Espaço Universidade Velhas propostas a um futebol novo (artigo de Manuel Sérgio, 345)
Nascido e criado no bairro da Ajuda, em Lisboa, mal abertos os olhos para o azul esplendente do Tejo, foi na camisola azul do Belenenses que descobri os meus primeiros ídolos: os jogadores do Belenenses! De instintos em liberdade, a “minha malta” e eu percorríamos os bairros de Ajuda e Belém muito ufanos da nossa cor clubista. Miúdos, entre os 7 e os 15 anos, não escondíamos nunca o nosso primitivismo bairrista (ou “regionalista”), que tinha, para nós, no C. F. “Os Belenenses”, o seu máximo representante. É evidente que não sabíamos que o Artur José Pereira fundara e criara o nosso Clube. “Numa noite de fins de Agosto, num banco do jardim da Praça Afonso de Albuquerque, Artur José Pereira, seu irmão Francisco Pereira, Henrique Costa, Carlos Sobral, Joaquim Dias, Júlio Teixeira Gomes, Manuel Veloso e Romualdo Bogalho encetaram as primeiras “démarches” para a formação de “Os Belenenses”, que concretizaram, em 23 de Setembro de 1919 e, na Assembleia Geral de 2 de Outubro de 1919, no Belém Clube, na Calçada da Ajuda” (Acácio Rosa, Factos Nomes e Números do Clube de Futebol “Os Belenenses”, 2º volume, Lisboa, 1989). Muito menos sabíamos que “o futebol moderno evoluiu ao longo de três idades que, não sendo na turalmente herméticas, surgem perfeitamente auto-identificadas. A primeira foi a Idade do Prazer e decorreu entre a fundação do jogo, em 1863, e a segunda metade do século XX (…). A segunda idade, justamente a da Razão, iniciada no final da década de 20, em que os jogadores deixaram de ser amadores (aqueles que amam) e passaram a ser aqueles que servem, isto é, profissionais assalariados de um clube. Foi com o profissionalismo, então perfeitamente assimilado, e as exigências produtivas do clube-empresa, que chegou a uma verdadeira organização criadora da ordem dentro da equipa. Ao longo desta idade, que decorreu até ao início da década de 70, o jogo expandiu-se e angariou prosperidade (…)”. Na sua terceira idade, ou Idade da Maturidade, “os clubes adquirem uma cada vez mais acentuada textura empresarial e vêem abaladas as suas conotações simbólicas” (Álvaro Magalhães, História Natural do Futebol, Assírio & Alvim, 2004, pp. 63 ss.)…
Quando, em 1968, ingressei, no INEF, como seu bibliotecário e depois docente, dois ou três anos depois acompanhei (de longe, mas com interesse) o sonho do Mirandela da Costa e do Jesualdo Ferreira de criarem, na sua escola, um departamento de futebol, que se ocupasse dos aspetos pedagógicos e científicos desta modalidade. Por seu turno, ainda no INEF, o Monge da Silva estudava o treino desportivo, como ninguém o fez, antes dele, no nosso país. Eu, vice-presidente da direção do C.F.”Os Belenenses”, acicatado, incitado pelo que via no INEF, informava-me junto dos treinadores do meu clube o que entendiam eles por treino desportivo. Entretanto, depondo contra o teor do ensino do futebol, ministrado em Portugal, chegava-nos do Norte a voz sábia de José Maria Pedroto: “Temos muito que aprender. Faltam 30 metros ao futebol português”. Para mim, que o conheci com alguma intimidade, a sua grande característica era esta: como os sábios, ele sabia que não sabia. Quero assim obtemperar a um certo índex, implantado no futebol português, que esconde o que deve (o muito que o futebol português deve) a José Maria Pedroto, a Jesualdo Ferreira, a Mirandela da Costa, a Carlos Queirós , a Nelo Vingada (Carlos Queirós e Nelo Vingada, os treinadores-vencedores de dois Mundiais de juniores) ao Rui Caçador e a Monge da Silva (este, no âmbito do treino). Foi com Pedroto e o INEF e o ISEF (realçando também no ISEF o papel do Prof. Henrique de Melo Barreiros, presidente do Conselho Científico), que se ergue o anúncio de um “corte epistemológico” que me permite avançar com uma ciência humana, independente e autónoma. E, porque ciência humana, invocando, em todas as circunstâncias, designadamente no treino e na competição, uma visão complexa e sistémica do ser humano, que é corpo-alma-sentimentos-natureza-sociedade-cultura (elementos que laboriosamente deverão treinar-se, estimular-se e ter na devida conta). O treino desportivo, mormente na alta competição, deverá transformar-se numa “pedagogia corporal da transcendência” – não chegam assim os indispensáveis exercícios físicos, pois que na transcendência os âmbitos cognitivo, afetivo e moral e cultural e até religioso são por demais evidentes. O engenheiro Fernando Santos que, tecnicamente, liderou a vitória portuguesa no Europeu de França (2016) viveu, com indómita bravura, o que esta problemática supõe.
