Sven Goran Benfica
Sven Goran Eriksson foi homenegeado no Estádio da Luz em abril e Vasco Mendonça sugere nova homenagem (Foto Miguel Nunes)

Sven Goran Benfica

OPINIÃO27.08.202408:00

'Selvagem e Sentimental' é um espaço de opinião semanal do benfiquista Vasco Mendonça

Quase tudo parece ter sido escrito sobre Sven Goran Eriksson, e ainda bem. Felizmente, não deixaram uma extraordinária história para depois da morte do protagonista. Os elogios fúnebres a pessoas que fomos esquecendo, mesmo sabendo que eram importantes, ganham sempre uma aura de arrependimento por não se ter dito tudo o que queríamos ou não termos estado lá tantas vezes quanto devíamos. Eriksson foi tão marcante na sua passagem pelo Benfica e pelo nosso futebol que ficou sempre entre nós, muito depois de ter liderado a equipa técnica num dos grandes períodos da história do clube e de ter encantado milhões de adeptos. E é assim que permanecerá. Não é caso para menos. Ocorria-me hoje, horas após a morte confirmada de alguém há muito em paz com o seu destino, que existirão diferentes formas de explicar a totalidade do Benfica a alguém. Podemos falar de Cosme Damião e dos 24 magníficos que decidiram criar algo muito maior do que eles, de Eusébio, de Mário Coluna, José Augusto, Torres, Águas e tantos outros, de Chalana, de Carlos Manuel, e de tantos outros que juntos encheriam esta página. Podíamos falar dos adeptos que são aquilo que sustenta a grandeza da instituição, ou de mais ídolos que têm o seu nome inscrito na história do clube, mas nenhuma explicação será fiel à realidade sem explicar que Eriksson foi e continuará a ser um dos alicerces que faz do Benfica um gigante do futebol.

 Nasci em 1981 e só me apercebi da existência de Eriksson na sua segunda passagem pelo clube. Lembro-me de já viver obcecado por futebol, de memorizar todos os jogadores, todos os marcadores de golos e os minutos a que cada golo tinha sido marcado. Lembro-me de sonhar relatar jogos na rádio quando chegasse a adulto, a única profissão que me lembro de alguma vez ter desejado. Lembro-me da primeira vez no estádio e das muitas que se seguiram, dias inteiros que eram uma realidade alternativa. Lembro-me de ver o Domingo Desportivo como se de um momento sagrado se tratasse, e quase sempre irrepetível. Os golos chegavam pelo correio, numa experiência que seria insuportável aos olhos dos adeptos mais jovens de hoje, a quem o sismo chegou numa notificação da Google antes mesmo de terem sentido a terra tremer. Comprar jornais às escondidas dos meus pais, com o dinheiro das gomas, tornara-se um hábito. Aprendera a ler cedo e estava convencido de que o mundo inteiro estava contido nas páginas dos desportivos (há dias em que ainda penso assim). Eu e o leitor sabemos que há recordações muito mais grandiosas do que era então o Benfica e de quem era Eriksson, vindas de quem estava sempre na Luz enquanto tudo isto acontecia. São as pessoas que mais gosto de ouvir. Cada um viveu a história de acordo com a sua circunstância, umas vezes partilhada, outras vezes meio tola e singular. A minha circunstância era a de um miúdo cheio de sonhos, um miúdo ao qual vou tentando regressar desde então. De todas estas recordações, há uma que me marca até hoje, e que relembro sempre, mesmo quando ninguem me pergunta, como o momento em que percebi a grandeza do Benfica. Eram 16:45 do dia 23 de maio de 1990 quando a minha professora da terceira classe, que não era benfiquista, decidiu que as aulas terminariam mais cedo. Passáramos o dia no recreio a ensaiar o modo exato como o jogo aconteceria, eu mais por palavras do que por gestos técnicos com a bola. Os meus relatos, inspirados naquelas tardes da Antena 1 a saltitar de estádio em estádio, terminavam sempre da mesma forma: uma jogada construída de forma ardilosa e dramática, eu a adiar o prazer para dar um efeito realista ao relato e não parecer que íamos ganhar só porque sim, a bola disputada no meio campo, com direito a sucessivas reações à perda, até ao momento apoteótico em que punha à prova as minhas reais aptidões para um dia vir a relatar jogos na rádio. Tinha que ser capaz de prolongar a palavra golo, ênfase no primeiro o, até ficar sem ar. Aí chegado, inspirava se suficiente para gritar bem alto: do Benfica!

