Tudo menos futebol

OPINIÃO13.05.202206:55

Jesus protagonista numa semana de denúncias privadas e inconveniências públicas

N UM dia de fevereiro de 2007, por acaso invulgarmente agradável, em Londres, com muitas nuvens, mas também algum sol, dirigi-me ao hotel onde se aguardava a chegada da seleção do Brasil, então liderada pelo antigo jogador Dunga (campeão do mundo em 1994). O Brasil defrontaria no dia seguinte, no Emirates Stadium (casa do Arsenal), a seleção portuguesa comandada pelo também brasileiro Filipe Scolari.

Tratava-se de um jogo particular, mas nem por isso menos mediático. O Brasil, jogue onde jogar e com que equipa jogar, é sempre o Brasil, e o Portugal de Scolari era já também (há quinze anos…) uma seleção que impunha muito respeitinho no mundo do futebol, e vale a pena recordar que tinha sido finalista do Europeu de 2004 e semifinalista do Mundial de 2006, sempre sob o comando de Scolari.

Estava eu, portanto, em trabalho para o jornal A BOLA, à porta do hotel onde se instalaria a seleção do Brasil, quando vejo chegar o autocarro da equipa rodeado de fortíssimas medidas de segurança, motos e carros da polícia, carrinhas pretas aparentemente de segurança privada, e ainda uma limusine própria do transporte de estrelas. O autocarro parou e a limusine parou atrás. E, para dizer a verdade, eu já não sabia se havia de dar atenção aos jogadores que sairiam do autocarro ou à estrela desconhecida que sairia da limusine. O aparato de segurança parecia até maior, confesso, junto da limusine do que perto do autocarro. Seria o presidente do Brasil? Se fosse, estava explicado. Mais do que explicado, estava justificado!

Mas não, afinal não era o presidente do Brasil. Nem o Roberto Carlos. Nem uma qualquer outra estrela da MPB (música popular brasileira). Era o jornalista da TV Globo, Galvão Bueno, enviado a Londres para fazer a narração do jogo com Portugal. Com Galvão Bueno estava uma senhora de vestido e casaco de peles suficientemente exuberantes para chamar, também, muita atenção. Sua mulher desde 2000, Desirée Soares, empresária do mundo da moda.

Estupefacto, perguntei a alguns dos repórteres brasileiros presentes na porta do hotel por que razão Galvão Bueno chegava de limusine, com todo aquele aparato.

«Sabe, cara» - respondeu-me um -, «os jogos da seleção do Brasil têm a maior audiência da TV brasileira; 50 por cento por causa da equipa, 50 por cento por causa do Galvão!». Fiquei esclarecido.

No dia seguinte, bem vi como Galvão Bueno chegou ao estádio do Arsenal, acompanhado do comentador da Globo para esse jogo, nada mais do que Paulo Roberto Falcão, um dos maiores craques do futebol brasileiro que tive oportunidade de ver, na TV e ao vivo. Mas se Falcão era a estrela que era, Galvão Bueno, acreditem, não lhe ficava, pelos vistos, atrás. Estou, pois, a falar, muito provavelmente, da maior estrela da televisão desportiva brasileira. Galvão Bueno, hoje com 71 anos, tem 49 anos de TV Globo, 29 dos quais seguidos, porque saiu da estação em 1992, regressando, porém, logo no ano seguinte.

Para que o leitor melhor me compreenda, em matéria desportiva, ser entrevistado no Brasil por Galvão (como é carinhosamente tratado pelos pares) é mais ou menos o mesmo que, noutro plano, ser entrevistado nos Estados Unidos pela famosa Oprah Winfrey.

Galvão Bueno começou carreira na televisão em 1981. Esteve nos maiores acontecimentos desportivos mundiais, nomeadamente Mundiais de futebol (todos, de 1982 até ao próximo, no Catar, onde se despedirá) e inúmeros grandes prémios de Fórmula, outra das grandes paixões de Galvão, onde fez grandes amigos como Fittipaldi, Piquet, Ayrton Senna. Contabilizou presenças em muitas edições dos Jogos Olímpicos e assina, como autor, apresentador e entrevistador, desde 2003 (há quase vinte anos no ar) o programa «Bem, amigos», nas noites de segunda-feira, no canal por cabo da Globo, SporTV.

Foi, assim, esta incomparável estrela que é Galvão Bueno (num gigantesco país como é o Brasil) que recebeu Jorge Jesus, no programa emitido na última segunda-feira para uma das maiores audiências por cabo da TV brasileira, para que também melhor se possa compreender o enorme impacto criado por Jorge Jesus nos media brasileiros, sem qualquer paralelo, como facilmente se perceberá, com a noção de impacto que temos neste pequenino país, aqui à beira-mar plantado…

Nessa entrevista, uma extensa entrevista, nem tudo correu, realmente, bem a Jorge Jesus. Talvez ainda marcado pela revelação (absolutamente inqualificável) de uma conversa privada, alegadamente tida, num jantar em casa de um antigo presidente do Flamengo, o treinador português deixou-se escorregar pela imprudente tentação de contar o que se terá passado no Benfica que levou à decisão de se afastar (ou ser afastado) do comando da equipa, em dezembro do ano passado.