Conquanto muito embiocado no meu belenensismo, mas rodeado de tantos mestres, nos quais quero incluir também, no âmbito da Filosofia, o Bachelard, o Althusser, o Maurice Merteau-Ponty, o Foucault, o Lyotard, o Deleuze, o Derrida, o Popper e o Kuhn e sempre o Padre Teilhard de Chardin – entrei afoito nos conceitos de uma nova filosofia e de uma nova ciência. Era o tempo em que, mormente através de Jean Le Boulch e Pierre Parlebas e dos treinadores Cruyff e Sacchi, despontava uma linguagem nova, digamos mesmo: um verdadeiro glossário: corpo-instrumento, ciência do movimento humano, psicocinética, motricidade humana, conduta motora, futebol total, marcações zonais, defesa longe da baliza, etc., etc. – o que significava que se esperava, não uma “apagada e vil tristeza”, mas a alvorada de uma nova ciência e novos conceitos filosóficos. Apareço eu então a sistematizar (e talvez a criar) um “corte epistemológico” com um novo conceito de motricidade, que hoje assim defino: o movimento intencional e solidário da transcendência. Nasceu assim, nas suas linhas gerais, a ciência da motricidade humana e, no meu modesto entender, o paradigma científico da Faculdade de Motricidade Humana. É evidente que, entre os especialistas em Educação Física e Desporto, nem todos aceitam as minhas ideias. Ainda bem: encontro assim um modo fácil de tornar mais sólido o que vou fazendo. Unamuno tinha, como forma superior do entendimento, o prazer de um autor de autocriticar-se, retificar-se. Feyerabend apregoa que a “comunidade científica”, obsessionada por métodos petrificados, em tudo hostis à inovação, quase nunca é o espaço ideal à criatividade. O criador que os contesta é, para os académicos da “ciência normal”, um doidivanas atrevido, que levianamente se meteu onde não foi chamado. Que defende então Feyerabend? Que, em ciência, “tudo vale, tudo serve”… desde que resulte! Diz-nos Feyerabend, no seu Contra o Método: “a ciência, como a praticam os nossos grandes cientistas, é mais do que tudo, uma habilidade e uma arte”. Ocorre-me agora o Jorge Jesus, que é mais o ímpeto da genialidade do que “ciência normal”. Estudei-o durante anos, sei o que digo. Feyerabend revivesce em Jorge Jesus.
Dando livre curso à minha memória, não estranhem que me exprima à maneira antiga: o F.C.Porto é o novo campeão nacional de futebol! E tem por si um dos melhores jogadores do mundo: o Corona! No futebol, o jogador, é mais instinto do que razão. Nesta modalidade, a perda da consciência é compensada pelo acréscimo do instinto. Dou, de novo, a palavra a Álvaro Magalhães: “ E o que é o instinto senão uma inteligência natural e inata , que é suposto o homem também ter possuído em idades mais recuadas? É aí, no instinto, que o futebolista guarda a sua sabedoria, feita de sentir, ou seja, de uma exaltação dos sentidos” (op. cit., p. 181). Pelé, Di Stéfano, Maradona, Cruyff, Eusébio, Messi. Cristiano Ronaldo e alguns (poucos) mais, porque geniais, eram pessoas de inteligência invulgar mas, no seu ADN, algo de divino havia neles, que não é comum a todos os mortais. A este “algo mais” o Álvaro Magalhães chama-lhe “instinto” – “instinto” absolutamente necessário à criação das melhores equipas da história do futebol. O Real Madrid de Di Stéfano, o Brasil de Pelé, a Argentina de Maradona, a “Laranja Mecânica” de Cruyff, o Barcelona de Messi e o Portugal de Eusébio e de C. Ronaldo, não seriam o que foram (ou o que são) sem a genialidade dos seus principais jogadores. O próprio Milão de Sacchi, que vivia, sobre o mais, da organização tática, contratou os holandeses Gullit, Van Basten e Rijkaard e confiou a braçadeira de capitão a Franco Baresi. Uma tática silogística, conjetural, espécie de “mathesis universalis”, da autoria de um treinador, isolado na “torre de marfim” do seu intocável saber – não existe, sem a encarnação da tática num jogador genial e numa equipa de jogadores talentosos. Van Basten era tão possante, como habilidoso e suspicaz. Marcou alguns golos que me deixavam boquiaberto. Como organizar corretamente uma equipa de futebol profissional? Aí deixo as velhas propostas: bons dirigentes que saibam escolher bons treinadores, para que estes sugiram e depois saibam motivar os bons jogadores. Que papel está reservado ao treinador, nesta organização? O presidente é que sabe…
Manuel Sérgio é professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana e Provedor para a Ética no Desporto