As aulas terminaram mais cedo porque naquele dia o Benfica jogava uma final da Taça dos Campeões Europeus. Se fosse hoje, a professora teria as redes sociais à perna e seria obrigada a escolher outro ofício. Felizmente isto não aconteceu em 2024 (a parte de sairmos mais cedo, irmos a uma final da Champions pode ser já amanhã), e por isso lhe posso dever hoje estas palavras de gratidão, à minha professora e a Sven Goran Eriksson, o treinador que, anos mais tarde, vim a perceber tratar-se de uma pessoa invulgarmente carismática, um homem com uma vida cheia de histórias para contar e pouco arrependimento para dispensar, mas que naquela altura me parecia só um tipo diferente.

 O tempo explicou melhor o porquê dessa sensação. O reconhecimento daquilo que foi a sua passagem pelo Benfica e pelo futebol português revela a marca singular de alguém que tornou um clube gigante, ainda maior à sua passagem. Mostra um homem que se engrandeceu por causa do Benfica, mas que nunca se esqueceu do Benfica, essa coisa linda que lhe aconteceu e lhe abriu as portas do resto do mundo. Sinto tristeza e angústia quando penso na morte de uma pessoa que esteve sempre aqui, de pedra e cal, intrinsecamente ligada a um acontecimento tão importante na minha vida. Penso nisso e naquilo que as perdas sucessivas dos heróis do meu clube significam. Ainda sou uma criança “feita para grandes férias”, como escreveu Ruy Belo, uma criança sempre a desejar o dia em que sai mais cedo das aulas porque nesse dia joga o Benfica. Mas agora tenho as minhas próprias crianças, uma forma mais empedernida de ver as coisas, e a realidade concreta teima em intrometer-se na agenda. Já não pede licença nem negoceia férias. Nos últimos anos fui a mais funerais do que a casamentos. Sempre que alguém vai a enterrar, penso no mesmo que muitos de nós. Sou convencido novamente da urgência de vivermos o máximo que podemos enquanto podemos. Saio do cemitério simultaneamente comovido e comprometido em fazer uma espécie de justiça a quem nos deixou primeiro. Foi isso que o próprio Eriksson nos transmitiu numa das suas últimas mensagens, em que pede que saibamos viver com alegria. Se tomarmos a sua vida como inspiração, isso significa deixar as tristezas para trás, como na história contada por Dietmar Hamann, internacional alemão treinado por Eriksson no Manchester City. Uma manhã, numa viagem do City à Tailândia para alguns jogos promocionais, Eriksson chegou à beira de Hamann com uma garrafa de champanhe e dois copos. O jogador perguntou ao treinador o que estavam a celebrar e Eriksson esclareceu: «a vida, meu caro.»  

Mais uma vez, o Benfica perde uma das suas maiores referências num tempo em que, por força da nossa finitude e do trajeto do clube, as referências se tornam cada vez mais escassas. Cada dia que passa é mais um dia em que a instituição Sport Lisboa e Benfica vive mais à conta da grandeza dos que vieram do que daqueles que hoje cá estão hão-de vir. Mas, para lá dos dias tristes em que, de certa forma, nos despedimos de quem somos, fica a ânsia de apontar aos novos começos. Que saibamos contrariar a sentença inevitável e consigamos honrar com alegria os pergaminhos do Benfica e aproveitar a vida e a paixão que este clube pode dar a tanta gente. Começando pelo pequeno Francisco, um miúdo a quem a vida pregou a mais dolorosa das partidas, e a quem a Fundação Benfica em boa hora deu a mão para lhe arrancar o mais difícil, um sorriso. Que o clube lhe dê mais alegrias e o relembre, apesar da dor, que é uma criança feita para grandes férias. 

 Quanto a Sven Goran Eriksson, não tenho dúvidas de que sorriria perante uma última homenagem. Não sei quanto custa nem me interessa, mas seria bonito que, no próximo jogo em casa, todos os lugares no estádio tivessem um chapéu da Macieira à espera de cada um de nós. Se alguém perguntar o que estamos a celebrar, responderemos a quem estiver ao nosso lado: a vida, meu caro.