primeira passagem de João Alves pelo Boavista (1974/76) permitiu-lhe explodir como jogador de nível internacional. E o técnico axadrezado, José Maria Pedroto, não foi alheio a essa evolução. Alves explica:
«Há uma frase que os jogadores usam para classificar quem foi para eles importante na carreira que é ‘o meu pai no futebol’. E se houve quem tivesse importância na minha carreira, sem esquecer o meu avô, foi José Maria Pedroto. Ele tentou ir buscar-me, no ano em que acabei por ir para o Montijo, para o Vitória de Setúbal, mas o Benfica, com quem tinha contrato, não deixou. Na época seguinte, já no Boavista que transformou em Boavistão, Pedroto contratou três jogadores do Montijo, eu, o Chico Mário e o Carolino, e comecei uma nova etapa.»
Mas afinal, o que tinha Pedroto que os outros não tinham? João Alves, que se mantém grato pelo que aprendeu com o Zé do Boné, caracteriza assim o mestre:
«José Maria Pedroto era uma pessoa inteligentíssima, era um psicólogo por excelência, que entrava na cabeça dos jogadores com uma facilidade impressionante, era um mestre das táticas, e sabia tudo sobre futebol. Com isto, o senhor Pedroto tirava de cada jogador o máximo do rendimento. Posso dizer, passe a expressão, que foi ele que me domou, porque eu precisava de ser domado. Nunca tive um feitio fácil e tive pegas incríveis com ele, expulsou-me várias vezes do treino, mas tirou o melhor de mim e fez-me crescer.
Gostava também referir outros dois treinadores que me marcaram, o espanhol García Traid, no Salamanca, e mais tarde o húngaro Lajos Baroti, no Benfica.»
As lesões que ensombraram uma carreira de excelência…
Um tecnicista como João Alves, que mexia os cordelinhos das equipas por onde passava, era sempre um alvo das carícias dos adversários, isto numa altura em que era normal haver marcações homem a homem. Em dois momentos, o luvas pretas chegou a ter a carreira comprometida.
João Alves conta como foi: «Mesmo na fase final da minha última época nos juniores do Benfica, numa altura em que estava para integrar o plantel principal — já tinha assinado por três anos —, estive na Seleção Nacional que eliminou a França e se qualificou para a fase final do Europeu de Juniores, na Checoslováquia. Antes desse campeonato, fizemos um jogo de preparação na Roménia, onde sofri uma entrada violenta que me fraturou o menisco externo. Nessa altura as operações ainda eram com facadas, e não com furinhos, como se faz agora, e numa altura em que era fundamental estar no meu melhor fisicamente, para disputar um lugar com aqueles monstros sagrados que tinham vindo do Mundial de 1966, que estavam a terminar o seu trajeto, enquanto que a minha geração estava a iniciá-lo, vi-me a recuperar de uma cirurgia. Quando recuperei comecei a jogar pelas reservas, mas acabei, no mesmo joelho, por fraturar o menisco interno e ir de novo à faca. Foi uma época perdida. Depois, porque naquela idade jogar era o mais importante, fui ouvindo propostas para sair por empréstimo, mas a verdade é que vários clubes falaram comigo e depois desapareceram de cena, vindo a saber depois que havia quem lhes dissesse que o meu joelho não estava em condições. Foi então que apareceu o Varzim, que tinha como presidente um ex-dirigente da FPF que me conhecia da seleção de juniores que acabou por sagrar-se vice-campeã da Europa, que me acolheu. Terminámos essa época em segundo lugar na zona Norte e só não subimos porque perdemos a finalíssima com o Montijo, por 1-0. Mas confesso que me foi difícil encontrar clube!»
Anos mais tarde, depois de ter sido titular da equipa europeia de 1978/79 escolhida pela revista francesa Onze (Peter Shilton; Viv Anderson, Brandts, Krol, Bossis; João Alves, Haan, Keegan; Francis, Krankl, Resenbrink), o luvas pretas tornou-se no gants noirs ao ser transferido, por valores extraordinários para a época, para o Paris Saint-Germain. Porém, nem tudo correu bem e Alves conta porquê: «Fui para o PSG [1979] carregado de ilusões e receberam-me principescamente. Estreei-me no Parque dos Príncipes numa vitória por 2-1 sobre o Marselha onde fiz uma exibição espetacular, e no jogo seguinte, em Sochaux, o Genghini, internacional francês, fez-me um tackle e deixou-me a perna virada ao contrário. Tive várias fraturas e essa lesão foi bem mais difícil de ultrapassar que os meniscos. Estive meia época parado e perdi o gosto por estar em Paris. Decidi então, regressar uma vez mais à casa-mãe, ao Benfica…»
Uma estrela no Estrela
Uma estrela no Estrela. João Alves teve uma longa e prestigiada carreira de treinador, a que terá apenas faltado a possibilidade de treinar um dos ‘grandes’. Por várias vezes esteve perto de acontecer, mas nunca se concretizou. Porém, entre muitos trabalhos de enorme qualidade que assinou, a joia da coroa foi a conquista da Taça de Portugal ao serviço do Estrela da Amadora, em 1989/1990. Uma proeza vista assim por João Alves: «Empatámos a final com o Farense e vencemos a finalíssima. Evidentemente que é dos momentos mais marcantes e felizes da minha carreira e o ponto mais alto da história do Estrela. Aliás, apanhei o clube no ano de estreia na I Liga, anos depois regressei e subimos ao escalão principal, e nessa época fomos à meia-final da Taça, que perdemos com o FC Porto por 2-1, e ainda voltei uma terceira vez e voltámos a subir de Divisão. Na Amadora, venci uma Taça de Portugal e estive em duas subidas»