Admito, evidentemente, que Jesus não tenha gostado de ver tornada pública uma conversa privada (onde ninguém pode saber muito bem o que disse, ou sequer como disse e em que contexto o disse), mas acabou por cometer o mesmo pecado ao revelar conversas, até agora privadas, que manteve com o presidente do Benfica, Rui Costa, no momento em que ambos decidiram terminar a ligação profissional que Jesus mantinha com o Benfica.

Mas Jesus não revelou apenas o que foram conversas privadas entre treinador e presidente do clube. Deixou Rui Costa numa situação muito desconfortável, tão desconfortável que Rui Costa, e sua equipa, se entenderam obrigados a desmentir, agora, o treinador. Uma inconveniência total.

Ou seja: é inqualificável que uma conversa privada, alegadamente tida por Jorge Jesus num jantar privado em casa de um antigo dirigente do Flamengo, seja tornada pública. É inqualificável e muito menos pode ser validada por jornalistas que respondem a códigos de ética e deontologia. Não faço ideia se Jesus disse o que o tal bloguista brasileiro escreveu no portal UOL, disponível na internet. Mas tenha dito o que se diz que disse ou outra coisa qualquer, fê-lo privadamente, e o que é privado, privado deve manter-se.

Também eu já estive em almoços e jantares onde, privadamente, se disse muita coisa. Mas o que em privado se diz e deve ser denunciado são, isso sim, aspetos que possam estar relacionados com crimes públicos. Essa é uma obrigação jornalística. Sim aos crimes públicos, mas não aos vícios privados.

Deve, em todo o caso, Jorge Jesus, ou outra qualquer figura pública de relevo, ter mais cuidado com quem almoça, janta ou está em privado? Claro que sim. As figuras públicas são também figuras com mais responsabilidade exatamente por serem figuras públicas. E a responsabilidade das figuras públicas também passa pela responsabilidade do que se diz (ou dizem) e com quem se está (ou estão). Se no caso do jantar em casa do antigo presidente do Flamengo Jorge Jesus foi vítima de um cenário com eventuais interesses menos claros, só Jorge Jesus, refletindo em tudo o que sucedeu, o pode concluir. E aprender, ou não, a lição.

Mas o que todos nós podemos concluir, por outro lado, porque o que Jesus disse na entrevista a Galvão Bueno foi Jorge Jesus que o disse, é a injustificada, inesperada, no mínimo imprudente, e muitíssimo evitável revelação de conversas privadas com o presidente do Benfica e a escusada consequência de encostar Rui Costa, mesmo que involuntariamente, à parede, ao ponto de levar Rui Costa a decidir desmentir Jesus sobre o que realmente foi o acordo de afastamento de Jesus do comando do Benfica.

O cenário é simples de processar. Jesus disse que foi ele, Jesus, que pediu a Rui Costa para o deixar sair do Benfica. Ora se foi Jesus a pedir, o que os benfiquistas questionam, com muita naturalidade, é porque decidiu Rui Costa continuar a pagar os salários a Jesus. Se não foi Jesus a pedir, como disse, agora, o Benfica em comunicado, sublinhando mesmo que nunca o treinador se mostrou disponível para abdicar dos salários, questionarão os benfiquistas por que terá então dito Jesus o que disse na entrevista a Galvão Bueno.

Tenho a minha leitura sobre a decisão de Benfica e Jesus terminarem a ligação. O acordo foi, como se esperava, relativamente fácil de atingir entre duas pessoas que se respeitam e até admiram, e a decisão de continuar a pagar ao treinador evitava, naturalmente, cenários, porventura, mais conflituosos. Já tinha bastado o que bastou, quando Jesus decidiu trocar o Benfica pelo Sporting. Creio, por fim, que Jesus não devia ter dito o que disse, nem como disse, nem Rui Costa merecia que Jesus tivesse dito o que disse. O que é realmente privado, privado deve, na grande maioria das vezes, continuar. Para a loiça não partir!

PS: Indelevelmente marcado pelo assassinato brutal de um jovem portista, numa rixa entre adeptos do mesmo clube nos festejos do título do dragão, será ainda uma pena que este campeonato possa ficar mais conhecido pelo «campeonato dos dois centímetros» do que pelo campeonato justamente ganho pela melhor equipa portuguesa do momento. Sérgio Conceição vencedor maior, numa equipa cuja maior estrela é, muito provavelmente, um defesa-central. Quanto à segunda melhor equipa, o Sporting, curiosidade para se ver, no futuro, que marcas deixará o ‘caso Slimani’.